O SARGENTO VERDE (em prosa)

O SARGENTO VERDE (16 jul 11)

(conto popular brasileiro recontado por William Lagos.)

Era uma vez um homem muito rico, que tivera somente uma filha. Esta era muito linda e fora criada com o maior carinho. Tinha tudo do bom e do melhor, todos os seus caprichos eram satisfeitos... Tinha gatinhos, cachorrinhos, canários e até um mico... Contudo, mesmo rica e tão paparicada, não se tornara em absoluto convencida e orgulhosa. Muito ao contrário, tratava todos com respeito e amizade e preferia fazer as coisas sozinha do que mandar fazer pelas criadas. Sempre foi estudiosa e tirava as melhores notas na escola. Os pais lhe pagaram aulas de música e de dança, de natação e de pintura e até mesmo, um professor de esgrima, que a ensinou a lutar com uma espada, o que é bastante raro para uma jovem, até mesmo nos dias de hoje.

Os pais pretendiam que ela se casasse com alguém tão rico quanto ela ou, pelo menos, com um rapaz de ótima família, que fosse inteligente e trabalhador. Mas um dia, apareceu um jovem garboso, montado em um lindo cavalo alazão, que passou pela frente da sua casa e viu a moça sentada em uma das sacadas. Sem hesitar, desmontou do cavalo, amarrou as rédeas em um galho de árvore e bateu à porta. Foi atendido pelo mordomo e pediu para falar com o dono da casa. O chefe dos criados indagou se havia marcado entrevista e ele disse que não, mas que era um assunto urgente e do interesse de seu patrão e que tinha certeza de que seria bem recebido.

O mordomo, ao vê-lo tão bem vestido e educado, com um aspecto de pessoa muito importante, mandou-o entrar para a sala de visitas e foi anunciar a visita a seu patrão. Assim que ele chegou, o jovem levantou-se e lhe fez uma reverência com a cabeça, em sinal de respeito. O homem estendeu-lhe a mão e perguntou a que vinha. O rapaz, sem hesitar, disse que queria comprar aquela moça tão linda que vira na sacada. O pai ficou atônito e, por um momento, não sabia o que dizer. Mas assim que se recobrou, tocou a campainha, sem dizer palavra, chamando o mordomo para colocar o mal-educado no olho da rua. Mas o rapaz entendeu rapidamente o que pretendia e lhe falou: “Por favor, não se ofenda, meu senhor! Não tive má intenção. Eu não sou daqui e, em minha terra, é a coisa mais natural comprar uma moça por um saco de ouro. Ninguém se ofende, não há desdouro nenhum nisso... Por favor, escute com paciência o que pretendo lhe dizer.”

O mordomo chegou, mas o dono da casa lhe fez um aceno, indicando que podia retornar a seus afazeres. Assim que ficaram sós, indagou do rapaz, que apesar daquela proposta insólita, lhe parecera bastante simpático e educado: “O que pretende me dizer, então?” “Meu caro senhor, no momento em que vi sua filha, percebi que tinha de me casar com ela. A minha intenção é a mais honrosa possível. Se o senhor não se ofender, aceite o saco de ouro que lhe ofereço como pagamento pelo dote. Ou este costume também não existe por aqui...?”

Na verdade, existia (e ainda existe em muitas parte do mundo). As famílias gastavam muito dinheiro criando e educando uma filha e era costumeiro que o noivo ou sua própria família, a quem a moça ficaria pertencendo doravante, pagassem o dote, que era uma importância em dinheiro correspondente ao valor atribuído à jovem e aos gastos com sua criação. Mais tarde, esse costume até que se inverteu: era o pai da moça que passou a pagar um dote ao noivo para que lhe desposasse a filha; se ela enviuvasse ou o casamento se desfizesse por algum motivo, o dote retornava para ela e para os filhos que eventualmente tivesse.

E como o rapaz foi falando de forma tão cortês e delicada, o pai se abrandou e lhe permitiu fazer a corte à sua filha. “Se vocês se derem bem e ela estiver disposta a aceitá-lo, permitirei o casamento. Mas veja bem: não vou obrigá-la. Não preciso de seu ouro, sou muito rico e tenho em meu cofre seis vezes o conteúdo desse saco, além desta casa, uma fazenda e muitas outras propriedades. Mas faça-lhe a corte. Caso se acertem, celebraremos a boda logo a seguir...”

Apertaram-se as mãos e o dono da casa indagou o nome do rapaz, que prontamente disse chamar-se Lúcio... “Ora, que coincidência, o nome de minha filha é Lucinda! Até nos nomes vocês dois combinam, acho que foram feitos um para o outro...” Ele já estava sucumbindo ao encanto do rapaz... “Realmente, meu amigo, espero que se acertem, gostaria muito de tê-lo por genro...”

Apresentado à moça, rapidamente os dois se agradaram um do outro. Mas a lábia do rapaz não funcionou com a sogra, quando ele disse preferir casar no cartório e não na igreja. “Ah, não!” disse ela. “De jeito nenhum! Criei minha filha com todo o carinho e sempre sonhei vê-la entrar na igreja, de véu e buquê, com um vestido branco de cauda longa arrastando sobre o trilho de veludo vermelho, o coral cantando, o órgão tocando, os sinos batendo, o coroinha sacudindo incenso enquanto o padre rezava a missa com os noivos ajoelhados diante do altar... Ai, sonhei tanto com isso! E as alianças têm de ser abençoadas pelo padre, como garantia de que o casamento foi feito no céu!...”

