O MONSTRO DO CASTELO (em prosa)

O MONSTRO DO CASTELO (6 JUL 11)

(Conto do folclore brasileiro, recontado por William Lagos.)

(Agradecimentos a Sílvio Romero e Monteiro Lobato)

Era uma vez um homem muito pobre, que ganhava a vida fabricando gamelas de madeira em sua oficina. Uma gamela é uma espécie de tigela feita de barro ou de madeira. Ele passava o dia sentado ao torno, girando a madeira com o pedal, com uma goiva na mão para ir tirando aos poucos a maravalha, as longas tiras de madeira, que se enroscavam pelo chão, isso depois de ter escavado o cepo, o pedaço de madeira, usando puas e escopros para cortar a parte mais grossa do centro, a fim de facilitar o trabalho no torno com a goiva. Assim que a gamela ficava pronta, ele usava uma lixa para a polir pacientemente, até que ficasse bem lisa... O homem tinha orgulho de seu trabalho e suas gamelas eram muito procuradas para colocar condimentos ou molho nas cozinhas, antes de preparar o prato ou a panela de metal que iria ao fogo.

Contudo, apesar de tudo isso, não podia pedir muito pelo que fabricava, porque havia muitos outros gameleiros, embora o trabalho de nenhum deles tivesse a mesma qualidade. Além disso, ele tinha três filhas, cada qual mais bonita do que a outra e tudo o que ganhava era gasto com sua subsistência, suas roupas e seus calçados. O artesão não via meio de melhorar de vida, sua casinha era alugada e a oficina em que trabalhava também. Pensara muitas vezes em reunir as duas coisas, mas precisava da pecinha em que trabalhava no centro da cidade e não podia pagar o aluguel de uma casa nas proximidades. Deste modo, por mais que trabalhasse de sol a sol, continuava preso num círculo vicioso. Os aluguéis levavam por parte do que ganhava, mas não podia trabalhar sem pagar os aluguéis... Não obstante, todos os dias de manhã quando se levantava, dava graças a Deus por ter saúde, uma boa esposa e três filhas tão bonitas.

Num dia quente de verão, as três meninas estavam sentadas à janela da casinha, porque no interior estava muito abafado. Passou um cavaleiro e seu olhar foi atraído pela beleza de Rosaura, a mais velha. Foi até a esquina, voltou, fingiu pedir uma informação, gostou da voz de Rosaura, seguiu na direção indicada e voltou de novo, perguntando onde estava o pai dela. A moça teve vergonha de dizer, mas a irmã do meio, Rosália, disse que ele estava na oficina em que fabricava gamelas e lhe deu o endereço. O rapaz levou a mão ao chapéu verde, que em vez de pena tinha um par de barbatanas de baleia como enfeite e saiu a galope. Rosaura repreendeu Rosália, mas a irmã deu uma risadinha e perguntou se ela ia fazer de conta que era rica, usando aquele vestido velho... E depois, o rapaz podia ser um cliente novo de seu pai... Rosaura ficou amuada, mas logo as duas fizeram as pazes.

O cavaleiro chegou até a oficina humilde e logo avaliou a situação. Cumprimentou o artesão e lhe disse estar interessado em lhe comprar a filha mais velha. O homem já ia se ofendendo, mas naquele tempo muita gente pobre realmente vendia os filhos para serem escravos. Contudo, protestou que sua filha Rosaura sempre fora tratada com todo o carinho e não se destinava a passar trabalho limpando a casa e lavando a roupa da patroa. O rapaz riu-se e falou que era solteiro e que já tinha empregados suficientes. O que ele queria era uma concubina, o nome que davam a uma mulher solteira que vivia com um homem como se fosse casada. Mas ele era orgulhoso e falou: "Criei minhas filhas para o casamento. Não vou vendê-las em qualquer momento: prossiga o seu caminho, cavaleiro!..." Mas então o visitante lhe ofereceu como pagamento um saco cheio de moedas de ouro.

O gameleiro ficou extasiado, mas sem saber o que dizer. Sua mulher estava doente, ele vivia da mão para a boca, isto é, ganhava num dia o dinheiro para comprar a comida do dia seguinte, suas ferramentas estavam se desgastando, a madeira estava ficando cada vez mais cara e escassa... Então disse que ia até em casa conversar com a mulher e a filha. O rapaz lhe disse que daria uma carona na garupa do cavalo. Sem mais conversa, ele trancou a oficina, montou-lhe na garupa, firmando-se em sua cintura e não disse uma palavra durante todo o percurso, perdido em seus pensamentos. Quando deu de si, já estava em frente de casa, porque o cavaleiro já conhecia o caminho.

