Noite de Halloween
Pela enésima vez, Joana, a mãe de Alan, repetiu:
“Não, Alanzinho, você não pode pegar doces hoje a noite porque está com febre! Quantas vezes terei que repetir? Se você tivesse me obedecido e não entrasse escondido na piscina quando a tarde esfriou, não estaria assim!”
Entre fungos e suspiros, Alan seguia a mãe – que distribuía a roupa lavada e passada pelos cômodos da casa, arrumando-a dentro dos armários – insistindo, até que ela finalmente perdeu a paciência:
“Senhor Alan, já para o seu quarto, e fique lá até amanhã de manhã, estamos entendidos?”
“Mas mãe, meus amiguinhos vão chegar daqui a pouco para a gente ir pegar doces!...”
“Não se preocupe, eu digo a eles que você está doente!”
“Mas... mas mããããe!!!”
Aborrecida, Joana pega Alanzinho pela mão e o coloca na cama. Mede a febre, e constata que a temperatura ainda está um pouco alta, e ele tem a voz fanhosa, típica de quem está pegando um resfriado.
“Agora fique aqui, bem quietinho, até a febre baixar. Tome este remedinho... isso! Depois eu passo para ver se você está bem. Agora durma.
“Mas ainda é muito cedo, mãe... eu não estou com sono!”
“Então eu vou ligar a TV um pouquinho. Pronto! Fique aqui assistindo aos desenhos. Lembre-se que você precisa ficar bem para a sua festa de aniversário de oito anos! É semana que vem. Já pensou, não poder ir à própria festa?”
Alanzinho percebeu que de nada adiantaria insistir. Começou a prestar atenção ao desenho na TV, as lágrimas ainda rolando livres pelo rosto. Uma tragédia, uma verdadeira tragédia... perderia o segundo Halloween da sua vida! No ano passado chovera... e este ano, ele estava gripado... arrependeu-se muito de ter desobedecido às ordens de sua mãe. Quando será que ele poderia pegar doces, como vira naquele filme da TV? A vida não era boa, não, não era nada boa... agora, só no próximo ano, e ele então já seria quase um homem.
A campainha toca, e Joana abre a porta para Clara, irmã mais velha de Judith, que ficaria responsável pelas crianças naquele ano. As crianças berram: “Gostosuras ou travessuras!”
Joana olhou para as máscaras e fantasias, tentando reconhecer as crianças. Começou:
“Deixe-me ver... você de cabelos pretos e fantasia de bruxa é a Marcinha! E você, de mãos dadas com a Clara, só pode ser a Judith! Linda máscara de monstro, meu bem! E você... fantasia bonita, de quem é?”
“É do Motoqueiro Fantasma, Dona Joana!”
“Isso mesmo, Helinho! Ficou muito boa! Quase não reconheci você... e finalmente... só pode ser o Sandro, vestido de pirata vampiro! Que original!”
As crianças entram, enquanto Joana enche suas sacolinhas com algumas balas e doces. Clara pergunta:
“E onde está o Alanzinho, Dona Joana? Estou curiosa para ver sua fantasia!”
“Infelizmente, meus queridos, Alanzinho está com febre, e não poderá ir com vocês.”
Protestos gerais, “ahhs e ohhs” decepcionados. Do quarto, Alanzinho escuta tudo, e cobre a cabeça com o cobertor, para que seus amigos não o escutem chorar.
Mais tarde, quando todos já tinham ido embora há algum tempo, Alanzinho finalmente adormece. Joana passa pelo quarto antes de ir ela mesma dormir. Beija o filho e ajeita-lhe os cobertores, checando a temperatura da testa com a mão. A febre baixara, mas ele respirava ruidosamente. Melhor mesmo ficar em casa, de cama... ela lamentava, mas achava que tinha feito a coisa certa.
Enquanto se preparava para dormir – cedo, como sempre – Joana pensava em sua vida; lembrou-se de outros Halloweens nos quais não pode sair para pegar doces com as outras crianças do bairro. Seu pai, sempre severo, não permitia nunca que ela saísse à noite; isto, até os dezoito anos!