O rapaz então propôs que o casamento fosse feito no salão de festas da mansão em que eles moravam. “Olha, se a senhora quer toda essa pompa, vai ser muito melhor aqui em sua casa. Eu passei pela igrejinha da vila e é muito acanhada... A senhora está sonhando com uma coisa impossível, cabem, quando muito, umas sessenta pessoas. E depois da boda, já se celebra a festa no salão mesmo... É muito mais prático...”

E tanto falou, que a sogra se convenceu. A igreja ficava na outra quadra, dava para se ouvir quando o sacristão tocasse o sino... Só ia mesmo faltar o órgão, mas o coral podia vir e o regente tocava no piano da casa... A menina estava perfeitamente de acordo, apaixonara-se pelo rapaz e não se importava em casar na igreja ou no cartório. De qualquer modo, o novo governo exigia o casamento no cartório para ter validade e assim se juntavam as duas coisas, o padre casava e depois o escrivão e o juiz de paz faziam a cerimônia civil em uma mesinha de canto, com todos os convidados presentes... “Bem,” disse o dono da casa, esfregando as mãos de contente, “naturalmente você vai se hospedar aqui até o dia do casamento...” Então chamou o mordomo, mandou preparar o quarto de hóspedes e lhe disse que desse ordem ao estribeiro para desatar as rédeas do cavalo e levar o animal até a cocheira da mansão, que o escovasse bem e lhe desse a melhor aveia para comer.

Ficaram todos muito satisfeitos, mas o padre empacou. “Ah, não, não posso! Casamento é coisa de igreja!... Essas novidades de casamento civil são invenção desse governo dominado pelos maçons e não têm valor aos olhos de Deus! E os noivos tem de tomar a hóstia, não é conveniente tirar o Santíssimo de dentro do santuário... Vou ter de fazer uma cerimônia de consagração primeiro, para adequar o seu salão para a celebração da eucaristia...” Mas o pai da noiva prometeu pagar todas as despesas, o padre, o sacristão e o regente e ainda dar uma gorjeta para todos os cantores do coral... até que o vigário se convenceu.

Mas, de repente, ele indagou: “Esse rapaz parece muito rico e educado... Mas será que ele é batizado?... Se não for, não posso fazer o casamento...” Chamaram Lúcio, que chegou de mãos dadas com a noiva; ao lhe perguntarem, ele ficou meio vermelho e confessou que não era batizado e nem queria ser. “Mas como?” disse o vigário. “Você tem de se batizar!... Mesmo que seja de uma dessas seitas que não batizam as crianças, tem mais do que idade! E precisa se converter e ser batizado para poder se casar!” Mas o noivo disse que não era de seita nenhuma, que era até um bom servo de Deus, mas que não queria saber de batismo.

Mas o padre fincou o pé: “Eu só os caso, se o noivo for cristão! Como é que vou servir-lhes a comunhão, se esse rapaz nunca se batizou?” Lúcio então resmungou que era por causa desse preconceito idiota que preferia mesmo só se casar no cartório, mesmo porque o único casamento que tinha valor legal era o civil, que casamento religioso era coisa de gente antiga... O vigário se ofendeu, dizendo que ateu ele não casava... Mas o rapaz explicou que não era ateu coisa nenhuma, até acreditava muito em Deus Pai e tinha grande temor de Jesus Cristo e mais ainda do poder do Divino Espírito Santo. Mas o problema é que ele só tinha vinte e cinco anos e prometera à sua mãezinha, em seu leito de morte, não se batizar antes dos trinta, para saber bem o que estava fazendo e não quebrar as promessas depois. E que de jeito nenhum ia quebrar o juramento feito à própria mãe, que era muito mais importante que padres ou igrejas. Queria casar no cartório e pronto!

Lucinda se convenceu facilmente, o padre saiu da casa batendo os pés de raiva, o pai da moça comentou que seria fácil trazer o escrivão e o juiz de paz até a casa... mas a mãe não se convenceu. Não houve argumento, súplica, choro, nem vela. A filha dizia que ia ficar de coração partido. O marido que já tinha empenhado a sua palavra. Mas ela fincou o pé: Lucinda tinha só quinze anos, era menor de idade e ela não dava o consentimento. Tinha desistido do casamento na igreja, mas que tinha que ser abençoado pelo padre e fazer tudo direitinho, com véu, buquê, vestido branco de cauda longa, coral cantando, sino batendo na igreja ao lado e tudo o mais, lá isso tinha!... Casar só no civil era pecado! E tanto insistiu, que o casamento foi desfeito, para grande constrangimento do marido, do noivo e até de Lucinda.