Quando deu a notícia à mulher, foi um horror! Ela ficou chocada e muda a princípio, depois começou a gritar que não, que não, que não! Tinha criado a filha com todo o sacrifício, não era para ser vendida como escrava!... Mas o rapaz pediu licença e lhe disse que não seria escrava, seria a sua concubina, muito bem tratada e com servas para atendê-la. “Mas então, porque o senhor não casa com ela?” “Olhe,” disse o rapaz, “eu vou lhe confessar uma coisa. Sou um rei e estou viajando disfarçado, mas negócios urgentes me chamam para meu castelo. Eu lhe prometo que assim que resolver os problemas mais prementes, celebrarei meu casamento com sua filha. Mas não posso esperar, tenho de ir embora hoje mesmo, antes que caia a noite.”

Então foi até seu cavalo e de um dos alforjes pendurados da sela tirou um lindo vestido verde, sapatos de cetim, da mesma cor e um cinto largo, bordado com primor... A moça não teve mais dúvidas: "Pai, é uma chance que só uma boba perde!" Apesar dos fracos protestos da mãe doente, Rosaura pôs o vestido novo e mais roupa de baixo da mais fina. Ganhou um colar de pura turmalina e o rei lhe colocou um anel no dedo, dizendo: “Com esta aliança, me desposo contigo,” como quer o costume do povo; e ainda recebeu um xale da renda mais preciosa e um lenço verde da mais linda cambraia, que enrolou na cabeça para não sujar as tranças com a poeira da estrada... Começou então a dançar na calçada, dando voltas para girar a saia e a irmã do meio ficou toda invejosa!

Então a moça deu um beijo na mãe e outro no pai, abraçou as duas irmãs, arrepanhou as saias e montou agilmente na garupa do cavaleiro, que estugou o cavalo, gritou “Eia!” e saiu galopando rapidamente, para recuperar o tempo perdido, enquanto ela abanava até se perder de vista. O velho abraçou a esposa, que não parava de chorar, as outras filhas passaram as mãos pela cintura dela e a levaram de volta para a cama, dizendo que ela não estava sozinha, ainda tinha elas duas. O pai sacudiu a cabeça em desalento, olhou em volta, viu que ninguém estava por perto e deixou as lágrimas que havia retido lhe escorrerem pelo rosto. Depois, secou os olhos e entrou na casinha, virou o saco sobre a mesa da copa e dele rolaram cem dobrões de ouro, novos e reluzentes... Era uma fortuna!

Escondeu o dinheiro com cuidado, em um buraco sob uma das tijoletas da copa e foi conversar com o senhorio que lhe alugava a casa. Disse que havia vendido uma boa partida de gamelas para um cavaleiro que viera de longe e que ainda lhe dera um adiantamento para uma nova encomenda que lhe havia feito. Perguntou o que ele queria pela casinha alugada. O dono disse que não queria vender; ele falou que então iria procurar outra; o homem coçou a cabeça e jogou o preço bem alto, para fazer com que ele desistisse: “Quero dez dobrões de ouro...” O inquilino disse que o aluguel não lhe rendia um dobrão por ano e os dois regatearam, até que ele comprou a escritura por cinco dobrões, dizendo que era só o que tinha. E os dois se separaram muito amigos, o velho suspirando de alívio por não precisar mais pagar o aluguel de casa.

Foi então falar com o proprietário da oficina, que não quis vender, porque era uma peça de sua própria casa, mas pagou outro dobrão pelo aluguel de dois anos, juntando uma peça dos fundos que o dono usava como depósito, mas que já tinha uma porta de comunicação. No outro dia, foi comprar ferramentas novas e um segundo torno e contratou um aprendiz, passando a fabricar gamelas sem parar, como se a encomenda fosse verdadeira. Adquiriu um carroção e dois cavalos, barganhando pelo menor preço, para não dar na vista, e os colocou no pátio da casinha, comprando madeira e telhas e levantando um estábulo pequeno com a ajuda do aprendiz. Uma vez por mês, juntava todas as gamelas que não havia vendido e saía para uma cidade distante, onde as vendia pelo melhor preço, aproveitando para trocar alguns dobrões de ouro por moedas de prata e cobre de menor valor.

Entrementes, levou a mulher para consultar com o melhor médico da cidade, alegando pobreza na hora de pagar, a fim de conseguir um abatimento, comprou os remédios e os alimentos indicados e o tratamento a curou completamente. Deu-lhe dinheiro para comprar roupas e calçados para si e para as meninas, sem lhe dizer exatamente quanto ganhara. Todas ficaram muito satisfeitas, saudáveis, bem alimentadas, vestindo-se melhor, embora às vezes murmurassem: “E se Rosaura nunca mais aparecer?...” Mas ele tratou a esposa com o maior carinho, procurando consolá-la e daí a uns tempos, ela engravidou e acabou por dar à luz um lindo menininho.

