Amor Animal
Sempre gostei de animais. A companhia de um gato ou de um cachorrinho tem para o meu espírito um efeito mágico, pois faz com que as preocupações corriqueiras tornem-se insignificantes. Sou amigo inseparável também de uma boa leitura e parece não haver coisa melhor no mundo do que unir num só esses dois prazeres gratificantes. É uma maçada incômoda ter que deixar o meu lar para ir a busca do sustento material e, todos os dias ter que deixar para trás os meus amigos. Mas não há outro recurso. Quanto aos livros, ainda consigo uns rasgos oportunos em pleno trânsito durante os breves segundos de um sinal fechado ou nos engarrafamentos; aí ganho uma ou duas páginas por dia, às vezes mais. Por outro lado, sinto a falta do afago em meus bichinhos e do prazer que isto me proporciona.
Deixei em casa, aos cuidados de minha mulher, três gatos siameses, um angorá e dois cachorros. O que mais me preocupa no momento não é estar longe deles. A esta rotina já estou acostumado. O fato é que Zora, a cadela policial, deu cria esta semana, o que duplicou nossa trabalheira mas triplicou a minha felicidade. Toda noite, ao chegar em casa não encontro a paciência mínima necessária para desfazer-me dos trajes, tomar banho, jantar e tudo mais. Ao sair do carro, beijo Laura, entrego-lhe minha pasta e não faço outra coisa até ver os meus amores. Estou casado já há quase sete anos e ainda não tivemos a felicidade, tão comum na maioria dos casais, de ter um filho. Talvez seja este o motivo que me faz tão apegado às criaturinhas do mundo animal. Perco-me na contemplação delas – às vezes horas a fio. Quando estou em casa, esqueço o tempo ao dar banho, alimentar e brincar com esses inocentes seres. Contudo, não posso assegurar o que na verdade me faz assim. Ao olhar um dos cachorrinhos, de pele marrom e barriguinha branca; seu jeito heróico de disputar o mamilo de Zora e aconchegar-se na mamada, de olhinhos semicerrados, mas atentos, minha memória é remexida e me leva a um dos períodos mais agradáveis de minha existência.
Tinha eu então nove ou dez anos. Tirava da vida aquilo que ela tem de melhor, pois o fantasma da preocupação não rondava minha mente. Vivia satisfeito, aproveitando cada momento. Possuía o que havia de melhor para o deleite das minhas horas encantadas. Cercava-me das mais agradáveis companhias; eram elas meninos felizes como eu, e todos os tipos de brinquedos de que podem dispor a criançada. Como filho único, conheci as vantagens e as desvantagens do mimo exacerbado na vida de uma criança. Na minha concepção pueril, já compreendia, ou ao menos tinha a noção, dos efeitos negativos de ter diante dos meus amigos um gênio distinto, um temperamento voluntarioso, irrepreensível. Costumava questionar minha mãe: - Por que me sinto diferente das outras crianças?
– Você não é diferente – dizia-me.
– Mas eu me sinto assim; isto me incomoda o tempo todo.
– Exatamente por isso, meu filho. Enquanto você se sentir diferente dos outros meninos e meninas, isto vai te incomodar. Você é como eles, apenas mais inteligente. Digo que deveria estar orgulhoso e feliz; e não incomodado.
Parece que mamãe não me compreendia muito bem. De fato, eu possuía uma inteligência e criatividade que superavam a média das outras crianças da minha idade. Mas o problema, o verdadeiro problema, é que eu percebia que elas não gostavam de mim. Eu ganhava quase todos os jogos que disputávamos, era mais perspicaz com os adultos e mais ligeiro ao responder as perguntas deles. Limpava as bolinhas de gude de quase todos os moleques; até nas apostas que fazíamos eu tinha mais sorte. Aos poucos, uma transformação que já vinha insidiosa por dentro de mim, apoderou-se de vez do todo da minha personalidade. De extrovertido, passei a circunspecto. De audacioso. passei a exageradamente medroso e tímido.
Já ia pelos treze anos quando, só então, minha mãe se deu conta da seriedade da situação e decidiu fazer alguma coisa a respeito. Ver-me pelos cantos da casa, cabisbaixo e pensativo, fê-la preocupar-se a ponto de buscar auxílio médico. Mas, para a tranqüilidade dela (ou para o seu desespero), os exames nada acusaram. Eu sabia que não tinha nada, por isso tomei rédeas em assegurar-lhe tal fato. Então mantínhamos conversas. Uma vez sugeriu:
– Que tal um passeio? Vamos até a fazenda nos divertir um pouco! Aproveitaremos suas férias para uma mudança de ares. – Exultei de felicidade, era tudo o que eu queria. Poderia descobrir a causa do meu problema. Podia até não ter nada, mas sentia que me faltava algo que, se o conseguisse, iria preencher um pouco do vazio que carregava.
– Quando partimos, mamãe?
– Assim que seu pai consiga uma licença. Vejo que está ansioso. Fico feliz por você, meu amor, vai se divertir muito. – Mamãe tinha razão; foi um dos períodos mais excitantes que já tive em minha vida e uma parte da minha infância que mais me deixou saudades e que dificilmente vou esquecer. Ter ido àquelas férias podia não significar mais do que um simples período de descanso e relaxamento para meus pais e algum divertimento para mim, já que fazíamos isto com certa regularidade e tudo me era bastante familiar. Entretanto, desta vez foi diferente. Eu, que vinha taciturno, mesmo ainda durante a viagem e, já na fazenda pelos primeiros dois dias após nossa chegada, transformei-me, num repente, dado um fato que então me ocorreu.
