RIACHINHO

Meus pés brincando com as águas do riacho, achando bonito, achando frágil, olhando aquilo com os olhos diferentes, comuns, iguais aos olhos do riacho; rasos, como o riacho.

Sentado na pedra, pedra seca já, chuva de ontem, chuva de dias. O riacho mostrando que chovera, mostrando aquela água tão limpa que parecia nem correr pelo chão de tão limpa. Dava pra beber, dava, mesmo botando os pés dentro, brincando; porque a água era sempre outra, nova, renovada. Não como o homem que se suja; não como os cavalos que se espojam na areia seca do rio depois de tomado banho.

Limpa a água estava toda vez que botava os pés. Aquela coisa que não parecia com nada, passando tão mansa sobre meus pés que nem cócegas fazia de tão mansa; como se fosse uma alma, como mamãe diz. E mamãe fala da alma do rio, deve ser aquela aguinha.

Ali eu gostava de brincar. Ficava horas, caso minha mãe deixasse. Dormiria ali, cabeça na pedra, pés no riacho, na água, sentindo aquela coisa boa, aquele chamego nos meus pés, passando por cima sem machucar, passando por baixo sem fazer cócegas, nem cócegas, furando as areias, cavando, fazendo um caminho novo sem nem se importar com os pés.

E eu me deitava mesmo, ali, daquele jeito, mas tinha que ver a água correr e nem dava sono, brincadeira que não queria deixar por que não cansava. Nem fazia açude, não, represar, não, era tão frágil ela, tão mansa, nem ligava para os pés, seguia seu caminho, subia neles como brincando, e eu ria, tão menino, criança rir, com a água passando sobre os pés, pés pequenininhos, qualquer tamanho, ela vai se juntando, ganhando força, crescendo, mas sem malvadeza, sem nem fazer barulho, só rir quando passa, quando os pés são grandes, aí ela rir, nem zomba por ter passado nem nada, rir do outro lado, na passagem, mas tão mansinho...

Mamãe me chama, eu já vou, digo a ela, está ficando escuro, já já fica escuro mesmo e eu não posso mais ver a água; mas sinto que tudo continua como se ela tivesse olhos, como se visse o caminho, e brincando segue naquele ritmo, fala mais alto, o silêncio traz o barulho de suas risadas, a noite toda, naquele silêncio que nem os pássaros cantam, estão dormindo como eu vou dormir já, mamãe chamando, já vou, digo de novo, mamãe brava, está ficando escuro, ela diz, mas eu quero brincar mais, papai vai chegar, papai chega, eu corro pra dentro de casa.

Meus pés estão branquinhos, friozinhos, enrugadinhos, que eu riu pegando neles, tão limpinhos, tão bonzinho de pegar, mas mamãe reclama, solte esses pés, menino, mamãe não é criança, mas papai, mas papai rir comigo, me bota nos braços, braços fortes de papai, eu já grandinho, braços tão fortes que me pegam sem nem botar força, e eu rindo também, lembrando da aguinha passando, tão mansamente sobre meus pés, cavando o chão de terra, abrindo caminho com seu barulhinho de riso, tudo mansinho, naquele caminhar, papai me bota no chão, eu quase mijo de tanto rir, rindo e pensando na água, no riachinho, papai, eu pergunto, o riachinho ainda vai correr amanhã?, eu pergunto e ele entende que estou falando do riachinho, daquela aguinha que corre mansinha, tão livre que nem olha, sabe o caminho e vai brincando com a terra, indo pelo chão, disse papai, talvez, filho, me abraçando, fazendo aquele carinho todo que eu até pensei que fosse água, papai, papai, ele ria comigo, respondendo tudo direitinho, devagarzinho, como um riacho correndo, pra onde papai, eu perguntando, correndo não, papai, mas não sabia dizer, água corre, papai?, só sabia perguntar a papai, não sabia dizer, explicar, dizer que a água do riachinho, aquela aguinha, brincava, ela ia brincando com o chão, com meus pés, tão mansamente; papai, água enxerga à noite?, papai riu tanto, me botou no colo, beijou minha cabeça, papai foi criança ali mesmo, naquele lugar, o senhor brincou no riachinho, papai?, ele brincara, criança, a mãe dele chamando, o riachinho correndo, eu não sabia dizer, só sabia perguntar.

Jantamos cedo. Já estava escuro. Mamãe lavou os pratos, me botou na cama, apagou o candeeiro, bênção, papai, bênção, mamãe, ainda disse, com minha ovelhinha na mão, bichinho que papai trouxe da feira, pensando no riachinho, querendo acordar logo, no dia bem claro, aquele solzinho bem mansinho também para o riachinho não secar mais; papai me disse que o sol quente seca os riachos. Fiquei triste, tive raiva do sol, mas papai disse que não, a natureza, tive raiva da natureza, mas papai disse que não, fiquei alegre com minha ovelhinha, ali em meus braços, papai e mamãe no outro quarto, cochichos, risos, minha ovelhinha ouvindo, estavam falando de mim, eu ria de alegria, e pensava na aguinha do riachinho correndo, correndo, não, brincando, é que eu não sabia dizer como era, passando por cima dos meus pés, agora eu sentia cócegas, e ria alto, filho!, papai, ria também, com minha ovelhinha, lembrando, passando um pé no outro, cócegas agora, risos, a ovelhinha comigo, risos, papai, mamãe...

INALDO TENÓRIO DE MOURA CAVALCANTI
Enviado por INALDO TENÓRIO DE MOURA CAVALCANTI em 07/02/2013
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