O LEGADO DE MEUS PAIS

Crônicas Reais: O legado de meus pais

Carlinhos! Carlinhos! Já pra dentro menino! Assim gritava dona Carmelita.Minha santa mãezinha.Em suas mãos uma daquelas varinhas, enigmática varinha que ela

escolhia bem fininha das árvores de goiabeira que existia em nosso antigo quintal.Geralmente ela focava em minhas pernas, seu alvo preferido,não sei se por achar

que era um ponto vulnerável ou por não conseguir alcançar-me outras partes, quem sabe até por receio de mãe em ferir e atingir um ponto vital, mas aquele era o

escolhido para as corrigendas e hoje eu penso: ainda bem que nào conheci a tão temida por muitos e detestada palmatória.

Poxa, eu e a turma do bairro adorávamos brincar de "polícia-ladrão", na época que se podia brincar com a imaginação.Íamos para dentro do campo do Gericinó e

ficávamos bem ali na periferia.Apesar de dizerem que havia bem mais para o pé do morro uma linda cachoeira, eu nunca me atrevi ou tive a curiosidade de ir mais

além.Além do mais eu lembrava a todo momento de minha mãe, com aquela varinha que não era mágica e que doia pra caramba ao tocar em minhas canelas e

batatas das pernas.Então, ali mesmo,próximo a entrada, nós ficávamos, e eu imaginava que ali era a fronteira que separava o velho oeste do novo oeste.

Havia uma patrulha de destemidos cavaleiros,os quais eu imaginava com minha inocência serem os "bandidos" que vinham atras dos "mocinhos".Então eu me

embrenhava todo dentro daquelas moitas e até a respiração eu prendia.Só conseguia assim por uns quinze segundos mante-la presa, que a apreensão e a adrena

lina era tanta e a aventura era inacreditável.Os cavalos passavam em trotes rápidos e ainda se podia ouvir as vozes: ...tudo ok por aqui!

Ao longe, o vento uma frase trazia: Carlinhos! Carlinhos!, Vem pra casa menino levado da breca.Eu tremia de medo mas ao mesmo tempo lá no fundinho da alma

de menino levado eu até sentia emoção.Minha mãe era uma dessas mulheres valentes do nordeste, sangue genuíno de pernambucana,gênio forte, trabalhadeira e

repleta de alegrias, uma exímia costureira, cozinheira, que tentou e acredito que tenha conseguido educar-me não nos melhores colégios mas com um

um misto de amor e , digamos, algumas coirrigendas,como as de varinha de marmelo, que eram de goiabeira.Carmelita era a pura energia e até hoje não sei onde

buscava forças pra me dominar e me manter nos melhores caminhos.Porque eu sempre possui um espírito libertino. Minhas perninhas ficavam cheias de marcas mas eu nunca xinguei nem ousava desobedece-la.Eu a respeitava e era respeitado e o interessante outra vez era que no meu âmago de menino de rua eu até admirava aquelas

marquinhas como se fossem um triunfo,uma medalha de um campeonato, incrivelmente incrível.Acredito que eu deva minha integridade a esta senhora que não mediu

esforços para salvar-me de tudo o quanto ela enxergava com alguma sombra de coisa ruim.Uma professora exemplar, sem ter nunca passado pelo níve médio, nem pelos bancos pedagógicos de uma fa

culdade.Nossa luta no "ringue da vida" não teve agressões, apenas amor, renúncia e compreensão, uma aceitação saudável que só me fez bem e também aos que se

acercaram de mim até hoje.

Mas, quando carmelita falhava, assumia a sua posição o tamanco de meu pai.Entretanto meu pai era mais flexível, apesar das aparências de um homem ignorante,

fechadão, era um pitbull por fora, mas por dentro um carneiro.Mas o seu tamanco, desses pesadões, doia muito, só de levantá-lo nas mãos.Quando não tinha o ta

manco ele usava o cinto: léptil, léptil, soava o cintinho.Que eu realmente era um menino endiabrado, mas como muitos passavam a mão em minha cabeça a dizer

que era energia acumulada,saúde, eu ouvindo aquilo me vangloriava, via crescer a autoestima e a vaidade.E, quanto mais assim eu me sentia, mais eu fazia e mais