Nossa propriedade em nada ficava a dever às suntuosas chácaras das proximidades, famosas por pertencerem a conhecidas personalidades do mundo político e empresarial. Papai, durante anos, precisou ser renitente no sentido de não ceder às inúmeras ofertas de compra feitas por muitos nomes ilustres. Irresistíveis somas nos foram oferecidas para que deixássemos nosso patrimônio para o usufruto daqueles que procuravam a companhia dos seus iguais.
Mas valeu a pena a nossa relutância. Podemos hoje nos orgulhar de possuir tão aconchegante lugarejo para o deleite das nossas almas cansadas e oprimidas pelo alvoroço do mundo moderno. Papai não mais vive e mamãe até hoje desfruta da paz e sossego do Rancho das Amoreiras. Mas prossigamos com a minha aventura.
Teríamos todo um mês pela frente no contato com o nosso paraíso particular. A casa era a mais elevada de todas, por isso destacava-se na paisagem, além de proporcionar exuberante vista. Da janela do meu quarto podia apreciar a elegância da enorme vinha que circundava o perímetro de entrada. Via os carros perfilando na estradinha lá embaixo e podia saber quem entrava ou saia dos domínios do rancho. Do portão principal para dentro, os caminhos, para um único veículo por vez, ainda não eram asfaltados. Divergiam dos seus destinos, cada um conduzindo à paz aqueles que, de uma forma ou de outra, propunham-se a procurar por ela.
Descíamos em grupo, quase todo final de tarde – eu e mais cinco garotos com os quais tinha afinidade – o caminho de terra ladeado de coqueirais. Com freqüência, íamos montados em nossas prestativas bicicletas. Mas, quando queríamos gozar ao máximo as delícias dos nossos passeios, empreendíamos caminhadas. Aí não faltavam travessuras. Largávamos nossas camisas, deixávamos para trás os chinelos e corríamos felizes, cevando-nos da liberdade que era nossa, de corpo e alma. Os ventos alísios deixavam rastros de frescor em nossos corpos franzinos, mas, vez por outra, eram fortes o suficiente para fazer frangir no alto das árvores galhos secos e folhas mortas. Ante minha transformação, não havia felicidade maior para minha mãe, tampouco inveja, afetação ou seja lá o que fosse para esta minha outra turma de amigos; até me davam presentes. E um deles foi especial. Tão especial que causou transformação, não só no estado de espírito de uma criança inadaptada, mas no caráter de um homem, em tudo o mais, igual a todo e qualquer ser humano. E esta mudança foi para melhor (como não podia deixar de ser) pois, vinda do reino dos irracionais, chegou-me purificada de sentimentos outros, passíveis de ambigüidade pela alma humana, frágil e imperfeita.
Um dos meninos da turma era Gabriel. Tinha mais ou menos a minha idade e, acabei descobrindo com a convivência, muitas das minhas aptidões e quase todos os mesmos interesses. Pelo fato de ser filho de pais separados, parecia ter desenvolvido um certo arrojo de personalidade, um sentido de auto-suficiência e domínio de certas emoções, que perto dele sentia-me muito bem; era como se estivesse ao lado de um adulto de quinze anos. Minha amizade com Gabriel floresceu tão rápido que, em poucos dias, éramos como dois irmãos. Os finais de semana eram os mais propícios ao nosso relacionamento, pois a maioria dos outros meninos saia com os pais e Gabriel aproveitava as sestas da mãe para vir até minha casa, onde brincávamos muito e conversávamos outro tanto; um domingo foi especial.
Estava eu na varanda principal, ajudando papai a fazer a limpeza de nosso aquário. Saí, com um pequeno balde, até o arroio bem próximo dali, atrás da casa. Ao retornar, fui tomado de surpresa. Parei, perplexo. Diante de mim estava Gabriel. Quase trombei com ele quando já ia chegando na varanda. O que desviou minha atenção não foi propriamente Gabriel, mas o que vinha depois dele. Era um ser matreiro, despojado do fator humano, essencial à civilidade. mas dotado de inteligência suficiente para uma convivência sobremaneira excelente; era um macaquinho.
- Gostou? – Foi a pergunta do meu amigo, antes mesmo de me cumprimentar. Ele detectou instantaneamente a minha expressão inusitada. Olhou por trás e estendeu a mão. O animal, incontinenti, correspondeu ao sinal e pegou a mão dele.
- Você nunca me disse que tinha um macaquinho! – falei, pousando no chão o balde. Meu amigo sorriu no seu jeito próprio.
- Você nunca me perguntou – respondeu, mantendo o mesmo sorriso sardônico. Fez um pequeno gesto e o animal pulou para o seu colo. Gabriel fez então umas cócegas em sua barriga e o bicho desatou a dar grunhidos de prazer e mostrar os dentes, abrindo e fechando os enormes beiços.
- Qual o nome dele?
- Dela, você quer dizer. Chamamos de Pisca, de tão miúda que é. Não é uma gracinha?
- Como conseguiu, quem deu a vocês?
- Ninguém deu, achamos.
- Acharam?! Não sabia que havia deles por aqui.
- É claro que há, mas não muitos. Mas não foi por aqui que a encontramos; foi na fazenda de papai. A princípio não queria que eu a trouxesse, receoso de que não fosse cuidar bem dela. Na verdade, ele é muito apegado a animais. Também pudera, vive sozinho numa fazenda tão grande! E, além do mais, ele a viu primeiro do que eu. Ontem tive uma surpresa. Veio visitar-me e deixou-me Pisca de presente. O que você acha do nome que dei a ela?
“Até que não é descabido”, pensei cá comigo antes de dar-lhe a resposta. Fiquei a observar o animal. Era jeitoso, muito ágil e sabia fazer graças. Gostava de dar pulos nas pontas dos pés quando menos esperávamos; ao mesmo tempo em que passava alacremente a mão livre pela cabeça empoada de suas travessuras pela terra. Quando fui cumprimentá-la, agarrou minha mão e fez como se fosse beijá-la ou algo assim. Logo um repelão dei e me libertei. – Não precisa ter medo – falou Gabriel. – Esta é somente a sua maneira de demonstrar carinho; se lhe der a mão, vai acariciar a própria cara com ela. Significa que gostou de você. Irá zangar-se se recusar; vai achar que está sendo desprezada.