Lembrou-se também dos anos difíceis que se acumulavam depois que, ao saber de sua gravidez, o pai a expulsara de casa. No começo, a mãe dera-lhe todo apoio, mesmo que às escondidas, mas após uma longa e difícil doença que tirara-lhe a vida, Joana viu-se totalmente só para criar seu filho, com apenas dezenove anos de idade. O pai de Alanzinho mudara-se, indo estudar longe, e os pais dele jamais deram qualquer informação à Joana sobre seu paradeiro; concordaram em pagar-lhe uma pequena pensão para ajudá-la com a criança, e ela teve que aceitar; mas assim que conseguiu formar-se e arranjar trabalho, recusou a ajuda deles, que jamais fizeram questão de conhecer Alan.
Hoje, tinha um bom emprego e uma boa casa, e contava com a ajuda de sua fiel Marta, que tomava conta da casa e de Alanzinho enquanto ela trabalhava, desde que o menino completara dois anos.
Seu pai? Ela um dia recebeu a notícia de que ele estava muito doente. Pedia para vê-la. Relutante, Joana acabou concordando. Ao chegar no hospital, viu deitado no leito uma pessoa fraca e de aparência muito frágil, bem diferente do enérgico homem que andava pela casa dando ordens e que jamais voltava atrás em suas decisões. Ao vê-la, ele tentou falar, fazendo sinal para que ela se aproximasse. Mas não conseguiu emitir uma só palavra. Olhou-a nos olhos, tentando passar a ela o que ele queria dizer, mas ao estar diante do pai moribundo, lembrando-se de que ele nem sequer permitira que ela visitasse a mãe em casa quando ela estava doente, Joana, tomada de emoções conflitantes, saiu correndo daquele quarto de hospital e nunca mais voltou.
Ao receber a notícia da morte do pai, ela desligou o telefone, suspirando fundo. Naquela tarde, foi a uma igreja e rezou pela alma dele, mas não compareceu ao funeral.
Após todas aquelas lembranças tristes, Joana chegou à janela e olhou a lua enorme que passeava no céu; uma noite realmente mágica! Na rua, as crianças percorriam as casas, e gritos de “Gostosuras ou travessuras” e também risadas, cortavam o ar cálido da noite.
No quarto, Alanzinho foi despertado por batidas na vidraça. Sentou-se na cama, e após ouvi-las novamente, foi até a janela, abrindo as cortinas, e deparou com uma turminha muito estranha olhando para ele: uma bruxa, um monstro, um motoqueiro fantasma e um pirata vampiro. Abriu a janela, dizendo-lhes:
“Olá! Nossa, as fantasias ficaram ‘massa!’ Pena que eu não posso ir... mamãe disse que eu tenho que ficar na cama. Estou com febre!”
Naquele momento, um senhor forte e alto, de cabelos grisalhos e voz forte, aproximou-se e disse: “Você não está mais com febre agora, Alan!”
Alanzinho tocou a própria cabeça e viu que era verdade; a temperatura voltara ao normal! Sua garganta já não doía mais, e a rouquidão passara. Não teve certeza sobre quem seria aquele senhor, mas achava que já o tinha visto antes. Talvez fosse o avô de um de seus amigos.
O velho senhor repetiu: “Você está bem , e pode vir conosco. Se quiser.”
Alanzinho estava exultante, mas ainda em dúvida; já desobedecera a mãe naquele dia, e a consequência tinha sido bem ruim... hesitou, antes de responder:
“Eu gostaria muito, senhor... mas não devo desobedecer a minha mãe!”
As crianças todas, em uníssono, começaram: “Venha conosco, alanzinho, você vai gostar!” O velho senhor estendeu-lhe a mão, e puxando-o para fora, disse-lhe que não se preocupasse com Joana, pois ela ficaria feliz se ele fosse com eles. Alanzinho protestou:
“Mas eu estou de pijamas!”
Quando olhou para si mesmo, viu que agora vestia sua fantasia nova de dragão. Talvez sua mãe a tivesse colocado nele depois que ele dormira... não se lembrava.
