Menino bom, tão bom...

Ele era um menino bom. Tão bom que jamais respondera aos pais. Às sete horas em ponto acordava. Dentes escovados, cabelos penteados e café da manhã. Antes da natação ou do inglês era importante fazer os deveres de casa. Matemática dez, português dez, história, geografia... tudo dez.

Ao meio-dia, banho. Lavar as orelhas, os cabelos, debaixo das unhas. Em seguida o almoço:

— O que tem para hoje, mãe?

— Arroz, feijão, salada de alface com rúcula, tomate, cenoura...

O menino comia de tudo. Tudo não, doce causa cáries, melhor uma fruta de sobremesa.

Meio-dia, hora de ir ao colégio. O pai sentia prazer em desfilar com o filho até a escola e ouvir as dezenas de elogios dos professores. Mas hoje, justo hoje que o garoto receberia professora substituta, o pai recebera uma encomenda e não podia atrasar. Marceneiro competente, sabem como é!

E se o leitor está pensando que o pai se preocupou em deixar o filho ir sozinho para escola, é porque realmente não conhece o nosso menino bom. Ou na certa duvida que ele exista. O marceneiro ficou tranquilo quando viu seu filho saindo pela porta. Claro que repetiu, afinal também ele era um bom pai, as orientações de sempre: não aceite presentes de estranhos, olhe para os dois lados ao atravessar a rua, ande apenas no passeio...

— Sim, papai! Ah, ia me esquecendo. No colégio pediram para levar uma cartilha nova, preciso de dinheiro para comprar uma!

O pai pôs a mão no bolso caçou por lá um punhado de moedas e deu ao garoto:

— Cuidado com esse dinheiro! Se algum espertalhão o vir com essas moedas podem querer tomar.

O menino pegou o dinheiro, beijou o pai, pediu a benção à mãe tão atarefada com as louças do almoço e foi para a escola. O caminho até o colégio não eram mais do que cinco quarteirões, mas nem bem andou o primeiro, um homem de barba mal feita e de vestes sujas interpelou o nosso bom garoto:

— Hei, moleque! Onde você está indo?

— Para escola!

— Puxa, que saco, hem! Um dia tão bonito como esse, ensolarado e você vai ficar preso numa sala de aula ouvindo uma professora velha passando um monte de números e palavras no quadro. Se ao menos vocês tivesse algumas moedas...

— Pois tenho moedas, sim. Mas são para comprar livros. Não posso gastar com outras coisas.

O homem barbudo olhou a mão direita do garoto fechada e algumas moedinhas quase lhe escapando entre os dedos:

— Ora, se não pode gastá-las. Deveria então multiplicá-las.

— Como? — O bom menino estava curioso com aquela possibilidade.

— Tenho comigo um jogo. Coloco uma moeda minha embaixo desse copinho aqui. Em seguida, o misturo com esses outros dois e se você acertar onde está a moeda, fica com ela.

— E se eu errar?

— Bem, eu fico com uma sua. Mas não se preocupe, é fácil, fácil.

O rapazinho pensou, fez as contas na cabeça – era muito bom em matemática – se ganhasse umas dez vezes teria dinheiro suficiente para a bicicleta que queria. Imagino o que o leitor está pensando agora: “menino ingênuo, superprotegido pelos pais, certamente vai cair na lábia desse ladrão”. Mas ingênuo aqui é apenas o senhor que nos lê. Ora, esqueceu que menino bom nunca desobedece aos pais.

Apesar da tentação, o garoto foi categórico:

— Senhor, peço desculpas por não poder brincar contigo. Mas é que o dinheiro tem destino certo e papai não gostaria que eu o desobedecesse. Sinto muito.

De nada adiantaram as insistências do Velho Barbudo. O menino respondeu negativamente a todas as perguntas do velho que terminou por desistir ao ver o garoto dobrar a esquina.

Nem bem andou dois quarteirões e viu uma raposa e um gato brigando. Na verdade eram dois homens fantasiados de gato e raposa, mas para economizar palavras, os chamaremos de gato e raposa.

— Você quer me passar para trás! — berrou o gato.

— Não, é justo que eu fique com o dinheiro. — respondeu a raposa no mesmo tom.

Vendo aquilo, nosso garoto que aprendera dos pais o quão feio era brigar, resolveu intervir:

— Brigar é muito errado! Não se envergonham? Afinal, qual o motivo da discussão?

A raposa – que já sabemos ser apenas um homem fantasiado de raposa e que escrevemos assim apenas para economizar palavras – foi quem primeiro respondeu:

— Veja bem, garoto. Esse rapaz fantasiado de raposa – são palavras da própria personagem, que pelo jeito, diferentemente desse narrador, não ama os resumos – é meu irmão. Nós dois somos artistas e essa noite fizemos nossa primeira apresentação em um teatro da cidade que lotou. Cobramos uma moeda por pessoa. Acontece que o teatro tinha capacidade para 101 pagantes. Ora, agora que vamos dividir o dinheiro acho justo que eu, o protagonista, receba essa uma moeda a mais.