– E o que fará se eu negar mesmo meu carinho?
– Tente e saberá. – Achei melhor não seguir este conselho de Gabriel. Pisca já me encarava um tanto desconfiada e eu tive medo.
– Vou dar de novo minha mão a ela; não tem perigo?
– Absolutamente; é isto que está querendo. – Pisca beijou o dorso de minha mão direita. A princípio senti repulsa; não por causa do beijo exatamente, mas devido a um contato estranhamente peculiar, o que me fez estremecer. Era como se estivesse pondo a mão dentro de um torno aveludado. É claro que, em realidade, isto não existe. Um profissional mecânico nunca experimentou esta sensação no exercício de suas funções e certamente se surpreenderia se um dia viesse a não mais encontrar resistência em suas ferramentas.
Porém, aos poucos, fui me acostumando com ela e ela comigo. Perdi o medo de ter meus carinhos retribuídos com beijos e pulos de satisfação e alegria. Logo, papai apareceu, levado pela curiosidade, não menos que pelos apelos de Pisca por carinho e atenção. Da varanda, acenou para cumprimentar Gabriel, mas quando viu o garboso animal, seu rosto iluminou-se com um sorriso. – Já ia chamá-lo para o lanche mas vejo que temos mais um convidado, ou melhor, dois – disse, apontando para Pisca.
No dia seguinte e nos outros, consegui uma total identificação com nossa amiguinha. Quando Gabriel não aparecia em nossa casa, eu o procurava. Pretextava qualquer coisa para passar uma parte do dia, alguns minutos que fosse, ao lado dela.
Todos os outros meninos, acostumados que estavam com a minha presença constante nos arredores, pelas vinhas e alamedas do lugar, iam e vinham a minha casa para saber de mim. Apareciam em grupos de três ou cinco ou em par procurando-me para brincar. No começo dizia papai que eu havia retornado para o Rio de Janeiro. Depois, pela insistência deles conseguiram saber do meu paradeiro. Um era Adolfo, o mais levado da turma. Adolfo não gostava de animais e vivia arrumando encrencas com a vizinhança por maltratar gatos, coelhos, cachorros e outros bichos de estimação. Eu nada tinha contra ele pessoalmente. Sabia de suas aventuras deslustrosas mas, por mais que desaprovasse sua conduta, tão oposta aos meus sentimentos, esforçava-me para não permitir que isto maculasse o nosso relacionamento, até ali sem problemas.
Contudo, apesar dos meus cuidados, Adolfo conseguiu aborrecer-me. Numa manhã, chegou só à casa de Gabriel; eu, como de costume, encontrava-me lá, distraindo-me com as brincadeiras de Pisca.
- Você não faz outra coisa agora a não ser brincar com esta macaca? – disse Adolfo em tom de escárnio; eu nada respondi. Estava nesta hora descascando umas bananas que arrancava de um cacho no chão entre minhas pernas. Era muito engraçado quando Pisca, vez por outra, não me dava tempo de descascar a banana. Tomava-a de minha de minha mão e, muito calmamente, desnudava a fruta e passava a comê-la, mostrando os dentes. – Todos perguntam por você durante as peladas. Hoje é a decisão do torneio; você não vai? – Ele mudava, aos poucos, o tom da voz para mais suave, pois deve ter reconhecido o quanto fora rude ao dirigir-se a mim; então falei:
– Posso levar minha amiguinha?
– Fiquei à vontade, mas não sei como poderá participar.
– Não se preocupe, ela não joga futebol.
– Você sabe ser engraçado quando quer – disse Adolfo, aceitando de bom humor a minha troça.
Naquela tarde compareci ao futebol e, claro, Pisca estava comigo. Mas, como não podia deixar de ser, Gabriel também lá estava, protegendo sua mascote. A princípio fiquei contente de ver todos os meus amiguinhos reunidos e pude matar a saudade de alguns outros que não via desde as minhas últimas férias; e lá se iam já quase dois anos. Mas minha alegria durou pouco, infelizmente. Parece que meu afastamento do grupo arrefeceu, de certa forma, o calor da amizade que havia entre nós. Os meninos já não eram os mesmos de antes, quando nos divertíamos alegremente; agora havia mais competição. A maioria deles crescera um pouco mais, já não eram tão carentes; e eu um quase adolescente.
Adolfo, que tinha a minha idade, devia comandá-los; e com sucesso pois, quando chegou, conseguiu somente com sua presença e uma bola melhor e mais bonita do que aquela que seria utilizada, desviar totalmente a atenção de quatro garotos que estavam no mesmo grupo onde Gabriel e eu mostrávamos as peripécias de Pisca. Fingimos que nada houve; continuamos agindo normalmente enquanto aguardávamos o início do jogo. Vencemos. Adolfo, que era do time adversário, não conformado com a derrota, propôs uma revanche. – Pode formar a equipe que quiser. Minha única condição é ter Palito e Nonô do nosso lado, vocês aceitam? Troco por dois que são também muito bons. Chamei Gabriel à parte.
– Muito bem, decidimos aceitar – falei. – Quando será o jogo?
