A FORMIGUINHA E A ESTRELA (Homenagem a Dra. Valdira C. Mourão)

Davi tinha entre quatro e cinco anos quando certa manhã acordou queixando-se de uma dorzinha de dente. Marcamos a sua primeira consulta. Havíamos sido informados da competência da referida dentista no trato com as crianças e levamos o nosso filho até lá.

Não adiantamos nada. As perguntas inevitáveis de um garoto de cinco anos flutuavam no ar sem resposta ou acompanhadas de respostas vagas e imprecisas. Tudo isto era proposital. Não éramos versados neste tipo de pedagogia infantil. Ainda hoje, minha esposa e eu, carregamos traumas dos tempos de infância, quando quase que encoleirados, puxados e arrastados, éramos obrigados a fazer a infausta visita odontológica anual. Suadeira, dor de barriga, taquicardia, medo, mão gelada... Tudo isso era a sintomatologia antecipada desta tal visita e que ainda hoje repercute em nós. Ficaram as marcas psicológicas. Claro que não queríamos isso para os nossos filhos.

Hora marcada, lá estávamos nós. Sala de espera colorida com motivação e personagens infantis da época. Música suave. Ambiente agradável e relaxante.

De branco, sorriso aberto e acolhedor, ela chega à porta e chama:

-Davi! Davi Saraiva Macêdo.

Então Davi é recebido num um abraço cheio de ternura e afeto, juntamente com alguns elogios:

- Que menino bonito! Parece um rapaz. Olha que sorriso lindo! Dentinhos bem branquinhos... Sinal de que escova esses dentinhos todos os dias ao acordar e depois das refeições. É a primeira vez que você vem no consultório da tia. A tia Valdira está muito contente por você ter vindo, viu? Vamos entrar?!

Entramos os três. Sentamo-nos à parte e ela continuou a sua “pedagogia da confiança” baseada na surpresa e na curiosidade infantis.

- Tia Valdira, eu vou sentar nessa cadeira alta? – perguntou Davi.

- É. Comprei esta cadeira só pra você sentar. Você não sabe uma coisa! Fica olhando pra ela.

E apertava com o pé um botãozinho que fazia a cadeira subir e descer, subir e descer. Ele então comentou:

- Tia essa cadeira parece um elevador. Eu já andei de elevador. A senhora já andou?

- Já andei de elevador, Davi. Realmente esta cadeira parece muito com um elevador. Vamos sentar? Sobe, não precisa tirar os sapatinhos não. Olha aqui: tem um plástico que não deixa sujar a cadeira. Sente mais pra cima um pouquinho. Assim está ótimo. Agora vou ligar o elevador.

A cadeira ia subindo, subindo... De repente Dra. Valdira tirou o pé do botãozinho e a cadeira parou na altura certa. Davi estava radiante. Tudo era novo!

Depois de colocar a máscara e lavar bem as mãos, enxugou-as cuidadosamente e colocou as luvas. Sentou-se no banquinho.

- Pronto Davi? Posso começar?

- Tia pra que a senhora ta de máscara e luva?

- Eu estou de máscara para que a formiguinha não pule na minha boca e coma os meus dentes. E as luvas servem para proteger minhas mãos do ataque das formiguinhas.

- E onde é que tem formiguinha?

- Nos seu dentinho. Ele doeu hoje cedinho?

- Doeu só um pouquinho.

- Depois dói mais porque ela vai comendo o dentinho com mais força. É preciso tirar essa formiguinha.

- Tia, e como é que cria a formiguinha?

- Quando a gente se alimenta e come muito doce e chocolate, ficam uns pedacinhos bem pequenininhos entre os dentes. Se a gente não escovar direito a formiguinha come o dentinho que ficou cheio de alimento. Entendeu?

- Eu comi chocolate e nem escovei.

- Tá vendo? Por isso é que a formiguinha está no dentinho do Davi. Agora abra a bocona. Bem aberta. Isso.

Acendeu a luz amarelada. Focou o dente estragado. Tomou o explorador e disse:

- Essa formiguinha ta danada! Ta se escondendo da tia. A tia vai colocar a pontinha deste ferrinho pra ver se ela aparece.

- Ai tia, tá doendo!