Mas as duas outras filhas não paravam de pedir roupas e pequenos mimos, querendo ir a festas e às feiras; ele as levava no carroção e as três começaram a reclamar tanto pela vergonha da condução que a esposa acabou por convencê-lo a comprar uma carruagem e mais dois cavalos do melhor trato. Secretamente, ela pretendia ir visitar a filha, indagava de todo mundo e até contratou meia dúzia de espertalhões para procurarem informações em outras cidades das redondezas. Uns bebiam o dinheiro sem fazer nada, outros procuravam honestamente, mas ninguém sabia onde ficava o tal castelo, só algumas pessoas indicavam a estrada por onde tinham visto um cavaleiro galopando a toda a brida, com uma moça de vestido verde na garupa.

Mas com tudo isso, o dinheiro foi sumindo aos poucos e depois, o menino ficou doente e quase morreu de febre. Em seu desespero, a esposa lhe dizia que era Deus que o estava castigando: "Vendeste a filha! Foi um ato bem nefando! Ela devia primeiro se casar!..." O homem escutava quieto, mas com o tratamento o menino logo sarou e só então ele disse: "O cavaleiro prometeu-lhe casamento! É rei e é rico, deixa de lamento: aqui em casa até fome ela passava!..."

Chegou o dia em que teve de gastar o último dobrão, porque um gameleiro nunca fica rico... Por sorte, a casa era agora própria e ele já pagara adiantado o aluguel da oficina por mais quatro anos... Mas teve de apertar o cinto, diminuir as despesas e fez a mulher despedir as empregadas que contratara. Como “em casa onde não há pão todos brigam e ninguém tem razão”, logo surgiram discussões e a única coisa que os acalmava eram as risadas do garotinho.

Um dia, Rosália e sua irmã menor, Rosalba, estavam na sacada da janela com o irmãozinho, quando apareceu um garboso cavaleiro. Ao ver Rosália, ele arregalou os olhos, por tão bonita que a achou. Amarrou o cavalo em um galho, apeou e veio conversar com ela, com o pretexto de pedir informações. Em seguida os dois se entenderam e ele montou em seu cavalo, levou a mão ao chapéu, no qual, em vez de pluma, ele tinha um enfeite de lã trabalhada e foi até a oficina onde o pai e o aprendiz trabalhavam arduamente. Como fizera o anterior, ele propôs comprar-lhe a filha do meio.

Mas ele era orgulhoso e falou: "Criei minhas filhas para o casamento. Não vou vendê-las em qualquer momento: prossiga o seu caminho, cavaleiro!..." Mas então o cavaleiro lhe ofereceu como pagamento dois sacos cheios de moedas de ouro.

O gameleiro sacudiu a roupa e deu as chaves da oficina para o aprendiz, que era de toda a confiança, dizendo que fechasse na hora de costume e lhe fosse levar as chaves em casa. O rapaz lhe ofereceu carona na garupa, mas ele deu de ombros e foi até a esquina, onde guardava um de seus cavalos em uma cocheira. Selou e albardou o animal, montou e seguiu com o visitante até sua casa. Em lá chegando, repetiu-se a cena de alguns anos antes. A mãe protestava, o menino chorava, mas o cavaleiro disse que era um rei disfarçado, porém negócios de extrema urgência o chamavam para o seu castelo. Então prometeu que assim que resolvesse os problemas mais prementes, celebraria seu casamento com a jovem. Mas que agora não podia esperar, tinha de ir embora nesse dia mesmo, antes que caísse a noite.

Então foi até seu cavalo e de um dos alforjes pendurados da sela tirou um lindo vestido rosa, sapatos de veludo da mesma cor e um cinto largo, engastado com sequins e lantejoulas... A moça não teve mais dúvidas: "Pai, é uma chance que só uma boba perde!" Apesar dos tristes protestos da mãe, Rosália pôs o vestido novo e mais roupa de baixo da mais fina. Ganhou um colar de ouro e rubis e o rei lhe colocou um anel no dedo, dizendo: “Com esta aliança, me desposo contigo,” como quer o costume; e ainda recebeu uma mantilha da renda mais preciosa e um lenço cor-de-rosa da mais linda cambraia... Começou então a dançar na calçada, dando voltas para girar a saia e a irmã menor ficou encantada, porque era ainda muito pequena para sentir inveja disso.