Foram todos para um velho ônibus vermelho, cheio de outras crianças fantasiadas que também usavam máscaras; eram fadas, duendes, gnomos, monstrinhos de caras engraçadas e gentis, bailarinas e cowboys. A atmosfera era de muita alegria, e Alanzinho aprendeu várias músicas, que eles cantaram durante algumas horas, enquanto saboreavam os doces mais gostosos que ele já comera.
Alanzinho estranhou a proximidade da lua, e quando olhou pela janela, percebeu que eles estavam voando. Uau!!! Ele podia ver as casas lá embaixo, as ruas e as pessoas e carros que ainda passeavam. A lua enorme, era branca, tão branca, e parecia que tinha um par de olhos e uma boca gentil que sorria! O velho senhor tirava doces deliciosos de uma sacola, e ia entregando às crianças. Tudo era festa, a mais linda festa que Alanzinho já vira!
Após passearem por toda a cidade, e comerem muitos doces, e cantarem muitas canções, a maioria das crianças adormeceu. Dentro do ônibus, reinava o silêncio. Foi quando o velho senhor sentou-se perto de Alanzinho. Eles se entreolharam, e mesmo à fraca luz que brilhava no teto do ônibus, Alanzinho pode ver que já o conhecia... mas tinha certeza agora, que ele não era o avô de seus amigos.
“Senhor... eu acho que já o vi antes... qual o seu nome?”
“Meu nome? Não importa... apenas chame-me de vovô.”
“O senhor é meu avô? Pai de minha mãe? Ela me disse que o senhor foi embora há muito tempo, mas nunca me disse para onde! E nem porque. As crianças nunca ficam sabendo de toda a história!”
“Sim, eu sou seu avô, Alanzinho. E eu venho olhando você há muito tempo. Mas sua mãe está muito zangada comigo.”
“É mesmo? E por que?”
O velho senhor olhou para a lua, antes de responder, como a buscar forças e as palavras certas que teria que dizer.
“Porque há muito tempo, eu fiz uma coisa muito errada e muito estúpida, e ela jamais me perdoou... ela tem suas razões, Alanzinho... eu errei muito!”
Alanzinho percebeu que o senhor estava chorando. Segurou-lhe a mão:
“Não se preocupe, eu também fiz uma coisa muito errada, e por isso, fiquei doente! Mamãe diz que quando a gente faz coisas erradas, outras coisas ruins acontecem. Mas agora, veja, eu já estou bom! Um dia, mamãe vai perdoar o senhor, se o senhor pedir desculpas a ela direitinho. Ela sempre me perdoa! E olha que eu faço muitas artes!”
O velho senhor sorriu, entre as lágrimas:
“Joana fez um ótimo trabalho com você, menino. Bem melhor do que o que eu fiz com ela.”
Alanzinho não entendeu, e então, permaneceu calado, olhando para o avô.
“É por isso que você está aqui, meu neto. Eu queria conhecê-lo. E também queria que você me ajudasse com sua mãe. Você sabe, poderia talvez tentar convencê-la a me perdoar. Porque eu moro muito longe, e não posso ir falar com ela pessoalmente.”
Alanzinho olhou para o velho senhor, muito sério. Havia coisas que, como criança, ele sabia que não poderia compreender. Os adultos eram muito complicados! Então, ao invés de fazer as mil perguntas que estavam em sua cabecinha, apenas disse:
“Pode contar comigo, vovô!”
Os dois se abraçaram, e ele adormeceu.
Acordou com o avô chamando seu nome suavemente.
“Alanzinho! Já chegamos, está na hora de você ir para casa!”
Ele acordou e olhou para os lados. O ônibus estacionara bem ao lado de sua janela, e tudo o que ele tinha a fazer, era entrar por onde saíra. No horizonte, uma leve claridade já se anunciava, para mostrar que a noite estava quase terminando. Nos bancos do ônibus, as outras crianças ainda dormiam. Ele abraçou o avô, perguntando:
“Nós nos veremos de novo, não é? Adorei conhecer você, vovô! Tenho certeza de que a mamãe vai perdoar você, pois ela é muito boa!”
O velho suspirou:
“Sim, meu querido neto, nós nos veremos de novo, mas ainda vai demorar um pouco... talvez, muitos anos... mas estarei sempre olhando por você, e se quiser falar comigo, é só pensar em mim que eu estarei te ouvindo. Tomara que você esteja certo, e sua mãe possa me perdoar!”