Lucinda foi para dentro com a mãe e o ex-sogro ficou no salão com o noivo, abanando a cabeça. “Meu filho, mulher, quando encasqueta uma ideia na cabeça, não tem jeito!... Eu lastimo muito, porque já o considerava meu genro... Sabe como me afeiçoei a você nestes dias em que se hospedou aqui em casa...” “Pois é,” disse Lúcio, “nessa história toda eu é que saí logrado!...” “Mas não, meu filho, eu vou lhe devolver o saco de dinheiro que me deu como dote!...” “Ora, quem se importa com dotes ou com dinheiros!... O que eu queria era a mão de sua filha!... Estou realmente enamorado dela e sei que seria a mulher de minha vida!... Mas está dito: vou embora amanhã de manhã mesmo, para nunca mais voltar!...”

O pai de Lucinda tentou consolar o rapaz. “Não é assim, se você gosta tanto dela, espere até ela fazer dezoito anos... Aí, não vai ser mais preciso o consentimento da mãe dela... E você tem a minha palavra que lhe darei todo o apoio, só que agora...” “Não adianta,” disse Lúcio, “tenho de fazer uma viagem e já queria que fosse a lua-de-mel. Mas paciência...” “Ah, por favor, não fique assim!” disse o sogro, comovido. “Se eu puder fazer alguma coisa. Olhe, vou no cofre buscar o dinheiro do dote...”

“O senhor não pode fazer nada... Mas já que vai trazer o dinheiro, quem sabe jogamos uma partida de dados, só para passar o tempo...? Eu tenho outro saco de ouro no alforje... Ainda é cedo demais para a gente se deitar... No estado em que eu estou, não vou mesmo conseguir dormir, de tanta tristeza...” O sogro assentiu e cada um foi buscar o seu saco de ouro. O pai de Lucinda quis entregar diretamente e pegar mais dinheiro para o jogo, mas Lúcio não quis saber. “Não, esse dinheiro do dote eu já lhe dei e fica pela hospedagem e pelas horas de amor e de alegria que passei com Lucinda... É um preço baixo por tanta felicidade, pena que acabou...”

E começaram a jogar, Lúcio perdia sempre, até que quase se foi o segundo saco de ouro... O sogro tinha sido tomado pela febre do jogo... De repente, a sorte virou e Lúcio recuperou não somente um, mas os dois sacos inteiros... O ex-futuro sogro não se abalou muito, porque não era mesmo dinheiro dele, mas o jogo tem dessas coisas, estavam bebendo cerveja e petiscando e, quando se deu conta, já tinha trazido mais outro saco de seu cofre, perdeu de novo, foram dobrando as apostas e Lúcio ganhava sempre... Meio constrangido, o dono da casa mandou o mordomo dormir, que não ia mais precisar dele e o criado se retirou.

O sogro estava afogueado, mas não desistiu. Para recuperar as perdas, gastou todo o ouro que tinha e foi apostando os animais que possuía, depois a fazenda, depois suas outras propriedades, enfim a própria casa... perdendo tudo para Lúcio. O rapaz então lhe mostrou sua verdadeira cara: “Faço-lhe uma proposta: aposto tudo o que lhe ganhei em troca de Lucinda...” O sogro estava desesperado e aceitou: lançaram os dados e, mais uma vez, o ex-futuro genro ganhou. O pai ficou se abanando, quase teve um ataque e não sabia mais o que fazer.

Mas então Lúcio lhe disse: “Escute bem, ganhei todos os seus bens e até mesmo comprei sua filha com esta última aposta... Se quiser, com todos esses recibos que me assinou, posso ir ao fórum e exigir que você seja despejado, levando só a roupa do corpo: é um direito que me pertence, não é verdade?” O pobre homem assentiu. “Se quiser, posso também ir embora com Lucinda, sem porcaria nenhuma de casamento e nem papel passado: eu a ganhei no jogo, não é verdade?” O pai não sabia o que dizer, mas havia assinado a escritura da fazenda e da casa...

“Bem, meu caro sogro,” disse então Lúcio. “Não é isso que eu quero, não vim aqui para o empobrecer. Vamos fazer o que eu propus desde o começo. Amanhã o senhor chama o escrivão e o juiz de paz e tratamos o casamento civil para depois de amanhã. Aí dá tempo para preparar a festa. Eu lhe devolvo todo o ouro, inclusive os dois sacos que eram meus, sou rico, tenho muito mais e não me fará falta, rasgo os papéis que o senhor assinou e me caso com a menina, sem essas besteiras de igreja ou de batizado. O senhor não perde nada, quem perde sou eu, porque a sua filha já é minha. Não pode haver proposta mais generosa. Mas está no senhor: a decisão é sua, embora não me pareça haver dúvidas.”

O sogro assentiu, aliviado, e os dois foram se deitar, cada um no seu quarto. No outro dia, de manhã cedo, o sogro chamou a mulher e a filha e lhes comunicou sua decisão. Não falou nada sobre a aposta, mas Lucinda desconfiou, porque espiara os dois jogando... A mãe gritou e esbravejou, mas ele insistiu, que era o dono da casa e o pai da moça e a sua palavra era a mais importante: “Você vai assinar, sim!.” “Pois não vou!...” “Se não quiser, eu digo ao escrivão que coloque na certidão que você é analfabeta e não sabe assinar... Aí eu mesmo assino de cruz no seu nome.” Lucinda ficou muito satisfeita e abraçou o noivo, mas depois saiu para consolar a mãe. O escrivão foi chamado e como o futuro sogro era o homem mais rico da vila, chegou prontamente e acertaram o casamento para a manhã do dia seguinte.