Rosália ganhou uma tiara de ouro e diamantes e prendeu um véu de lã trabalhada na cabeça para não sujar os cabelos, despediu-se da família, muito alegre porque ia ser ainda mais rica do que a irmã... E lá se foi Rosália, na garupa do cavalo. O cavaleiro sacudiu as rédeas, disse “Eia!” e o cavalo saiu galopando, enquanto Rosália abanava sorridente, até desaparecer quando dobraram a esquina. Os pais se abraçaram, a menina passou o braço pela cintura da mãe e o garotinho pediu colo. Desta vez os vizinhos se juntaram e ficaram comentando, uns gabando a boa sorte, os mais invejosos soltando uns dichotes mesquinhos... A família não deu atenção a uns e outros e se trancaram em casa.

Desta vez, o gameleiro aplicou o dinheiro melhor ainda. Comprou uma chácara, depois de regatear bastante, porque de fato, ninguém tinha certeza de que ele tivesse vendido a filha, nem de quanto ganhara por ela. Insistiu com o dono da oficina e comprou-lhe a casa inteira, mudando-se para o centro da cidade e montando uma fábrica de móveis na casinha em que morara por tanto tempo. Não rendia muito, mas bastava para pagar o salário dos aprendizes, as despesas e os impostos, conseguindo ainda pôr de lado um pouco de dinheiro todos os meses. E a chácara era grande, produzia muitas frutas que seus empregados vendiam no mercado e nas feiras. Nesse meio tempo, haviam começado a chegar cartas escritas em pergaminho enrolado e lacrado com lindos selos e brasões. Sempre eram entregues ao entardecer, quando já estava meio escuro e os mensageiros nada diziam.

Mas nas cartas, escritas por mão própria, tanto Rosaura como Rosália diziam que estavam muito felizes, que realmente haviam se casado e que eram consideradas como rainhas e que eram muito bem tratadas, tendo tudo do bom e do melhor, com muitos servos e servas e que os maridos eram muito gentis e delicados. Por enquanto, nenhuma das duas tivera filhos, mas estava tudo bem, porque eram ainda muito jovens e gozavam de excelente saúde. Tudo destinado a tranquilizar os pais, mas não falavam sobre vir em casa, não os convidavam para visitar e não davam a menor indicação de onde ficavam seus reinos. E se alguma vez o assunto era mencionado, ele jurava que jamais venderia Rosalba, como fora obrigado a fazer com as suas irmãs, mesmo porque estava agora muito bem de vida.

Só que o destino tem os seus caprichos e as coisas nunca acontecem como as pessoas realmente querem. O fado sempre entorna “os melhores planos dos homens e dos ratos...” Assim, Rosalba foi crescendo, brincando e contando histórias para seu irmãozinho, até que completou quinze anos e tornou-se uma jovem ainda mais bela que suas irmãs. Os pais já planejavam um casamento de luxo, levavam-na às melhores festas, onde ela ficava cercada de rapazes e só estavam aguardando o momento em que lhe viessem pedir a mão.

Mas veio o dia em que Rosalba estava sentada atrás da sacada da janela do sobrado em que agora moravam, junto com o garotinho, quando passou um garboso cavaleiro, usando longas penas castanhas no chapéu. Usava uma túnica colorida e uma capa de veludo, tinha a pele muito clara e a barba castanha. O coração de Rosalba deu um pulo e teve certeza de que havia chegado a sua vez! O cavaleiro puxou as rédeas, cumprimentou-a cordialmente, os dois conversaram e ela lhe indicou o caminho para a oficina do pai. E a cena se repetiu, só que desta vez, o cavaleiro ofereceu três sacos cheios de moedas de ouro!... Mas o pai disse que, por nenhum tesouro venderia a sua filha a este terceiro...

O cavaleiro lhe mostrou um magnífico enxoval, vestido azul, sapatinhos de cristal e jóias de cegar olhares fracos... Mas o pai não aceitou. "Fique comigo. E com Rosalba, se a ocasião o enseja, irá casar-se, porém na nossa igreja. Vender mais uma filha eu não consigo!..." O gameleiro sacudiu a roupa e deu as chaves da oficina para o aprendiz, que já se transformara em um marceneiro de toda a sua confiança, dizendo que fechasse na hora de costume e lhe fosse levar as chaves em casa. O rapaz lhe ofereceu carona na garupa, mas ele deu de ombros e foi até a cocheira da esquina, onde mandou selar e albardar seu animal, montou e seguiu com o visitante até sua casa. Em lá chegando, repetiu-se a cena de alguns anos antes. A mãe protestava, o menino chorava, mas o cavaleiro disse que era um rei disfarçado; não obstante, negócios de extrema gravidade o chamavam para seu castelo. Então prometeu que assim que resolvesse os problemas mais urgentes, oficializaria seu casamento com a jovem. Mas que agora não podia esperar, tinha de ir embora nesse dia mesmo, antes que caísse a noite.