Não tínhamos porque perder; e não perdemos. Mesmo cedendo nossos melhores craques, conseguimos a vitória graças ao trunfo de Gabriel. Reni era um menino humilde, pouco conhecido de todos, menos do meu amigo; sabia tudo de bola e deu um show. – Quando o vi jogar próximo à chácara de papai, sabia que tinha a solução para o seu problema – disse-me contente Gabriel no dia seguinte à partida; e ele nem imagina o quanto lhe fiquei agradecido por aquilo. Não propriamente por ter vencido aquele jogo mas por ter tido a satisfação de ver no rosto de Adolfo o desfalecimento do seu jeito piegas, do seu orgulho vulgar.
Com este episódio, ganhamos algumas inimizades. Mas isto não me preocupou, muito menos ao Gabriel. Na verdade, até achou melhor que assim fosse. Ao contrário de mim, como morador que era do lugarejo, conhecia de verdade cada um daqueles moleques; sabia que não perdíamos nada afastados da turba de Adolfo.
Sendo assim, continuei fazendo o que me trazia mais prazer e alegria no nosso rancho pelas últimas duas semanas da minha estada ali. Para falar a verdade, desde que reencontrei Gabriel e que, por seu intermédio, conheci Pisca, notei em mim mesmo, uma mudança acentuada em meu estado de espírito. Aqueles sintomas próximos à depressão – embora fosse eu ainda uma criança – como que me tivessem abandonado. Comecei a perceber sem esforço que as alternativas que eu fora buscar no campo passavam longe do que realmente necessitava. Estranho como os animais nos preenchem em dados momentos de nossa vida. Como criança eu não entendia isto e, talvez por essa razão, tenha conseguido extrair naquele período grande e inesquecível felicidade. Pisca passou a ser para mim a companhia, a mudança de ares, o remédio, enfim, passou a resumir toda e qualquer prescrição que o nosso médico havia recomendado.
As peladas continuaram, as brincadeiras também; tudo como era antes. Porém sem mim e sem Gabriel. Tínhamos a melhor companhia do mundo. Longe dos olhos que não viam prazer no contato puro e desinteressado com outro ser. As manhãs eram nossas. Após o entrevero, as tardes passaram a ser nossas também.
Logo, para meu desencanto, chegamos na manhã de segunda-feira da última semana de nossas férias. Eu iria, como de costume, aproveitar ao máximo o que ainda restava de felicidade. Partiríamos no domingo à tarde. Então, sete dias inteiros estariam ao meu dispor para o que eu quisesse fazer. Eu deveria, como toda e qualquer criança feliz, desfrutar cada momento; e foi o que fiz, ou pelo menos tentei fazer. Mas o destino mudou o rumo dos fatos e as conseqüências foram imprevisíveis.
Já na terça-feira comecei a perceber uma ligeira mas nítida alteração no comportamento e nas atitudes de Pisca. Gabriel já me havia prevenido quanto a isto. – Com certeza vai sentir falta da mãe – me dizia. – Quando acontecer, não estranhe; apenas dê-lhe mais carinho e atenção. Desse jeito não terá problemas com ela. – Na quarta, pela primeira vez, levei-a para minha casa por sugestão do próprio Gabriel. Uma mudança de ambiente poderia favorecer esta fase de transição para nossa amiguinha. Com efeito, tornou-se mais agressiva e muito impaciente. Ninguém, a não ser eu, conseguia aproximar-se dela sem ver-se expulso por seus gritos e tentativas de ataques violentos e irrepreensíveis. Muito a contra gosto tive que acorrentá-la ao pé de minha cama. Mamãe, com toda razão, não gostou da idéia. Teve que trabalhar dobrado no dia seguinte para eliminar a desordem e a sujeira deixadas por Pisca. Gabriel havia ido passear na casa do pai e ficou de retornar na quarta-feira à noite. Eu não queria incomodar mamãe mantendo Pisca por mais um dia em nossa casa. Portanto, no dia seguinte bem cedo, após uma arrumação ligeira no quarto, que mais parecia uma arena em final de espetáculo, levei Pisca ao seu dono. Meus pais ainda dormiam quando fechei lentamente a porta atrás de mim, com a macaca bem segura em minhas mãos por uma curta correia de couro, ligada a uma coleira bem folgada em seu pescoço.
Atravessei com ela os pouco mais de dez metros entre nossa varanda e a cerca da propriedade e ganhei a rua. O dia estava amanhecendo. As últimas estrelas despediam-se do firmamento. Gabriel morava na outra extremidade do rancho, a uns trinta metros de caminhada pela alameda principal. Enquanto descia, encantado com o efeito bucólico da paisagem que me cercava e extasiado com o aroma do verde e o frescor da brisa matutina, descuidei de Pisca e deixei que escapasse de minhas mãos. Arisca como ela só, e empuxada por sua extrema necessidade e falta da mãe, Pisca distanciou-se muito rapidamente de mim, numa velocidade fora do comum. Fiquei totalmente aparvalhado ao vê-la desaparecer no meio dos arbustos que margeavam aquele trecho da alameda. Corri para alcançá-la mas tropecei no meio do caminho, perdendo-a totalmente de vista. No auge do meu desespero, apelei para os gritos, último recurso, em forma de apelos lancinantes. Vi-me correndo sem rumo, bracejando e chamando por seu nome. Foi inútil minha agonia. Quando dei por mim, não sabia mais onde me encontrava nem quanto tempo tinha corrido. O cansaço me dominou e eu deixei-me cair sentado sobre a relva. Havia atravessado um enorme trecho de floresta e estava agora há poucos metros da margem de um rio; não conhecia aquele trecho e por momentos tive medo de estar perdido. Mas isto me importava menos naquela hora do que a tristeza do desaparecimento de Pisca e a possibilidade de não vê-la nunca mais ainda me assombrava e desanimava totalmente.