Para se consolar, a mãe se ocupou com os criados para preparar a festa, mandou convites para todos os amigos, chamou todas as costureiras da vila para prepararem o vestido que tanto queria para o dia seguinte... Lucinda passou namorando, feliz da vida, enquanto o pai se encerrava no escritório depois de tomar as providências necessárias. Lúcio até prometeu à sogra que daí a cinco anos, quando completasse trinta, se batizaria e casaria em uma igreja qualquer de sua própria terra.

Mas nessa noite, Lucinda teve um sonho. Como era costume naqueles tempos, além dos padrinhos carnais, Nossa Senhora fora incluída como madrinha... E então ela lhe apareceu e falou, com voz suave e meiga: “Minha filha, vais te casar é com o Cão! Ele ganhou tudo o que era de teu pai e o obrigou a apostar a tua mão para recuperar os seus bens, mas perdeu tudo. O que o diabo quer é te levar de corpo e alma para o seu reino medonho!... Não te podes negar ao casamento, senão vocês serão jogados na rua da amargura sem um centavo no bolso e não queres isso para teus pais. Mas não precisas descer ao Inferno com teu noivo.”

Lucinda, ainda em sonhos, indagou o que faria. Nossa Senhora respondeu: “Amanhã, depois de assinares os papéis, não deves ficar para a festa. Não comas e não bebas nada, só deves tomar um licor e dizer a teu noivo que queres ir embora com ele sem perder mais tempo. Teu pai vai querer te dar um cavalo forte, bonito e ricamente ajaezado, mas não aceites. Insiste que queres montar o teu velho Baio, em quem aprendeste a montar e que praticamente te criou. Logo adiante, vais encontrar uma encruzilhada. O teu marido vai querer seguir pela esquerda, mas isso será para tua perda. Dobra à direita e, quando ele voltar para te chamar, tira o rosário que eu te dei quando fui te beijar no teu berço. Ele não vai aguentar a visão da cruz e do santo rosário e irá estourar em uma nuvem de enxofre. Ficarás livre dele para sempre. Mas isso não é tudo. Em vez de voltares para casa, continua montada e seguindo o caminho da direita enquanto rezas o terço inteiro, sem pular nada, até o fim: deixa o Baio te levar aonde quiser. Segue o meu conselho e serás feliz.”

Nossa Senhora desapareceu em um halo de luz e a moça adormeceu de novo, só se acordando no dia seguinte, na hora de se preparar para a boda. Não esquecera de uma só palavra, mas não contou nada a ninguém. Depois do casamento, tirou o vestido de noiva e colocou uma roupa simples de seu enxoval para a viagem. Os convidados estavam festejando, mas ela disse que só queria um licor e insistiu com o marido que preferia ir embora com ele nesse momento mesmo. Lúcio ficou encantado e concordou. Quando ela viu o lindo cavalo que seu pai queria lhe dar, recusou. Queria viajar em seu Baio velho, no qual tinha toda a confiança e sabia que jamais a derrubaria. Houve uma certa resistência, porque o cavalo estava muito magro e doente, disse-lhe o pai que ia morrer na viagem, mas acabou mandando selar o Baio.

Lucinda montou no cavalo amigo, seu enxoval nos bornais da sela e seguiu pelo caminho com o marido, parecendo muito alegre e despreocupada. Em dado momento, indagou-lhe: “Seu nome é Lúcio mesmo, meu marido?” O rapaz soltou uma gargalhada, muito contente: “Não, meu nome é Lúcifer, mas é muito comprido, não é? Preferi encurtar...” No mesmo instante ela soube que Nossa Senhora tinha toda a razão. Seu marido era Lúcifer, o Cão, o Diabo... Quando chegaram à encruzilhada, ele tomou à esquerda, mas ela puxou as rédeas e enveredou pela direita, porque sabia que a estrada da esquerda conduzia à perdição. Lúcifer voltou para puxar-lhe as rédeas, mas ela tirou o rosário de dentro do peito e o balançou diante da cara do marido, que soltou um berro de raiva, percebendo que ela lera em seu coração e estourou junto com o seu cavalo diabólico, desaparecendo os dois numa nuvem de enxofre!

Lucinda persignou-se e imediatamente começou a contar as contas do rosário e a rezar o terço, enquanto o cavalo seguia mansamente pela estrada da direita. No momento em que rezou o último Pai Nosso, o cavalo estacou diante de uma vala que se abria no caminho. Virou a cabeça para ela e lhe pediu para desmontar. Lucinda ficou muito alegre: “Mas você fala, cavalinho amado?” “Sou encantado, como pode ver, mas só agora chegou o momento de falar. Se eu falasse antes, não poderia ajudá-la agora, porque as pessoas são supersticiosas e me matariam ou me venderiam para um circo. Esperei que completasse quinze anos, porque só você pode me desencantar. Se fizer exatamente o que eu lhe disser, o encantamento será quebrado e pode ter certeza de que a recompensarei ricamente pelo favor que me prestou.”