Mas de nada adiantou. O pai fincou o pé e disse que só daria a mão da filha se ele se casasse com ela primeiro. Rosalba, que já estava apaixonada, protestou e esbravejou, dizendo ser igual a suas irmãs, mas suas palavras todas foram vãs. O pai não mudou de ideia e ela se jogou, chorando, nos braços de sua mãe. O cavaleiro despediu-se, com toda a cortesia... Mas no outro dia retornou de manhã bem cedo, antes que o pai de Rosaura fosse abrir a oficina, usando uma armadura reluzente e acompanhado por uma guarda de seis lanceiros, armados da cabeça aos pés. Quando lhe abriram a porta, ele entrou sem dizer uma palavra, acompanhado por seus soldados. Colocou os três sacos de ouro sobre a mesa e sacou a espada, enquanto seus homens colocavam as lanças em riste. Então foi até seu cavalo e de um dos alforjes pendurados da sela tirou o lindo vestido azul que já mostrara ao pai na véspera, sapatos de cristal da mesma cor e um cinto largo, todo enfeitado com jóias e brandenburgos bordados... A moça não teve mais dúvidas: "Pai, é uma chance que só uma boba perde!"

O pai se calou perante a ameaça silenciosa. Apesar dos fracos protestos da mãe e do choro do irmãozinho, Rosalba pôs o vestido novo e mais roupa de baixo da mais fina. Ganhou um colar de ouro e safiras e o rei lhe colocou um anel no dedo, dizendo: “Com esta aliança, me desposo contigo,” como se estivesse dentro de uma igreja. Ela começou então a dançar na calçada, dando voltas para girar a saia e o irmãozinho ficou batendo palmas, porque era ainda muito pequeno para entender o que se passava.

Rosalba ganhou uma tiara de turquesas azuis e prendeu um véu trabalhado com penas de pavão na cabeça para não sujar os cabelos, despediu-se da família, muito alegre porque ia ser ainda mais rica do que as irmãs... E lá se foi Rosalba, na garupa do cavalo. O cavaleiro sacudiu as rédeas, disse “Eia!” e o cavalo saiu galopando, seguido pelos seis lanceiros de sua escolta, enquanto Rosaura abanava sorridente, até desaparecer quando dobraram a esquina. Os pais se abraçaram chorando, enquanto o menino passava o braço pela cintura da mãe, porque achava já ser grande demais para pedir colo. Não foram só os vizinhos que se juntaram: metade da cidade apareceu atraída pela brilhante comitiva, mesmo porque a casa em que moravam ficava agora bem no centro e o gameleiro se tornara um comerciante rico e respeitado; alguns de seus amigos então tentaram conversar, mas a família não deu atenção a ninguém e se trancou em casa, até que o encarregado veio buscar as chaves da oficina. Mas nesse dia, o pai não foi trabalhar, magoado demais pelo que lhe acontecera.

Desta vez, comprou a maior mansão da cidade, adquiriu uma fazenda com muito gado e cavalos e expandiu a fábrica, dando emprego para muita gente e ficando realmente muito rico. O menino foi criado com todo o carinho e, quando completou seis anos, o pai fundou uma escola na cidade e contratou os melhores professores, cobrando uma taxa mínima de matrícula, para que todos pudessem se instruir, embora, judiciosamente, instalasse oficinas e determinasse que todos os alunos tinham de aprender uma boa profissão como parte das matérias da escola.

Porém um dia o menino, que se chamava Raimundo, brigou com um coleguinha por um motivo desses de criança, que no outro dia os dois já tinham esquecido. Depois que a briga foi apartada, gritou-lhe o outro: “Tu te achas muito importante, porque teu pai é rico, mas ele não passava de um gameleiro!... Ganhou dinheiro porque vendeu as tuas irmãs, que ele mostrava na janela para todos os que passavam, esperando que alguém pagasse bem!” Os professores o repreenderam e ele calou a boca, mas Raimundo não esqueceu e, ao chegar em casa, perguntou aos pais se era verdade que tinham vendido suas irmãs. O pai não queria tocar no assunto e até se zangou, mas a mãe disse mansamente que era melhor ele ficar sabendo o que acontecera do jeito certo, em vez de ouvir na rua. Aí o velho contou-lhe toda a história e como fora obrigado pela necessidade e, finalmente, pela força das armas. "Contudo, filho, elas casaram muito bem! Olha essas cartas que nos escreveram!..."