O contraste entre meu estado de espírito e tudo o mais em derredor era realmente marcante. Meu ser, distante e sorumbático, sucumbia à realidade, combalido de dor e despojado de esperanças. A tranqüilidade das águas, em seu curso calmoso, mas firme e decidido, inspirava a harmonia do conjunto que formava aquele trecho de beleza e paz inigualáveis. Aos meus ouvidos chegaram uníssonos a chilreante procissão de pardais ao largo das perfumosas heras, e o farfalhar de folhas e galhos das altas coníferas doadoras de enormes e aconchegantes sombras. Vencido por esta quietude inebriante a funcionar como um chá de ervas calmantes e aromáticas, adormeci. Estendido na relva, deixei de protagonizar uma cena na natureza e tornei-me ela própria. Confundi-me com os elementos naturais que participam do espetáculo da vida, doando-se à mãe terra e sendo por ela preenchido; alheio ao momento mas receptivo ao todo.
Muitas horas já haviam transcorrido desde o meu afastamento de casa pela manhã. Com certeza todos estariam para lá de apavorados com a minha longa ausência, fato nunca antes ocorrido. Quando despertei, com o corpo relaxado e a mente mais clara, o primeiro pensamento que me veio à mente, transformado em imagens perturbadoras, foi o estado inquietante de minha querida mãe a procurar por mim. Pisca veio logo em seguida e, se o que sempre imaginei em Gabriel se confirmasse, ele não estaria nada sossegado até que tivesse notícias de sua preciosa companheira.
Logo, minha lucidez momentânea deu lugar ao mal estar próprio de quem se vê horas privado de alimento. Minha fome era tamanha que não queria em nada pensar além de algum meio prático de saciá-la. Por instantes fiquei sem saber o que fazer. Sentia-me um tanto fraco para empreender o mesmo trajeto de volta para casa em busca de comida. Porém, se caminhasse, poderia encontrar algo pelo caminho; e foi o que fiz.
Antes porém, precisava mitigar minha sede e refrescar-me a fim de suportar o enorme calor. Levantei-me e fui até à beira do rio. Após lavar-me e beber água, senti voltar um pouco minha energia. Então deparei com algo que poderia chamar de compensador para quem se via só e desamparado como eu. O que vi, a princípio deixou-me assustado. Depois compreendi a imprecisão de qualquer temor ou cuidado. De onde eu estava, até o que meus olhos testemunharam, iam mais de trinta metros, incluindo a largura do rio, bastante considerável. Uma gárrula e incessante procissão dos macacos cinzentos passou a desfilar no alto das árvores, ante meus olhos aterrados. Pareciam ser da mesma família de Pisca, mas de uma espécie diferente e, com certeza, muito mais feroz. Tinham o pelo de um marrom muito escuro e os mais velhos apresentavam quase o dobro do tamanho. A mim se mostravam assustadores; eram inquietos e faziam muita algazarra. Pensei que a colônia fosse infinita, pois à medida que iam passando, outros iam surgindo, numa sucessão sem fim. Mas logo percebi que estavam dando voltas nas árvores, tanto nas partes baixas quanto nos galhos próximos às copas. Gritavam e batiam palmas, dando a impressão de estarem se divertindo com alguma brincadeira interessante.
Da posição em que me encontrava, podia observar, e muito bem, cada movimento deles. Decerto, a distância e o rio davam-me bastante segurança e proteção contra um possível perigo. Mas, agachado na água, eu olhava lá para cima e sentia arrepios ao ver os animais saltando de galho em galho acima de minha cabeça. A água do rio era de um tom suave e calmante e de coloração magenta, quase esverdeada. Porém, pouco a pouco, sua estabilidade foi-se modificando e a quase perene tranqüilidade fez-se invadida. Notei de imediato a mudança e até abandonei por instantes a minha visão para olhar o rio em toda a extensão que pude captar. As águas agora meio revoltas tinham razão de ser. Ao longe vi uma canoa que singrava em minha direção. Tive tempo suficiente para sair de dentro do rio e colocar-me em segurança e, evidentemente, em estado de alerta.
Apenas pus meus pés em terra firme e não mais que uns três metros distanciavam-me da embarcação; vi então quem a ocupava. Era Rodolfo e mais um menino (não sei se poderia chamá-lo assim) que também havia participado da pelada, jogando contra nosso time. Guto, como chamavam ao outro, se era adolescente, não mostrava isso no porte físico, muito menos no aspecto. A quantidade de sua força só se igualava a de sua fealdade. Tinha porte de adulto mas não passava disto. Quando abria a boca para falar, denunciava logo a imaturidade e a pobreza do vocabulário que não tinha muitas oportunidades para ser aperfeiçoado. Guto não freqüentava a escola e passava dois terços do dia na companhia de outros garotos iguais a ele e sempre abaixo dos seus dezesseis anos, porque gostava de ser autoritário e mostrar-se superior. Os cabelos ruivos, achatados e ressequidos pelo contato constante com o sol direto e a pele quase sempre queimada e escurecida, pareciam mais acentuar seu jeito imperioso.
Algo me dizia que o contato com aqueles dois seria indício de mau agouro e um péssimo dia para o meu dia já péssimo. Assim sendo, tentei esconder o verdadeiro motivo que me levara a estar ali tão longe do rancho.
– Olha quem está aqui! O nosso campeão de futebol – Rodolfo soltou estas palavras assim que conseguiu reconhecer-me e mesmo antes de encostar a canoa.
– Olá, Rodolfo! Oi, Guto! Como vão? – Procurava mostrar-me natural mas o esforço era grande porque sentia medo deles. Eles não me cumprimentaram. Desceram e puxaram a canoa para terra; Guto veio em minha direção.