Lucinda apeou e, conforme o cavalo lhe ia dizendo, abriu um dos bornais e nele encontrou um enxoval de homem: uniforme verde de soldado, botas, um capacete com uma pena de galo e uma tesoura. Cortou os cabelos, que jogou na vala, a qual imediatamente se fechou, engolindo seus cachos castanhos. Então a tesoura lhe cresceu na mão, transformando-se em uma espada que trazia até a bainha. Lucinda prendeu a espada no cinto e voltou a montar. O Baio parecia agora forte e descansado e foi galopando até encontrarem um castelo, que se erguia no meio de um lindo jardim.

Seguindo as instruções do Baio, Lucinda se ofereceu como soldado, mas o rei viu nela um rapaz muito garboso e o nomeou seu sargento, porque o anterior estava muito velho e se havia reformado. Parecia um homem tão bonito e simpático que os soldados não se importaram por receberem um estranho como seu novo comandante, não tinham mesmo de combater, eram só a guarda do palácio e o país estava em paz, só colocaram nela um apelido: o “Sargento Verde”. Lucinda estava acostumada a mandar nos criados de sua casa e assumiu facilmente o comando.

Infelizmente, a rainha também gostou muito dele. Era muito mais moça do que o rei, que havia perdido o filho e a filha e que enviuvara depois que sua esposa morrera de tristeza. Ele só havia casado para seguir a opinião de seus conselheiros, mas não tinha o menor desejo de ter outros filhos. Assim, a rainha estava muito solitária e se apaixonou pelo sargento. Pedia que ele a escoltasse em passeios pelo jardim e um dia, confessou o seu amor por ele. Lucinda simplesmente respondeu: “Senhora, eu jamais trairei o meu rei.” Pediu licença e se retirou, deixando a rainha muito despeitada.

Sentindo-se rejeitada, a rainha foi cochichar ao ouvido do rei que, durante o passeio, o Sargento Verde se gabara de ser capaz de subir as escadarias do palácio montado em seu cavalo, jogando o tempo todo três laranjas para o ar e as aparando em um copo, sem deixar cair nenhuma! Assim ela pensava que o sargento ficaria desprestigiado por falhar na tentativa. O rei mandou chamar o Sargento e lhe perguntou se era verdade o que a rainha lhe dissera. O Sargento respondeu que jamais desmentiria a rainha e que iria tentar.

Muito preocupada, Lucinda foi conversar com o Baio, que lhe disse: “Não se amofine, minha querida. Amanhã subiremos juntos as escadas e você não vai deixar cair uma só das laranjas...” “Você vai me ensinar como se faz?” “Não é preciso que lhe ensine, pegue as laranjas e a taça de cristal que estão em meu bornal e, na hora, saberá como fazer.” Dito e feito: no outro dia subiram e desceram as escadarias, o Sargento jogava as laranjas para o ar o tempo todo e as aparava na taça de cristal, sem deixar cair nenhuma... Todos bateram palmas, mas a rainha mordeu os lábios de raiva.

Passaram alguns dias e a rainha de novo pediu ao Sargento Verde que a escoltasse pelo jardim e declarou-se uma segunda vez, dizendo que o rei era marido dela só no nome, que dormiam em alas diferentes do palácio, que ele não queria saber dela, que estava muito triste e solitária... Mas o Sargento respondeu: “Senhora, eu jamais irei trair o meu rei.” Bateu continência, girou nos calcanhares e foi embora.

Cheia de despeito, ela foi cochichar aos ouvidos do rei que o Sargento em quem ele confiava tanto lhe mostrara um lugar vazio em um dos canteiros e dissera ser capaz de plantar uma bananeira ali, no outro dia de manhã e que, ao entardecer, ela já teria dado uma dúzia de bananas maduras. O rei mandou chamar o Sargento e perguntou se isso era verdade. O Sargento respondeu que, se a rainha o havia dito, devia ser e que tentaria fazer no dia seguinte. Muito preocupada, Lucinda foi ver o cavalo e o Baio lhe disse: “Não se amofine... Amanhã de manhã iremos juntos plantar a bananeira.”

No dia seguinte, disse a Lucinda que pegasse uma sementinha minúscula em uma caixinha de seu bornal. Foram até o canteiro e o cavalo escarvou a terra, marcando o ponto exato. Lucinda abriu um buraco e colocou nele a semente, enquanto todos faziam troça, porque bananeira pega é de muda. Mas ao meio-dia, a bananeira já havia crescido e de tardezinha, tinha um cacho inteiro de bananas amarelinhas e maduras. Todos ficaram muito espantados e comeram as bananas, que estavam muito gostosas, menos a rainha que disse que nunca ia comer fruta enfeitiçada.

Terceira vez a rainha pediu ao Sargento que a escoltasse e se declarou novamente: “Como você se atreve a recusar o meu amor?” Mas o Sargento, mais uma vez, afirmou que nunca trairia o rei. Desbicada, ela foi murmurar na orelha do marido que o tal Sargento tinha jurado ser capaz de cavalgar sobre uma porção de ovos espalhados pelo chão, sem quebrar nenhum. O rei mandou chamá-lo e indagou se era verdade. Desta vez Lucinda se assustou, porque a tarefa parecia impossível. Afirmou nunca ter dito coisa alguma, que a rainha decerto o entendera mal, mas se ela dizia, ele jamais a desmentiria. Pediu licença e se retirou, muito chateado.