Durante muitos anos as cartas continuaram a chegar, sempre com ótimas notícias, mas sem dar endereço e sem convite para visitas. Todas três se haviam tornado rainhas, mas não diziam de que reino e nem falavam em voltar para ver os pais. Os três mensageiros simplesmente entregavam os rolos de pergaminho lacrado e selado com estranhos brasões heráldicos e se iam embora, sem dizer palavra. Raimundo leu as cartas antigas e lia todas as novas que chegavam, mas nunca mais tocou no assunto.

Contudo, logo depois que se formou, tendo completado dezoito anos, disse aos pais que queria correr mundo para descobrir o que havia acontecido com suas irmãs. O pai lhe deu dois alforjes de ouro e um bom cavalo. Despediu-se, com beijos, de seus pais, que lhe disseram: "Não sabemos aonde vais, mas todo dia, quando cantar o galo, pensa em nós dois, que te escutaremos e saberemos que ainda passas bem... Nós não queremos te perder também: somos dois velhos e muito rezaremos..." Raimundo esperou até um certo crepúsculo em que apareceu um dos correios silenciosos e o seguiu de longe... Mas já estava escuro e, quando chegaram junto à praia, perdeu de vista o mensageiro e não conseguiu mais descobrir-lhe o rastro. Deu de ombros e continuou a viagem até a estalagem mais próxima, em que se hospedou. Já se havia despedido e não viu razão para voltar a casa: seria só para magoar os pais de novo.

Aonde ia, ele indagava e se comunicava por pensamento com os pais, mas não soube notícias em parte alguma dos reinos em que moravam suas irmãs. Certa manhã, ao cantar do galo, sentiu em seu coração que seus pais lhe mandavam uma mensagem de que estavam velhos e cheios de achaques e que, por favor, ele voltasse logo, porque já se haviam passado três anos e se demorasse muito, não os encontraria mais neste mundo. Então ele se decidiu a ir somente até a próxima aldeia e, se nada resultasse, voltaria no dia seguinte para casa.

Na estalagem, enquanto fazia sua refeição, ouviu três homens fortes sentados a uma mesa próxima, discutindo em altos brados sobre uma herança. Espiando bem, sobre a mesa havia uma bota desirmanada, um capuz roído de traças e uma chave grande mas toda enferrujada. Nada que tivesse qualquer valor aparente. Movido pela curiosidade, Raimundo se levantou, aproximou-se cortesmente, apresentou-se e falou: “Cavalheiros, me desculpem, mas não pude deixar de escutar a sua discussão, que me pareceu bastante estranha. Se eu lhes pagar uma rodada de vinho, estarão dispostos a me explicar o motivo? Sou um andarilho e gosto de ouvir histórias...”

Eles fizeram lugar para ele à mesa e o estalajadeiro trouxe depressa um canjirão de vinho e mais um copo, enchendo todos e se retirando bem depressa. Então, o mais velho dos três lhe explicou: “Meu amigo, assim como nos vês, nós somos três irmãos e recebemos por herança esses três objetos mágicos que estão em cima da mesa... Foi a única coisa que nossos pais nos deixaram e não conseguimos decidir quem vai ficar com o quê... Sempre fomos muitos bons irmãos, mas esta discussão ameaça pôr fim à nossa fraternidade...”

Então Raimundo perguntou para que serviam os objetos. Cada um deles foi explicando uma parte. A bota era de sete léguas... Se alguém a calçasse e dissesse: “Bota, me bota em tal e tal lugar,” prontamente aparecia aonde havia pedido. O capuz deixava invisível a quem o usasse. E a chave era capaz de abrir qualquer fechadura de porta, de arca e de portão. Então disse o mais velho: "Não decidimos de que modo repartir: cada um dos objetos é um tesouro... Mas cada um de nós prefere um pouco de ouro do que brigarmos por tanto discutir..."

Ora, Raimundo aprendera com o pai a ser econômico e ainda tinha um saco e meio de moedas de ouro. Então, foi barganhando com os três irmãos, até que resolveu falar que sentia muito, mas no seu alforje só tinha cem dobrões de ouro, era o máximo que podia pagar e teria de desistir do negócio... Os três se entreolharam, suas vistas brilhando de cobiça, abriram o alforje para conferir o conteúdo, levantaram-se, apertaram-lhe a mão e saíram bem depressa, sem nem esvaziarem o canjirão de vinho... Raimundo recolheu os três objetos e o canjirão pela metade, voltando para sua mesa, a fim de acabar sua refeição.

