Sobre um certo Pierre
"...Fué el espantajo e el coco
Del mundo, em tal conyuntura,
Que acreditó su ventura
Morir cuerdo y viver loco."
Cervantes, Don Quijote de la Mancha
Conta-se que a entrada do nosso século estava protegida por um dragão. Sim, um dragão que decidia quem chegaria, ou não, ao novo tempo. Antes de encontrar a besta, as pessoas, geralmente ávidas por adentrarem a nova vida deviam passar por uma grande porta sob a qual se podiam ler claramente as seguintes palavras:
Para entrar no novo mundo
A poesia deve morrer.
Deixem aqui toda a beleza,
E transponham a porta.
Sem pensar duas vezes, a multidão de pessoas que ali se achava deitava ao chão tudo o que possuía de belo, todas as obras de arte, todos os livros; esqueciam todos os versos e todas as canções, e se atiravam à porta como mortos cova adentro, sedentos por ciência e fé. Aqueles que tentavam ainda levar algo de belo eram logo mortos pelo dragão ao transpor a porta, e logo, os que vinham atrás tratavam de esvaziar da alma toda a beleza que possuíam.
O tempo estava acabando, era preciso ser rápido. A porta do novo século estava se fechando, e os que ficassem pra trás cairiam no esquecimento. Pierre não queria ser esquecido. Afinal, quem quer ser esquecido? Ele chegou às pressas à porta, já quando as últimas pessoas passavam por ela. Pierre leu a inscrição acima da porta e baixou, em seguida, o olhar. Havia trazido toda a beleza que possuía: vários livros de estórias e poesias, um violino que sempre tinha consigo, e várias canções que trazia na memória. Não queria desfazer-se de tudo isso, era tudo o que possuía, era uma parte dele, como seus braços ou seus olhos. Ouviu, à sua frente, pessoas comentarem que todos que desrespeitavam a inscrição eram mortos pelo dragão que esperava no saguão da nova era. "Um dragão?", pensou Pierre, e, tirando um livro do meio de suas coisas entrou pela porta com um passo orgulhoso.
Ao ser avistado pelo dragão, que já se dirigia em sua direção, Pierre parou e atirou com força o livro que trazia nas mãos ao dragão. Este, ao ser tocado pelo livro desapareceu em um instante, restando apenas um pouco da fumaça que soprava de suas narinas. Assim, Pierre e as pessoas que ainda não haviam passado, por não quererem abandonar a beleza que tinham, puderam atravessar calmamente em direção ao futuro, carregando consigo tudo o que os homens do antigo tempo haviam feito de melhor para brindar o novo século. Dizem que o livro que Pierre atirara ao dragão era uma linda estória de um nobre cavaleiro que andava a desafiar os dragões da realidade, empunhando a espada da arte e o escudo da poesia... ele sempre derrotava os dragões, mesmo que estes não existissem.
Publicado em http://www.camarabrasileira.com/acol13-012.htm
Maio de 2008