Lucinda foi falar com o cavalo, que relinchou uma risada e disse: “Não se amofine, minha linda... Iremos vencer mais esta prova...” E no dia seguinte, efetivamente, o Sargento apareceu montado no Baio e subiram em dez dúzias de ovos que haviam espalhado no chão do pátio, andaram para cá e para lá e nenhum se quebrou. Quando foram olhar, nem uma casca havia rachado e todos aplaudiram e ficaram muito admirados com a habilidade do Sargento Verde e como conseguia controlar seu cavalo tão bem, sem perceberem que era o cavalo que executava todas as proezas... Todos ficaram muito satisfeitos, menos a rainha, que ficou branca e roxa de cólera.

Mas ela não desistira de sua vingança e foi falar ao rei que o Sargento Verde era muito habilidoso, mas que andava se gabando de que o que fizera até então não era nada: que ele sabia onde estava a princesa filha do rei. Que estava no fundo do mar, guardada por um gigante monstruoso e que era capaz de vencer o gigante e desencantar a princesa... O rei ficou ao mesmo tempo esperançoso e magoado, porque tinha muita saudade da filha e achava que o Sargento Verde estava fazendo troça de seus sentimentos e não seria capaz de fazer coisa alguma. Então mandou chamá-lo e perguntou se era verdade. O Sargento empalideceu e exclamou: “Senhor meu rei, eu não falei nada disso!” Mas a rainha o contrariou: “Falou, porque eu ouvi!...” “Bem,” murmurou o Sargento, “se Vossa Majestade diz que eu disse... não poderei contrariar a sua palavra.” Então o rei ordenou que ele fosse procurar sua filha no dia seguinte, a não ser que fosse tudo gabolice e que ele só estivesse troçando de seus sentimentos para deixá-lo ainda mais infeliz... O Sargento disse que, por sua vontade, jamais magoaria o rei que tão bem o tratara e que tentaria empreender a tarefa, mas que precisava pensar primeiro como ela poderia ser realizada.

Lucinda foi falar com o Baio, desta vez com o coração pulando de medo. Mas o cavalo relinchou tranquilizadoramente e lhe disse: “Não se amofine, minha querida, porque isso pode ser feito. Mas agora, tem de ser de modo diferente. Vá pedir ao rei três dons, mas que têm de passar pela mão dele para poder desfazer o encantamento. Ele terá de calafetar com todo o cuidado dentro de um balaio uma botija de azeite, um saquitel de sal e um pacote de alfinetes. Mas insista que deve fazer tudo com a própria mão. Depois que ele lhe der os três dons, volte e iremos juntos até o mar.”

O Sargento foi até o rei e lhe fez o pedido. O rei achou meio estranho, mas como era a condição para recobrar sua filha, mandou buscar a botija de azeite, o saquitel de sal e o pacote de alfinetes, mais um balaio e um pano de cambraia, enrolou tudo com suas próprias mãos e calafetou bem o balaio, entregando-o diretamente ao Sargento. A rainha olhava tudo e mordia os lábios de raiva até tirar sangue, mas não disse nada.

Lucinda montou no cavalo que a esperava, agora forte e vigoroso, parecendo um garanhão no auge de seu vigor e galoparam até a beira do mar. “Bem,” disse o cavalo, “agora é com você: não posso fazer mais nada. Desmonte e vá até a beira do mar, saque a espada e corte as ondas em cruz, enquanto invoca o Nome de Jesus. As águas se abrirão e se formará um túnel, indo reto até onde está a princesa. Chegue lá bem depressa e agarre-a pela mão, puxando-a pelo corredor para fugir. Mas o gigante irá aparecer em seguida. Então abra o saquitel de sal e espalhe. Mas repare bem: a princesa irá falar três palavras. Deve prestar muita atenção e decorar bem, porque vai precisar delas depois.”

A moça obedeceu, desmontou e foi até as ondas, que subiam na maré alta, sacou a espada da bainha e cortou as vagas em cruz, enquanto pedia a ajuda de Jesus Cristo. No mesmo instante, o mar se abriu e formou um túnel, que parecia um corredor, indo direto até o fundo. Lucinda enveredou por ele, pisando no chão seco, que estava todo calçado com conchas cor de madrepérola, com água dos dois lados e por cima de sua cabeça, até chegar em uma caverna. Entrou e viu a princesa, sentada em um divã de cetim, fazendo renda de bilro e parecendo muito triste. Ao ver o Sargento, sobressaltou-se, mas ele explicou a que vinha e ela se deixou levar pela mão e as duas saíram correndo pelo túnel. Na metade do caminho, ouviram gritos furiosos e o gigante apareceu, dando passos largos e logo se aproximando delas. Lucinda abriu o saquitel de sal e o espalhou. Imediatamente, formou-se uma neblina tão espessa atrás delas, que o gigante se atrapalhou e perdeu o caminho. A princesa falou então: “Já!...” e o Sargento prestou bastante atenção e tomou nota dentro da cabeça.