Nesse momento, o estalajadeiro veio conversar com ele, muito nervoso. “Meu amigo, você foi logrado! Esses homens são três bandidos e encontraram esses objetos inúteis no oco de uma árvore, sei disso, porque já os escutei combinando, não se trata de herança, nem de mágica nenhuma. Mas não quis me meter antes, porque são salteadores e andam sempre bem armados. Eles viram o senhor chegar, acharam que era rico e armaram essa peça... Se não desse certo, iam lhe armar uma emboscada. Assim, o senhor perdeu seu ouro, mas conservou a vida!... E olhe, se não puder pagar a despesa, fica por conta da casa...”

Raimundo sorriu e agradeceu ao bom estalajadeiro, dizendo-lhe que não se preocupasse, porque ainda tinha dinheiro suficiente para pagar a hospedagem e estava mesmo indo de volta para casa, de modo que não passaria trabalho. Dormiu tranquilamente toda a noite, levantou-se cedo, pagou a conta tirando moedinhas de cobre de um saquinho que ficou quase vazio. O hospedeiro pareceu até ficar com pena dele, mas Raimundo tinha bastante dinheiro escondido, só queria parecer ter ficado com muito pouco, vá que algum outro bandido estivesse observando ou, quem sabe, se o seu hospedeiro tão cordial e generoso não ia receber uma parte do que tinham tirado dele? O melhor é que pensassem que estava quase a zero...

Saiu carregando os objetos que lhe haviam custado tão caro, entre risinhos de troça dos clientes e empregados, pensando que ele tinha sido logrado. De fato, não fora o primeiro, ele tinha razão em estar desconfiado, só que os outros desavisados tinham deixado os três objetos inúteis ali mesmo e os espertalhões os tinham vindo buscar para usá-los mais outra vez com a próxima vítima de suas vigarices. O próprio estalajadeiro tapou a boca com os dedos para que Raimundo não percebesse o seu sorriso de mofa.

Montou em seu cavalo e troteou até uma clareira no meio da floresta, atravessada por um riacho límpido e cheia de grama verde. Colocou uma peia nas patas dianteiras do animal, de modo que não pudesse ir longe ou correr e muito menos fugir e amarrou uma corda longa no arção da sela, prendendo a outra ponta em um galho grosso, de modo que ele poderia comer e beber a vontade, mas estaria à sua espera quando regressasse. O seu instinto lhe dizia que aqueles objetos eram realmente mágicos, mas que só funcionariam com alguém que tivesse um coração puro e um propósito inocente.

Assim, guardando o capuz e a chave nos bolsos, enfiou a bota larga sobre uma das que já usava, prendeu a respiração e disse: “Bota, bota-me na casa de minha irmã Rosaura.” Houve um clarão breve, tudo se apagou por um instante e lá se encontrava ele, precisamente no quarto de dormir de sua irmã, que estava sozinha, a pentear os seus longos cabelos. Ela se assustou e já ia gritar, quando Raimundo lhe disse quem era. Ora, Rosaura fora vendida antes mesmo que ele nascesse, mas o rapaz lhe descreveu toda a família e a casa em que moravam, falou sobre sua compra e nas cartas que enviava, até que ela se convenceu.

Conversaram o dia inteiro, ao meio-dia ela mandou trazer uma ótima refeição, ele contou tudo o que havia ocorrido desde sua partida e estavam às mil maravilhas, quando começou a escureceu e, imediatamente, a moça começou a chorar. “Mas o que é isso? Por que está chorando?” quis saber Raimundo. "É que o meu marido depressa vai chegar e se o encontrar aqui no meu quarto, não há de compreender... Ora, acontece que ele é o Rei dos Peixes e enquanto está nessa forma, é muito feroz... Quando chega aqui, se desencanta... Se te encontrar, porém, ele se espanta e assim te matará antes que eu possa explicar a tua presença. O melhor é que me deixes!" Porém Raimundo logo lhe afastou o medo: “Com o meu capuz eu posso me esconder muito bem... Depois tu explicas que eu sou teu irmão e que consigo me teleportar graças à minha bota mágica. Foi por isso que os guardas não me viram chegar...”

Logo se escutou barulho no corredor e um peixe imenso, coberto de escamas douradas, a cabeça azul com uma coroa de ouro, suas guelras e barbatanas vermelhas, entrou no quarto e começou logo a virar a cabeça de um lado para outro e a fungar. “Sinto cheiro de cristão!” afirmou ele. “Alguém da terra esteve aqui!...” Mas Rosaura sorriu: “Querido, eu sou cristã: é o meu cheiro que estás sentindo...” O peixe se acalmou e se transformou em um moço muito lindo, tendo na cabeça a mesma coroa que o peixe usara. Rosaura mandou as escravas lhe prepararem um banho e lhe trazerem uma saborosa refeição. Depois que o moço se banhou e comeu, Rosaura lhe indagou: “Meu marido, se meu irmão viesse me visitar, o que você faria com ele?” O rei pareceu surpreso. “Não sabia que você tinha um irmão. Mas se viesse, é claro que eu o trataria muito bem...”