– Boa tarde! – disse, estendendo-me a mão. Seu tom era sarcástico; eu correspondi sem dizer palavra. Ele prosseguiu: - Não sabia que era tão bom de bola. Não gosto nada de perder. Aliás, fico furioso quando isto acontece; não é mesmo, Rodolfo? – Rodolfo nada respondeu. Tinha toda a sua atenção voltada para o alto das árvores, onde os bichos continuavam envoltos em seu espetáculo particular. – Olha! – falou para o amigo, que não lhe deu muita atenção embora tivesse ouvido perfeitamente – aqueles não são os macacos cinzentos? Há dezenas deles lá em cima; ainda bem que estão do lado de lá e deste lado estamos protegidos. Mas não sou idiota de permanecer aqui por muito tempo. O rio não é largo e as árvores são numerosas. Não podemos ficar muito tempo aqui, Guto, vamos embora. O sarcasmo de Guto misturou-se ao meu desespero. Comecei a pressentir algo de vingativo em suas atitudes.
– Vocês jogaram muito bem; só ganhamos mesmo porque tivemos muita sorte – falei, para ver se criava um clima um pouco mais amistoso. Minha estratégia não deve ter funcionado. Guto era desses moleques que sentiam prazer em molestar os outros, colocando-os em desvantagem; por isso sempre escolhia como companhia menores do que ele em idade e no porte físico. Desse jeito conseguia manipulá-los mais facilmente a seu bel prazer; e era isto exatamente o que tentava fazer comigo agora.
– Você parece meio pálido e abatido! Será que tudo isto é medo? – Embora o medo fosse indisfarçável, dei-lhe uma outra razão para o meu estado não menos verossímil para a interpretação de Guto.
– É fome; não como nada há quase doze horas. – Notei na expressão dele, a princípio, uma leve demonstração de surpresa, que quase confundi com comiseração, mas logo vi o quanto me equivocara, pois não demorou para que um sorriso sardônico se estampasse em sua fisionomia. Ele virou-se para o companheiro e disse, ainda mantendo a mesma expressão debochada.
– Com que então o nosso amiguinho está faminto, você não ouviu isto, Rodolfo? – sem esperar resposta de Rodolfo, que não deixava de olhar para o alto, continuou – Então, pode considerar-se um rapaz de sorte. Acabamos de fazer uma deliciosa refeição. Mas não se preocupe; ainda sobrou muita coisa e vamos ter o prazer de oferecer a você, não é, Rodolfo?
– Bem... não precisam se preocupar comigo.
– Imagina! Não é preocupação nenhuma. – Já estava de costas e dirigia-se à canoa quando disse estas palavras. Agachou-se e olhou por debaixo de um dos bancos. Ficou algum tempo nesta estranha posição, cômica e supostamente bastante incômoda. Estava de cócoras na areia como alguém que abaixou para fazer as suas necessidades. Uma das mãos puxava a corda que prendia o barco e a outra vasculhava algum paradeiro não muito conhecido. Até que, num dado momento, a canoa estancou ao peso do que ele procurava. Vi então o que era; um enorme cacho de bananas punha-se à vista agora, seguro pelas mãos de Guto. Ele empreendeu um esforço final e conseguiu pô-lo definitivamente para fora da embarcação. Da areia, arrastou-o, não sem dificuldade, até onde eu me encontrava.
Parece que o esforço que fez deixou-o irritado. Se antes já não deviam ser louváveis as suas intenções, agora então tinha motivos seus para descarregar de alguma forma sobre alguém (este alguém seria eu, com certeza) o mau humor resultante do esforço demasiado que teve de fazer para resgatar, de um esconderijo sobrecomum, um simples cacho de bananas. Largou o fardo incômodo e deixou-se cair sentado no capim rasteiro, apoiando o corpo cansado sobre os braços esticados para trás. Ante minha expressão estupefata, antevendo suas intenções, falou, quando se viu refeito:
– Não precisa nem agradecer pelo banquete fausto que te espera. Oito dúzias de bananas não deve ser muito para quem se encontra há doze horas sem comer; deixe-me fazer as contas... – Depois de alguns instantes remexendo os dedos, prosseguiu: - São exatamente oito bananas a cada hora. Eu consigo, com muita facilidade, devorar oito bananas em cada hora, você não, Rodolfo?
– Sim, Guto, sem problemas, sem problemas; mas vê se acaba logo com isto e vamos embora daqui.
– Guto, se eu fosse você, ouvia seu amiguinho. Pensando bem, minha fome já passou; andei comendo uns negocinhos por aqui não faz muito tempo.
– Acontece que você não é eu – gritou, voltando a mostrar-se irritado; – além do mais, ninguém pediu a sua opinião por enquanto; fui claro? Agora vamos, coma! – completou, mais irritado ainda.
O enorme cacho encontrava-se aos meus pés. A mim só restava abaixar e começar a comer as frutas; foi o que fiz. Devo confessar que nunca me pareceram tão deliciosas. A primeira dúzia quase que não senti descer para o meu estômago. Meus gestos eram naturais e até tranqüilos pois, na minha inocência, acreditava mesmo que ele (ou pelo menos o outro, não tão impiedoso, mas não menos frio e indiferente) fosse, a certa altura, dar-se por satisfeito. E poupar-me de uma cruel indigestão, ou de até pior conseqüência. Eu apanhava as frutas, uma a uma e, bem lentamente, descascava-as. E, enquanto mastigava-as, atirava, por cima da cabeça de Guto, de costas para o rio, as cascas sobre as águas. Estas, alheias à cena, cumpriam o seu papel de conduzir alhures o corpo estranho para um destino ignorado.
A certa altura do ato forçado pelo sadismo pueril daqueles malvados pequerruchos, comecei a sentir mal estar. Então, parei de súbito, levando uma das mãos ao estômago. Nessa hora abaixei-me para melhor suportar a dor que ameaçava abater-me. Quando olhei para Guto vi, ou imaginei ter visto, um monstrinho encarnado em sua fisionomia. Imediatamente veio-me à lembrança as ameaças de mamãe sobre esses seres do outro mundo, em forma de duendes maus ou bichos papões. Que surgiriam para mim caso, por exemplo, eu não comesse até o final a minha refeição. Quando associei as duas situações, meu mal estar aumentou e deixei-me cair sentado e quase sem forças. Não tanto pelo excesso das bananas que havia comido, que não chegavam a uma dúzia mas, pior ainda, pela visão horripilante que acabava de ter.