Chegaram até a praia, a princesa arrepanhou as saias e o Sargento a ajudou a montar na garupa, subindo à sela e então começaram a galopar terra a dentro. Nesse momento, a cabeçorra do gigante emergiu das ondas e ele começou a correr atrás deles, ganhando terreno bem depressa. O Baio falou então: “Solte os alfinetes.” O Sargento abriu o pacotinho de alfinetes e os jogou atrás deles. Imediatamente, eles começaram a crescer e se transformaram em uma espessa mata de espinheiros. O gigante se emaranhou e ficou todo lanhado, não conseguindo mais correr atrás deles. Então a princesa disse: “Bela!...” e o Sargento tomou nota da segunda palavra, com o máximo de atenção e perguntou ao Baio: “O que faço com o azeite?” Como de costume, o cavalo respondeu: “Não se amofine, você saberá quando chegar a ocasião...” A princesa ouviu o cavalo falar e ficou muito surpreendida.

Assim que chegaram ao jardim do castelo, a princesa olhou em volta e exclamou: “Tudo!...” O Sargento guardou na memória a terceira palavra. Atravessaram o jardim e chegaram ao palácio e foi uma grande festa. Ela abraçou o pai e procurou a mãe e o irmão, sem conseguir encontrar. Sentiu uma pontada de dor no coração e ficou muda, sem proferir mais uma só palavra. Então a rainha arquitetou uma última maldade. Foi dizer ao rei que ouvira o Sargento dizer aos soldados, quando estes o felicitavam pela façanha, que era perfeitamente capaz de fazer a muda falar de novo. O velho rei, ainda dominado pela perversa rainha, acreditou e mandou chamar o Sargento, indagando se era verdade ou se ele estava fazendo troça dos seus sentimentos, porque, se fosse assim, mandaria castigá-lo severamente.

O Sargento protestou que não tinha dito nada neste sentido, que podia interrogar os soldados da guarda... Mas a rainha insistiu: “Eles tem medo de você, porque é o comandante e vão mentir que não ouviram nada. Mas eu ouvi muito bem quando você falou!...” O Sargento suspirou e disse ao rei: “Majestade, longe de mim contrariar em nada a palavra da rainha. Amanhã tentarei realizar mais esta prova, que há de ser menos dura que enfrentar a fúria de um gigante.” Pediu licença e foi mais uma vez conferenciar com seu cavalo.

E que mais se poderia esperar? O cavalo sussurrou-lhe, entre relinchos divertidos, que não se amofinasse... “É para isso que vai servir o azeite. Lembra-se bem das palavras que ela disse...? Eu poderia lhe refrescar a memória, mas para o desencanto, é melhor que você lembre...” Lucinda declarou que se lembrava muito bem. Então o Baio lhe falou: “Amanhã, na hora do almoço, sente ao lado da princesa e, assim que ela tiver acabado de comer, derrame um terço do azeite em sua cabeça e fale bem alto a primeira palavra. A seguir, exija que ela lhe diga o que significa. Na hora do jantar, derrame o segundo terço e diga a segunda palavra. Na hora da ceia, derrame o resto do azeite na cabeça dela e diga a última. Sempre peça que ela explique tudo. A partir daí, o encantamento será quebrado e ela vai falar pelos cotovelos...”

Assim, no dia seguinte, o Sargento disse que ira tentar curar a mudez da princesa e sentou-se do seu lado à mesa. Assim que ela acabou de comer, para o espanto e consternação de todos, derramou um terço do azeite da botija sobre a cabeça dela e falou bem alto: “Já!...” A princesa o olhou por entre os dedos, enquanto limpava o azeite dos olhos e o Sargento exigiu que lhe dissesse qual era o significado. Ela prontamente respondeu: “Já me livrei de todos os meus trabalhos.” Todos se maravilharam, mas depois disso ela se calou novamente. O rei o encarou confuso, mas o Sargento disse que não se preocupasse, que era só a primeira parte do desencanto. A rainha o encarou cheia de raiva, mas não sabia o que dizer.

Quando chegou a hora do jantar, ninguém se espantou que o Sargento sentasse de novo ao lado da princesa e, acabada a refeição, lhe derramasse outro terço do azeite na cabeça, sujando outro de seus vestidos e respingando toda a toalha da mesa... O espanto aconteceu quando o Sargento falou bem alto: “Bela!...” e a princesa o encarou, enquanto lambia o azeite que lhe escorria pelos cantos da boca. Então o Sargento indagou o que significava aquela palavra. A princesa sorriu, limpou o rosto com o guardanapo e falou: “Bela és tu, porque és uma donzela como eu... Com esse uniforme, todos pensam que és um homem, mas és mulher e muito bonita também... Tira esse capacete com essa pena de galo ridícula e todos verão como és bela!...” A seguir, a voz se lhe embargou de novo e não conseguiu mais falar.

Bem ao contrário, todos começaram a falar ao mesmo tempo e o rei quis saber se era verdade que o seu Sargento de toda a confiança era mulher e não homem. Mas Lucinda não disse uma palavra. Pôs um dedo nos lábios, fez uma reverência e saiu da sala de banquetes do palácio. Contudo, quando tocaram a sineta para a ceia vespertina, ela apareceu de novo, ainda de uniforme e capacete e sentou-se outra vez do lado da princesa. Todos já esperavam que alguma coisa sucedesse, mas Lucinda permaneceu tão muda quanto a princesa até o fim da refeição. A rainha tinha pensado em se esconder em seus aposentos, mas depois achou que isso causaria suspeitas e estava sentada ao lado do rei, muito quietinha.