O gato – rapaz de vestido de gato como bem sabemos – ouvindo o irmão, mal o esperou concluir e passou a falar:

— Veja garoto, essa história de protagonista é balela. Trata-se de um espetáculo com dois personagens apenas. Se sou o vilão é porque a trama assim exige. Além disso, veja o quanto minha roupa é mais quente que a do meu irmão e o quanto a minha quantidade de falas excede a dele.

O rapaz vestido de gato – optei por escrever assim, pois percebi que não conseguia economizar palavras – tirou um bloco de papel da mochila escrito “roteiro” e o entregou ao garoto que folheou, contou as falas de um e de outro. Viu que de fato a raposa era a protagonista e o gato – os dois apenas homens assim vestidos – tinha muito mais falas. Analisou uma vez, outra e outra, depois mais uma, e como um grande magistrado escolheu as mais belas palavras da língua para proferir a sua sábia e articulada sentença:

— Excelentíssimos senhores, após análise detalhada dos autos, digo que nada posso declarar sobre o caso apresentado.

O gato – já sabem, né? – ficou indignado:

— Mas e como resolveremos nossa pendência? Pensei que iria nos ajudar. Acreditamos que fosse um menino bom

A raposa – blá – completou:

Vemos que você tem um punhado de moedas nas mãos, se ao menos pudesse nos dar uma. Assim, nosso problema se resolveria.

— Não posso, senhores, sinto muito. Meu pai me deu o dinheiro para eu comprar uma cartilha. Se tiro uma moeda, fico sem a apostila.

Os dois homens fantasiados de bichos argumentaram, contra-argumentaram, choraram, espernearam, tudo em vão. Decidido a obedecer à ordem do pai, o menino partiu, não sem antes pedir licença e desculpas mais uma vez.

O garoto passou na livraria, comprou a tal cartilha, correu um pouco, detestava chegar atrasado e hoje, Deus do céu!, quantas interrupções, mas tudo certo. Não foi o primeiro a chegar como de costume, mas chegou uns cinco minutos antes da professora nova.

Uma ansiedade gostosa lhe invadiu. Como seria a educadora? Velha, jovem, loura, morena... brava. Só conseguia imaginar uma professora rígida. Tanto quanto a senhora Ana, talvez mais. Mas qual não foi a surpresa, quando o garoto viu entrar na sala, uma senhora de cinquenta e poucos anos, pelo menos assim ele julgou, criança sempre julga os adultos tão velhos...

De começo estranhou as roupas da professora, couro, metal, pregos. Até no rosto, quanta dor! Era ferro atravessando as orelhas, a sobrancelha, um bom dia dela e... na língua, Deus do céu! E o cigarro? Fumaça forte, bem verdade que ela o jogara fora antes de entrar na sala, mas suas roupas e o cheiro de erva a acompanharam por alguns minutos. Não era cigarro de marca, parecia com os cigarros de palha que o avô fumava na fazenda, mas o odor, mais forte, o que seria aquilo?

Porém, nada chamou mais a atenção do garoto do que o cabelo. Azul, como o mar – o mar não, pois esse às vezes é verde, outras quase cinza – era azul como o céu. A mãe já pintara o cabelo de preto, castanho, louro — papai não gostara, louro é feio — ruivo, mas azul nunca vira.

A mulher de cabelos azuis e roupas de couro, se apresentou, perguntou o nome de cada aluno, sorriu para uns, piscou para outros e começou a aula:

— Quem fez as tarefas de casa?

Uma enxurrada de desculpas começaram: estive doente, papai viajou, vovó, coitada, morreu... A professora acreditou em cada desculpa, por mais inverossímil que parecesse. Apenas o nosso bom menino levantou a mão:

— Eu fiz. Olhe!

A mulher aproximou-se do menino – outro prego no umbigo, onde mais teria pregos? – olhou o caderno, passou uma folha, duas, três, quanta coisa escrita para meia dúzia de perguntas diretas, quatro folhas.

— Ok!

Sem visto, nem estrela nem nada, a professora voltou para o seu lugar:

— Peguem as cartilhas!

Novamente as desculpas pulularam: papai não deu o dinheiro, mamãe esqueceu de comprar, acabaram todas na livraria. Todas mentiras inventadas na hora para esconder que o dinheiro dado estava todo nas mãos ou do velho barbudo ou do gato e da raposa, que sabemos serem apenas dois homens fantasiados. Novamente, apenas nosso protagonista ergueu a mão direita triunfante:

— Eu tenho a cartilha!