Abraçaram-se de novo, por um longo momento. Depois, Alanzinho foi acordar seus amigos. As crianças, ainda zonzas, acordavam lentamente, uma a uma, enquanto ele dizia: “Marcinha! Helinho! Judith! Sandro! Acordem!”
Ainda sonolentas,elas responderam:
“Eu não sou Helinho!”
“Eu não sou nenhuma Marcinha!”
“Meu nome não é Sandro!”
“Não conheço ninguém chamado Judith!”
Alanzinho imediatamente tentou puxar-lhes as máscaras, e elas gritaram: “Ai! Você puxou meu nariz!” “Ai, minha orelha!” “Hei, largue meu cabelo!” “Por favor, não puxe meu chapéu!”
Foi só então que Alanzinho compreendeu o que acontecera: aquelas não eram crianças! Eram bruxas, fadas, duendes e monstrinhos de verdade! Ainda zonzo com sua descoberta, e encantado com aquilo tudo, acenou-lhes um adeus, enquanto seu avô o carregava no colo e o colocava na cama.
Na manhã seguinte, Joana o acordou com um lauto café da manhã. Encontrou-o muito falante e bem-disposto:
“Mãe! Eu conheci o vovô! Eu conheci o vovô!”
Aquilo deixou-a chocada:
“Não pode ser, meu filho... olhe, não fale mais nisso. Você nunca viu seu avô. Não é possível... você teve um sonho, só isso.”
Alanzinho insistiu:
“Mas mãe, é verdade! Ele é alto assim, e tem olhos azuis, cabelos quase brancos, e uma pinta grande bem deste lado do rosto! Tem umas sobrancelhas grossas e cara de malvado, mas ele é muito legal!”
Joana ficou desconcertada: legal?! Mas ao mesmo tempo, ficou surpresa, porque a descrição que Alanzinho fizera de seu falecido pai era perfeita. Não sabia o que tinha acontecido com seu filho, mas provavelmente, o menino tivera um sonho... ela sorriu para ele, dizendo:
“Sim, meu amor, agora coma seu pão com manteiga. Hoje é sábado, e você não precisa ir à escola, então pode ir brincar na casa de seus amiguinhos.”
“Mãe, tem uma coisa importante que ele me pediu para dizer a você!”
Joana ficou séria, enquanto Alanzinho dizia:
“Ele disse que fez uma coisa muito errada quando morava com você, e que está arrependido. Disse que não pode vir aqui pedir desculpas, e pediu que eu dissesse a você que ele sente muito, e que sempre olha pela gente.”
Joana chorava. Ficou calada escutando a história da noite mágica (do sonho) que seu filho tivera. Ouviu-o contar sobre as músicas – ele se lembrava de alguns trechos, e cantou-os para ela. Ela imediatamente reconheceu as canções que sua avó lhe ensinara quando ela era criança. Quando Alanzinho finalmente terminou o seu relato, ela sorriu-lhe brandamente, abraçando-o forte.
“É uma linda história, meu querido... agora vá mudar de roupa porque está uma linda manhã!”
Ele se levantou e antes de entrar no banheiro, parou à porta e perguntou-lhe:
“Mãe! Você vai perdoar o vovô?”
Ela sorriu-lhe e disse:
“Vou sim, meu querido.”
Joana olhou para fora, para o sol que entrava pelo quarto, e sentiu que um grande peso fora retirado de suas costas. A vida de repente passou a ter um novo brilho, que nascera junto com aquela manhã.
Pensou na linda história contada por seu filho. As crianças tinham mesmo muita imaginação! Mas ao começar a arrumar o quarto de Alanzinho, ao erguer seu travesseiro, Joana encontrou uma bala diferente, embrulhada em um papel que nunca vira antes. Ao desembrulhá-la e colocá-la na boca, sentiu um sabor maravilhoso, que as balas que ela já comera não tinham. Era muito boa! Onde será que seu filho arranjara aquela bala?
Olhou para o papel, tentando encontrar a origem, e então viu que a embalagem na qual a bala vinha embrulhada tinha a imagem do rosto de seu pai.