Em meio a um momentâneo alívio, o rosto de Guto voltou-me à realidade. O sorriso sarcástico e maquiavélico pouco diferia da figura que se debelara. Ouvi bem claras as palavras saídas de sua boca ao dar-me o ultimato cruel e apavorante: – O que está esperando para terminar sua refeição; está faltando alguma coisa? Pena não ter por aqui alguns pedaços de pão para acompanhamento... ah! ah! ah! – Era só o que faltava. Minha sentença final fora promulgada através destas últimas palavras de meu algoz; fim das minhas esperanças. Comparável à perversidade de Guto só mesmo a apreensão e ansiedade do pequeno Rodolfo.
Eu mesmo não compreendia a razão para tão estranho comportamento. É certo que meus sentidos não correspondiam a minha vontade. Na verdade estava a ponto de desmaiar só em prever as próximas atrocidades de Guto para comigo. Porém Rodolfo encontrava-se quase tão pálido e assustado quanto eu. Será que a simples visão dos macacos seria suficiente para deixá-lo assim?
Acuado, consegui, com muita dificuldade, ingerir mais umas quatro ou cinco bananas. Até um ponto em que Guto passou a não mais esperar que eu, na minha lentidão doentia, descascasse as frutas e as levasse até minha boca, num gesto tão normal quanto seria esperado de alguém no meu estado. Levado por um impacto, não sei se de fúria ou de leviandade, ele começou a arrancar do cacho as bananas, trazendo duas ou mais em cada repelão que dava. Em cada seqüência do seu ato tresloucado, enfiava em minha boca de tal forma estouvada as frutas, que as inocentes esmagavam-se e eu não conseguia fazer coisa outra que tentar cuspi-las e assim evitar que fosse por elas sufocado.
Foi quando, no auge da minha agonia, comecei a gritar desesperado para que parassem com aquilo. – Pelo amor de Deus, Guto, você vai acabar me matando desse jeito; estou ficando sufocado. Pare, por favor! – De cima a baixo, eu era só imundície, minhas roupas estavam imprestáveis. Cascas e melado de banana por todos os lados, em cima e ao redor de mim, desfiguravam por completo o meu aspecto. Guto limpava as mãos em meus cabelos e corpo, enchendo-os de nódoa, enquanto proferia expressões de delírio sádico e mordaz.
– Tome! Farte-se do seu alimento predileto, você não adora macaquinhos espertos? Então deve adorar também a fruta predileta deles, não estou certo? Responda! – É claro que não podia responder. Tinha nessa hora duas enormes bananas entalando-me de tal forma que nem um único gemido conseguia emitir.
Porém, não seria desta vez que iria sucumbir às torturas destes dois desajustados. A salvação veio do céu em resposta às minhas orações silenciosas. Quando já perdia todas as forças, ouvi um troar de galhos secos que se partiam seguido de lancinante grito. Guto arregalou os olhos para cima e fez uma expressão de espanto sem precedentes para mim. Como uma lebre, largou meus ombros e correu, tentando ganhar o rio. Mas, prestes a alcançá-lo, foi violentamente jogado nas águas, graças a um certeiro baque que recebeu nas costas, tirando-lhe o equilíbrio. Rodolfo, não sei como, já se encontrava dentro da canoa, empreendendo esforços para livrar o amigo de uma ridícula situação.
Vi ainda o suficiente para compreender a razão daquele desespero. As remadas de Rodolfo e agora as de Guto atrás dele na embarcação, eram tão fortes e aceleradas que os carregaram dali e fizeram com que, em questão de segundos, desaparecessem como pó na primeira curva do rio. Não fui capaz de contar, mas asseguro que mais de uma dúzia daqueles macacos que brincavam e alardeavam no alto das copas carregadas dos palmeirais, pulavam alvoroçados na beira do rio, de ambos os lados. Já não mais sabia decifrar os sentimentos que me dominavam; se medo, alívio ou fraqueza, ou os três ao mesmo tempo. Só sei que sucumbi, talvez a este último, quando o toque peludo de duas mãos negras envolveram meus ombros. Depois disto, tudo era escuridão.
Voltei a mim, refeito de alguns males e grávido de outros de natureza indescritível. Tão estranho quanto o meu estado só mesmo o lugar onde agora me encontrava e, o que era pior ainda, as criaturas que me rodeavam. Já era manhã do outro dia; teria eu passado ali a noite? Teriam aqueles seres me transportado? Aos poucos, à medida que recobrava a minha lucidez, fui dando conta da minha situação, estranha e inusitada situação. Quatro macacos rodeavam minha cama improvisada à sombra de uma palmeira. Tentei levantar-me para correr dali mas fui impedido. Deitaram meu corpo nu, sem no entanto empreenderem qualquer violência. Estranhei gestos tão delicados vindos de animais selvagens como aqueles. No entanto, qual não foi minha surpresa quando reconheci Pisca entre meus anfitriões! Eles deram passagem para que ela se aproximasse, trazendo um coco em uma das mãos e umas frutas estranhas na outra. Apesar de tudo, consegui esboçar um sorriso de satisfação, mas não sei se poderia também dizer segurança.