— Que adianta? Se ninguém a tem, melhor será fazermos outra coisa. Melhor irmos jogar bola no pátio.

A turma brincou o tempo todo. Só nosso garoto ficou triste. Mais cabisbaixo ainda ficou quando a mulher de cabelos azuis dispensou a turma sem que ele recebesse uma estrela sequer. Nem se lembrara da última vez que isso acontecera, se é que acontecera.

No dia seguinte, voltou ainda determinado. A professora que sequer se preocupara em deixar qualquer tipo de exercício, levaria uma surpresa ao ver que o bom menino havia feito quase todos os deveres de casa, que ela não passara.

Ah que engano! Tão preocupada com o segundo jogo de futebol dos alunos – meninos contra meninas, vitória das meninas por 3 a 0 – nem se lembrou de apostila. Segundo jogo, meninos ganham por 2 a 1, placar final meninas 4, meninos 1. Estrela dourada para elas e prateada para eles. E nosso garoto foi para casa sem nada.

No terceiro dia, terminou os exercícios da cartilha, fez uma redação sobre os rios e as matas e, por segurança, comprou uma maçã para a professora. A de cabelos azuis nem notou o esforço do garoto. A cartilha, ela mesma perdera a dela. Redação? Não pedira, por que fazer? De maçã jamais gostara, preferia chocolates. Sem estrelas de novo.

Por fim, no outro dia, o menino se atrasou para o café. Tarefas, não as tinha e tampouco as inventaria. No almoço deixou os legumes de lado, comeu uma colher de arroz e feijão... não quero mais! Posso comer bolacha recheada?

Na hora de ir para escola:

— Mãe, tô com febre. Posso faltar à escola, hoje?

Febre, ufa! Agora a mãe entendera o por que de o filho estar tão estranho:

— Claro, filho, fique aqui. Quer alguma coisa?

— Ah, sim! Preciso de um dinheiro para comprar um remédio.

— Não quer que eu vá para você?

— Não precisa. Um pouco de sol me fará bem.

— Tá certo! Tome cinco moedas.

A mãe deu o dinheiro como o menino pedira. Febre? Remédio? Bobagem! Tudo mentira! O menino, já nem tão bom nem tão obediente, foi ao encontro do Velho Barbudo. Perdeu uma, duas, agora tinha certeza: a moeda estava no copo do meio, engano, três, quatro... Desisto! Melhor buscar outra coisa.

Gato e raposa brigando:

— O que foi, senhores? — perguntou o menino, já suspeitando o motivo da briga.

Repete-se a história, outra apresentação, teatro lotado, 101 lugares, moedas impares, atores pares...

— Hum... Só me sobrou uma moeda.

— Pois é suficiente. — respondeu o gato.

— Claro, assim teremos 102 moedas. 51 para cada.

Espertos, raposa e gato saíram escondendo o risinho. Risinho, sim, pois riso largo, de orelha a orelha, deu o garoto. Tão distraídos em recontar sua história, mal viram o moleque esperto furar-lhes o saco – cheio de moedas, sim, mas não de teatro, mas dos colegas de classe do nosso herói (ou anti-heroi, agora, sabe-se lá!) – e furtar-lhes todas as moedas.

De novo o jogo. O Velho Barbudo venceu mais uma, outra...

— Tudo ou nada.

— Hã!

— Tenho comigo 98 moedas. Aposto tudo, como acerto dessa vez.

O Velho Barbudo, contente, levaria uma fortuna do garoto. Moeda em baixo do copo do meio, baralha para cá, para lá:

— Onde está a moeda?

O menino pensa. Ameaça puxar o copo do meio, da esquerda, da direita...

— É melhor ter certeza, hem! Senão perde tudo.

— Na sua camisa.

— Como?

— A moeda. Ela está na manga da sua camisa.

Dizendo isso, o garoto puxa a moeda da manga da camisa do Velho Barbudo que vencido paga ao garoto o que lhe devia.

A tarde cai, melhor voltar para casa. Da fortuna que ganhou, tira uma parte para comprar o remédio, caso contrário a mãe suspeitaria. Compra o remédio, o restante paga a bicicleta que tanto queria. No outro dia, bem antes da aula, a febre volta. Farmácia, velho barbudo, gato e raposa, passeio de bicicleta...

Tudo se repete dia após dia. Até que após um almoço, descrente, a mãe avisa ao menino: hoje você vai à escola de qualquer jeito. Sem solução, ele obedece. Na escola, tanto tempo se passara, a de cabelos azuis, substituta apenas, já fora embora. Com a antiga professora deixara uma carta para o menino bom:

“Como você era engraçado, quando você era uma marionete de madeira. Agora você é um menino de verdade!”. Ass: A de Cabelo Azul!

Rangel Luiz
Enviado por Rangel Luiz em 26/01/2013
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