eu precisava apanhar.As mãos de papai também pareciam as solas de um sapato de tão grossas, repletas de calos, as quais eu tocava e ficava sentindo a rugosida

de e o quanto eram fortes.Ele mesmo se admirava de possuir aquelas màos, o que não era nada de mais, afinal eram suas e, muitas vezes brincava comigo pra dispu

tar quem tinha mais força.Mas, quando ele dava um tapa eu pensava que era uma sapatada ou um tamanco.Uma vez brigamos, eu e minha irmã, ele veio e eu corri, não

como um covarde, mas como um menino esperto.Ele nunca batia em minha irmã.Em mim também poucas vezes, na verdade ele me protegia, e acho que isto não

foi bom, porque cortava o efeito das reprimendas de Dona Carmelita.minha mãe.Meu velho pai,que partiu desta vida até bem moço, parecia um poço de ignorância, mas

era um santo pai, e eu nunquinha que o encontrei nos bares ou com mulheres nas ruas, a enganar a minha mãe e até a família.Era um cara também sem estudos, mas

cheio de valores, que mesmo os catedráticos de hoje em dia não possuem.Como pode? Como podia? Ele, um simples empacotador de revista, a antiga "O cruzeiro",aquela que trazia a charge do Amigo da Onça do caricaturista Péricles e muitos gibis, do bolinha, luluzinha, gasparzinho, os quais eu devorava.Mas meu pai

amarrava com aqueles finos mas fortes barbantes feitos de sisal e mesmo com os dedos conseguia arrebentá-los.Talvez a isto, se devam os calos das mãos.

Meu pai sempre estava lá no quintal, dobrando e fazendo enormes gaiolas e viveiros,gostava de patos e galinhas,curiós, galos de campina, rapadura, carne seca com

feijão e farinha com bastante pimenta e comia tudo com as mãos.Sabia também fazer espingardas usando cano de chumbo, madeira e espoleta, arte bélica que nunca

aprendi.Acordávamos as quatro horas da manhã todo dia.Eu já era um homem de quinze anos e lembro que íamos a pé até a estação de trem de realengo e que rumávamos para a Central do Brasil.Passávamos pelo túnel da Gamboa, e depois nos separávamos.Ele seguia para o "O Cruzeiro" e eu para a ELMA, que trabalhava

no ramo de telecomunicações e as tão importantes fibras óticas, que hoje levam e trazem as informações até nós.Áquela época eu nem sonhava com fibra ótica,ape

nas como bom auxiliar de produção fazia o trabalho que mandavam fazer e não tinha tempo de ficar investigando, além do mais,nos horários após o almoço eu sempre

ficava lendo algum livro como de costume.De vez em quando eu ainda tinha tempo de olhar um enorme escritório, que parecia um grande e bonito aquário,com os pro

jetistas das peças que eram feitas nos tornos.Eles usavam óculos, calças jeans, e empunhavam uma ferramenta de trabalho que depois eu descobri tratar-se de ré

gua T, eu ficava assim um pouco me imaginando como eu ficaria de óculos e usando uma enorme e linda régua T, num futuro próximo, já formado, com meu diploma

de denhista industrial.Mas eu ainda tinha quinze anos.Lá nos idos de 1975.

Todo dia 28 de setembro, minha mãe dava doces, mas mesmo assim eu e minha irmã enchiamos as panelas de muitos variados e deliciosos doces, era uma festa e apesar das prováveis cáries dentárias e lombrigas, caramba cada uma imensa que a mãe puxava com força e doia a bessa, nós comiamos e nos lambuzávamos a valer.

Hoje, acredito que sou o retrato fiel dos meus pais.Talvez um pouco menos, não desmerecendo a mim, mas sentindo que eu deveria ser mais pés no chão como eles

foram e bem menos emoção, e são tantas, que as vezes, penso, que atrapalham.Entretanto, esta herança e legado, só fazem com que eu agradeça e reconheça os seus

reais valores em mim, não no passado, mas no homem que ficou.Eu não me tornei um grande cantor ou presidente da república, mas sei que a minha história é tão linda e importante quanto a delesal .Mas no fim das contas quem não tem dentre os comuns uma estória mais ou menos parecida?

Carlinhos Real
Enviado por Carlinhos Real em 27/09/2012
Reeditado em 06/02/2013
Código do texto: T3904218
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