Não vou chegar ao extremo de afirmar que me sentia protegido. Mas vivi uma experiência que sinto prazer em narrar e, cada vez que o faço, torno a revivê-la em meu espírito. Mas nunca encontrei nem encontrarei palavras para descrevê-la. Nosso vocabulário não alcança o alto grau de emoção vivido para poder expressá-lo. Por força maior da contingência literária, excluo aqui detalhes dos meus quinze dias passados na convivência dos macacos cinzentos e de Pisca. E foi por intermédio dela e com sua ajuda que logrei conquistar a minha, por assim dizer, liberdade.
A comunicação expressiva no mundo símio é fator preponderante e ainda muito pouco pesquisado por nós, humanos. Intuí esta verdade muito rapidamente e passei a colocá-la em prática, tendo em Pisca grande colaboradora. Suas compridas e negras mãos já me haviam salvado, de certa forma, da morte; agora, dar-me-iam a chave da liberdade. Apesar da minha pouca idade e do conhecimento ainda primário de nossa língua, pude elaborar um sistema de comunicação com pisca, através do uso de sinais. Aproveitei os que ela já utilizava, coloquei-os para funcionar dentro de um padrão favorável às nossas necessidades. E a esses juntei outros, formando uma espécie de código manual de emergência. Isto acabou por funcionar melhor do que eu esperava.
Em pouco mais de uma semana no meio deles, a admiração deixou de ser, em ambos os lados, um fator predominante como era no princípio. Meus companheiros, com exceção de Pisca, já não se importavam tanto com a minha presença. Seguiam sua rotina selvagem, deixando-nos a sós durante a maior parte do dia; senti nessas horas como eram fortes os laços que nos uniam. Aplicando a nossa simples mas eficaz forma de comunicação, passávamos horas muito agradáveis, embora cheias de ansiedade e incerteza para o meu coração. A falta de proteção materna é fator comum entre todos os seres e, neste ponto, para minha sorte, tinha-o em comum com minha amiguinha.
Em nossos diálogos, chegamos a um acordo. Prometi a Pisca que de tudo faria ao meu alcance para levá-la de volta à presença de sua mãe. Em troca, poderia, com a ajuda dela, encontrar a minha. E foi isto o que aconteceu; conquistei sua confiança e ganhei minha liberdade.
Caía a tarde quando entrei no rancho ao lado de Pisca. Se quisesse comparar a atmosfera do meu lar, por ocasião de minha chegada, a uma cerimônia fúnebre, acho que ainda sairia perdendo ou precisasse ser de uma personalidade capaz de consternar meio mundo. Outrossim vi, na tristeza de minha mãe ao contemplá-la, o resumo da frustração advinda de um sentimento de perda, duplamente confrangedor porque não deixa escolha. Perde-se, nesses casos, o que nunca se tentou ganhar por ser direito adquirido.
Quando adentrei a ante-sala vi mamãe através da porta que estava entreaberta. Por alguns minutos, com Pisca ao meu lado, segurando uma de minhas mãos, permaneci imóvel, com certo receio de causar-lhe um choque com minha chegada inesperada. Ela estava sentada na poltrona menor, mostrando-se de perfil; sobre a mesinha de centro, um vidro de remédio e um copo com água pela metade.
Deixei então que ela avistasse o animal e, por associação, descobrisse a minha presença. Não precisei de muito tempo para que isso acontecesse. Mamãe, numa fração de tempo inacreditável, já me tinha em seus braços apertado, compartilhando com ela um momento inesquecível de felicidade e reencontro. Ela estava de tal forma exultante e arrebatada com a minha presença inopinada que não sabia se usava seus braços para envolver meu corpo ou se os erguia para o alto e agradecia aos céus por saber-me são e salvo. Não sabia se me enchia de beijos com seus lábios úmidos pelas lágrimas incontidas de felicidade ou se murmurava frases guardadas pela dúvida e agora impossíveis de segurar, posto que a certeza tornou-as nossa confirmação de união eterna e paz duradoura.
– Oh! Meu filho, onde você andou todo este tempo? Como tenho sofrido!
– Estou aqui, mamãe, estou aqui!
– Sim, graças a Deus você voltou, estamos juntos novamente; mas me deve uma explicação, temos muito que conversar.
E foi assim que tudo aconteceu. Embora não tenha obliterado um detalhe sequer do ocorrido comigo naquelas duas semanas em que me afastei de casa, não posso afirmar que consegui convencer as pessoas a quem relatei minha experiência. Gabriel achou-me saudável demais para não acreditar que eu estivesse fora do rancho – talvez na casa do Rio de Janeiro – exibindo Pisca aos meus parentes e amigos, causando inveja e admiração. Rodolfo, nas férias seguintes, não o vi pelas proximidades e Guto, sempre que o encontrava, mostrava-se totalmente desconcertante e receoso de alguma espécie de retaliação por minha parte. Não conseguia permanecer em minha presença por mais de cinco minutos; sempre pretextava uma escusa e se ausentava.
Pisca viveu mais nove anos, durante os quais não houve paradeiro mais ansiado e propício às minhas férias. Quando já trabalhava e era maior e independente, discordava de mamãe quanto à existência de um outro refúgio mais adequado ao nosso descanso anual e lá ia eu em direção a minha predileta aventura. Até que, com a morte dela, morreu também meu interesse pelo rancho, ou melhor, nunca haveria, então, lugar tão impróprio para as minhas férias. A lembrança de Pisca ficaria em meu coração somente ou, quem sabe, não suportaria o contato com o que foi nosso e deixou de ser. Nunca mais voltei àquele lugar. Tenho hoje uma bela propriedade rural, onde os animais fazem parte do meu espaço. Possuo várias espécies: cachorros, papagaios, cavalos e até uma onça. Mas a espécie de Pisca não tem vez por aqui. Só ela existe e continuará existindo e a razão é simples: Embora o meu amor por animais continue em alta, o que fui com Pisca e o amor que senti naquela época – pueril, quem sabe? – não existe mais. Morreu com ela.