Então Lucinda esvaziou a botija de azeite nos cabelos recém-lavados da princesa (e lhe sujou o terceiro vestido naquele dia!) e disse bem alto: “Tudo!...” Prontamente, a princesa limpou o rosto com a beirada da toalha da mesa (dando ainda mais trabalho para os criados) e começou a falar: “Tudo isso que ela inventou que o Sargento tinha dito era pura mentira!... Ela estava despeitada porque o Sargento não quis sequer lhe dar um beijo quando ela disse que estava apaixonada!...” Todos exclamaram de surpresa. A rainha quis se levantar, mas o rei segurou-a pelo ombro no lugar. E a princesa continuou: “Tudo isso foi muito bom, porque sem as mentiras dessa falsa, eu não teria sido desencantada...” E prosseguiu: “Tudo está errado na cabeça dessa rainha malvada! Ela se apaixonou por um Sargento que era mulher igual a ela, mas o Sargento se chama Lucinda e se não fosse mulher, já tinham fugido juntos há muito tempo!...”

A rainha não sabia onde se meter, sob o olhar acusador de todos e o rei a encarou fixamente ao saber da sua traição. Mas a princesa não deu tempo para que a interrogassem: “E tudo isso está muito bem e é assim mesmo, mas onde estão minha mãe e meu irmão?” Mas antes que alguém se animasse a responder, ouviu-se um escarcéu vindo do pátio e uma voz estentórea berrando: “Eu quero o meu pagamento!... Faz anos que eu cuido da princesa e ainda não recebi! Só saio daqui depois de receber o meu pagamento!...”

Ora, acontece que a falsa rainha era uma feiticeira e tinha estado de combinação com o gigante para encantar os filhos do rei, provocar a morte da velha rainha e tomar conta do reino depois de casar com o rei viúvo. No meio daquela gritaria toda, ninguém percebeu quando um cavaleiro de armadura rebrilhante entrou na sala e só notaram quando ele puxou a cadeira da rainha e a tomou nos braços. Ela se debateu, gritando, mas antes que alguém pudesse interferir, lá se foi o cavaleiro até o janelão aberto que dava para o pátio e, sem a menor cerimônia, atirou a rainha para fora!

Mas lá estava o gigante, com mais de dez metros de altura, que prontamente estendeu os braços e a agarrou no ar, dizendo muito satisfeito: “Ah, agora sim! Finalmente recebi o meu pagamento... Estou bem pago e me vou embora!...” E saiu do pátio, dando passadas enormes em direção ao mar, com a rainha bem firme em uma das mãos.

Antes que qualquer um se recobrasse do susto, o cavaleiro tirou o capacete e todos viram que era o príncipe desaparecido há tantos anos. Ele beijou o pai e a irmã e, para surpresa de todos, foi ajoelhar-se em frente de Lucinda, cuja mão ele beijou. “Eu sou o teu velho Baio, minha linda!... Tive de esperar que crescesses, porque só tu me poderias desencantar. Mas como vês, passou todo esse tempo e continuo moço do mesmo jeito que minha irmã!... Aceitas casar comigo, minha querida...?”

Lucinda prontamente concordou. O casamento anterior dela não valia mesmo e o rei deu a bênção aos dois, mas não puderam falar muito, porque a princesa, agora que recobrara a fala, falava pelos cotovelos, conforme seu irmão encantado dissera que faria... Mas o rei, finalmente, lhe tapou a boca com a mão e falou: “Minha cara Lucinda, ou devo dizer, meu Sargento Verde Lucinda... Não há palavras para te agradecer por todo o bem que me fizeste. Em tudo isso, só há um motivo de tristeza... É que minha boa esposa faleceu de sentimento pela falta dos filhos e a morte é um encantamento que não se pode quebrar... Essa malvada com quem eu me casei foi castigada, mas minha esposa não irá retornar... Porém sei que está me esperando no Reino dos Céus, onde seremos apenas súditos de Deus e em breve voltarei a encontrá-la, porque estou velho e alquebrado...”

Fizeram todos os preparativos para um magnífico casamento e uma escolta foi buscar os pais de Lucinda em uma carruagem dourada. As bodas foram celebradas durante sete dias e sete noites e Lucinda foi muito feliz com seu marido e ficou sabendo que seu nome era Baiardo, sempre continuando a tratá-lo de Baio quando ficavam sozinhos... As notícias correram e não demorou muito apareceu o príncipe de um país vizinho, pedindo a mão da princesa em casamento. Celebraram-se novas bodas magníficas e ela partiu com o marido, sob aplausos e alegria de todos, aliviados porque ela não havia parado de falar um só momento desde que se curara da mudez!... O príncipe que a aguentasse agora, porque as aias diziam que ela falava até dormindo!...

Pois entrou por aquela porta e saiu por est’outra...

Manda El-Rei Nosso Senhor que me conte outra!...

LEIA TAMBÉM A VERSÃO POÉTICA.

William Lagos
Enviado por William Lagos em 18/07/2011
Código do texto: T3101752
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