.:. Amigos de infância .:.

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Não moro mais na cidade onde nasci. O trabalho e meu temperamento intempestivo – na realidade, meu excesso de sinceridade e mania quase irresistível de falar demais – culminaram com minha transferência para o interior.

Foi um processo doloroso, dor íntima, espiritual. A distância da família, principalmente do meu pai, à época doente, da minha mãe... Às vezes me surpreendia relembrando os momentos junto ao meu velho – todos os pais são especiais; as mães também, mas durante incontáveis noites fiquei em claro, sozinho, recordando momentos vividos junto ao meu pai, primeiro e mais importante referencial da minha vida.

A nova-vida-nova me colocou lado a lado com periódicas idas e vindas entre a capital e o interior. As viagens eram fabulosas! Quando me deslocava durante o período noturno, tentava, inutilmente, adormecer. Quase sempre chegava ao destino sentindo-me um trapo humano, exaustivamente degenerado pela travessia; não raros eram os momentos em que, sobressaltado, quase me erguia do banco numa e noutra curva mais acentuada. Se optava viajar tendo o Astro-rei como expectador, o Sol causticante[1], que não nos atingia devido à proteção dos condicionadores de ar instalados nos ônibus, brindava-nos com paisagens de encanto raro, vistas quando nossos fascinados olhares perscrutavam a natureza.

Gostava de coletivos por duas razões. Uma delas era o preço – eu viajava gratuitamente. Era só colocar o uniforme e embarcar, todo sério, sob curiosos olhares de civis que ainda acreditam que os militares somos diferentes, seres metamorfoseados. Pior que somos mesmo! A segunda razão... Ah, essa é a melhor, mas é prudente silenciar a esse respeito.

Outra viagem. Saímos vinte e uma horas e quarenta e cinco minutos. Chegamos por volta das seis horas da matina. Mais uma vez, eis um homem destruído. Liguei para a casa dos meus pais, meu irmão atendeu, mas não quis me buscar. Não me restou alternativa a não ser andar num dos coletivos da capital rumo à casa da mamãe.

Nasci num bairro suburbano e meus pais foram um dos fundadores do vilarejo. A vila onde nasci se formou, portanto, entre amigos quase irmãos. No trajeto, já sentado no coletivo, prendi-me a recordações que passavam dentro de mim como as paisagens das ruas da cidade, ora lentamente, ora como fantasmas de indecifráveis impressões – tudo dependendo da velocidade com que se movia o ônibus.

Cheguei. Toquei a campainha. Minha mãe demorava. Durante a espera, passa um amigo da época de escola. Estava barbado e aparentava bem mais que a minha idade, apesar de termos nascido no mesmo ano. Fazia tempo que não nos víamos. Fui tomado pela nostalgia. Senti necessidade irresistível de não me calar. Ele também. E não calamos. Relembramos as travessuras – criança sadia não faz outra coisa! As brigas entre bairros rivais vizinhos; as primeiras namoradas... Mas o tempo passou rápido demais e nos pusemos a falar do presente.

Perguntei por onde andava o Zé Caguinha. Ele respondeu, rispidamente, como se eu tivesse alguma culpa:

– Está preso!

– E seu irmão, o Passarinho?

– Ficou louco depois que a esposa foi embora com os filhos.

– E os outros?

– Neném faz bico como servente de pedreiro; a Fê trabalha em casa de família...

E se seguiu um rosário de histórias tristes. Os finais eram trágicos, como o do John Maluco, assassinado durante troca de tiros com a Polícia.

– E você, rapaz? Perguntei finalmente.

– Eu, amigo, vou levando a vida como Deus quer...

– Oi, mãe! Estava dormindo?

– Sim, filho! Ouvi a campainha tocar bem distante, pensei que era sonho. Tudo bem, Bil?

– Tudo. Como a senhora está?

– Na paz, graças a Deus.

Trocamos forte aperto de mão e nos despedimos.

Entrei. Não tive forças nem coragem de tocar no assunto com minha mãe. Tomei o café em seco e chorei durante o banho, na minha solidão. Lamentei as agruras da vida. A existência, apesar de breve, ainda abre portas para caminhos mal traçados; nesses descaminhos, estavam pessoas próximas, distanciadas da felicidade, levadas pelas dificuldades. Seriam escolhas ou imposições?

A manhã estava fria e despertava aos poucos, preguiçosa, sentindo os tapinhas suaves da luz que fulminava no horizonte. A imagem do amigo me perseguia. Quis entristecer-me novamente, mas os raios solares que entravam pela janela do quarto onde meu pai dormiu nos últimos anos antes de falecer, alertaram-me: é preciso ser forte e prosseguir, qualquer que seja a caminhada. Aventurei justificar meu remorso. Tentei sorrir, disfarçar minha mágoa interior, mas não me perdoei por ter deixado escapar a possibilidade do abraço, o mais singular e expressivo sinal da amizade, permitindo-me apenas trocar único aperto de mão, apesar de forte. Não foi o suficiente sentir as mãos calejadas do Bil – ficou a amargura pela negligência e recusa do abraço.

Juazeiro do Norte-CE, 15 de abril de 2008.

11h10min

[1] Ardente.

Nijair Araújo Pinto
Enviado por Nijair Araújo Pinto em 01/10/2012
Código do texto: T3911081
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