- Vamos já matar essa formiguinha. Ela já está mordendo outra vez. Êta bichinha danada! Davi, você gosta mais de formiguinha ou de estrela?

- De estrela. Estrela é bonita e só tem no céu. Formiga tem na terra e morde a gente.

- Pois a tia vai tirar a formiguinha e colocar uma estrela no lugar. Teu dentinho vai ficar lindo!

- Quer dizer que a minha boca vai parecer o céu?

- Claro que vai. Vamos começar a tirar a formiguinha? Primeiro a tia vai fazer o seu dentinho dormir. Uma pomadinha na gengiva, o lugar que o dentinho fica pregado. Deixe a bocona bem aberta. Bem abertona.

Dois, três minutos depois, apanhou a seringa com o anestésico (enrolada dentro de um guardanapo para que ele não visse), e retomou:

- A tia vai pegar a formiguinha. Se você sentir um beliscãozinho é porque a unha da tia está muito grande e pode escorregar e arranhar a gengiva. Aplicou o anestésico. Davi permaneceu calmo e sereno. Nem se mexeu.

Alguns instantes depois foi a vez do motorzinho (quem se arrepiou fui eu! Que trauma!) Ele olhava insistentemente. Ela percebeu e falou:

- Davi, esse motorzinho limpa e lava. Coloca aqui a tua mão. Encostou devagarinho e apertou o jato de água.

- Que legal esse motorzinho. Ele limpa e lava o dente. E o que é que enxuga?

- Daqui a pouco vou mostrar a você o enxugador. Não pode mais fechar a boca que a tia vai limpar e lavar o dentinho.

Enquanto eu trincava os dentes, os ouvidos se alvoroçavam e os nervos ficavam à flor da pele, Davi ali sossegado, sem se mexer, vez por outra piscando os olhos como se o sono estivesse chegando. Eu boquiaberto, pasmo. Cadeira de dentista relax!!! Eu nunca havia visto.

Terminada a primeira parte, Davi ressonava. Ressonava profundamente. Registramos este momento imperdível através de uma foto.

-Davi! Davi! A tia já tirou a formiguinha, limpou e lavou o local. Quer ver o enxugador? Coloca a mão aqui.

E soprou o jato de ar quente.

- Êta tia, enxuga mesmo! Também é um pouco quente!...

- De agora em diante não pode mais falar. A tia vai colocar a estrela...

- Eu posso ver só o buraco que a formiguinha fez?

- Pode.

E colocando um espelho à sua frente, pediu que abrisse a boca e indicou com o explorador o local exato.

- Tia, que buracão! Toda a vez que eu comer doce ou chocolate eu vou correndo escovar.

- Pronto. Boca bem aberta. A tia vai colocar uns pedaços de algodão pra evitar que a estrela se molhe. Estrela não gosta de se molhar.

Amálgama no ponto. Sugador trabalhando. A estrela começa a ser colocada. Davi dorme. Para que não feche a boca involuntariamente um “amparo” de borracha. O trabalho prossegue. Dra. Valdira dá os retoques finais. Davi ainda dorme por um bom tempo após o término da obturação. Quando acordou, espreguiçou-se, bocejou umas duas vezes, olhou para um canto e para o outro e arrematou:

- Cadê a minha estrela, tia Valdira?

- Já coloquei. Você estava dormindo, nem viu. Quer ver?

- Eu quero.

Dra. Valdira tomou novamente o espelho, mandou que abrisse a bocona, colocou o espelho à sua frente e perguntou:

- Tá vendo?

- Minha boca tá bonita só com uma estrela e quando ela estiver parecida com o céu?

- Não Davi. Esta estrela é para lhe lembrar de escovar os dentes todos os dias ao acordar, ao deitar, e depois de cada refeição. Essas estrelas não são verdadeiras; as verdadeiras moram no céu.

E Davi mostrava aos coleguinhas, cheio de orgulho, a estrela que ganhara. Hoje tem a idade de 21 anos e graças a Deus e à competência da Dra. Valdira, dentista para ele não é problema, pelo contrário, é a solução.

Antonio Luiz Macêdo
Enviado por Antonio Luiz Macêdo em 16/01/2012
Código do texto: T3443504
Classificação de conteúdo: seguro