Então Raimundo tirou o capuz e apareceu. Por um instante, os olhos do rei se encheram de fúria, mas o rapaz se apresentou muito cordialmente, colocou e retirou o capuz de novo, explicando como se havia escondido. E disse ainda que entrara graças à sua bota de sete léguas, que o teleportava aonde ele quisesse ir. O rei examinou os dois objetos curiosamente, depois foi até a janela e murmurou: “Se fossem meus, eu ia visitar a Princesa de Castela... Raimundo ouviu, porém não comentou nada. O rei disse a Rosaura: “Não gostei que você tivesse me enganado, mas está perdoada, porque agiu muito bem: eu poderia facilmente ter sufocado o seu irmão, antes de recobrar a minha razão humana...” Conversaram até tarde e depois o rei bateu palmas e mandou levar Raimundo para o quarto que lhe haviam preparado.

No outro dia, o rapaz se acordou cedo, banhou-se e foi tomar café com o rei e a rainha, avisando que pretendia agora procurar a sua segunda irmã. O rei queria que ele ficasse mais alguns dias, mas ele disse que já tinha visto como Rosaura estava bem, sendo tratada com carinho por um marido tão bom, mas que estava preocupado com a sorte de Rosália... Assim o rei, ainda em forma humana, o levou até o terraço, onde lhe entregou uma escama dourada e lhe disse: “Meu cunhado, se alguma vez, de dia ou de noite, precisar de mim, segure firme esta escama e diga: ‘Valei-me, Rei dos Peixes!’, que eu prontamente virei em seu socorro.” Raimundo agradeceu e o rei ajuntou: “Mas nunca deixe esta escama ao alcance de mais ninguém, porque ela tem fama de ser mágica, como de fato o é, e posso ser invocado por algum de meus inimigos.” O rapaz prometeu que teria o máximo de cuidado, calçou a bota e disse: “Bota, bota-me na clareira onde deixei o meu cavalo!” Houve um clarão, tudo escureceu por um momento e ele apareceu no centro da clareira. Depois de verificar que o cavalo estava muito bem, trocou o lugar em que ele estava amarrado para onde houvesse mais capim, verificou a peia nas suas patas dianteiras e falou: “Bota, bota-me na casa de minha irmã Rosália!...” Imediatamente houve outro clarão e ele desapareceu.

No mesmo instante, apareceu no quarto de sua segunda irmã. Rosália estava escolhendo as jóias que usaria naquele dia e levou um susto quando aquele homem apareceu em seu quarto. Mas antes que pudesse gritar, Raimundo disse quem era. Rosália só o conhecera como criança de colo, mas tantas coisas ele lhe explicou que ela se convenceu. Passaram o dia botando as notícias em dia, almoçaram uma ótima refeição, mas assim que escureceu, a moça começou a chorar. “Mas o que é isso? Por que está chorando?” quis saber Raimundo. "É que eu não reparei que o tempo estava passando, fiquei tão contente em te ver e conversar contigo, mas o meu marido depressa vai chegar e se o encontrar aqui no meu quarto, não há de compreender... Ora, acontece que ele é o Rei dos Carneiros e enquanto está nessa forma, é muito feroz... Quando chega aqui, se desencanta... Se te encontrar, porém, ele se espanta e assim te dará marradas com os chifres até te matar antes que eu possa explicar a tua presença. O melhor é que vás embora logo!" Porém Raimundo logo lhe afastou o medo: “Com o meu capuz eu posso me esconder muito bem... Depois tu explicas que eu sou teu irmão e que consigo me teleportar graças à minha bota mágica. Foi por isso que os guardas não me viram chegar...”

Logo se escutou barulho no corredor e um carneiro imenso, coberto de lã muito macia e branca, com chifres dourados e uma coroa na cabeça, invadiu repentinamente o quarto, balindo e dizendo: “Estou sentindo cheiro de cristão! Chegou aqui alguém que não habita em meus prados!” Rosália deu uma gargalhada, começou a lhe acariciar o pelo e falou: “Querido, eu sou cristã: é o meu faro que estás sentindo...” O carneiro se acalmou e se transformou em um moço muito lindo, trazendo na cabeça a mesma coroa que o carneiro havia usado. Rosaura mandou as escravas lhe prepararem um banho e lhe trazerem uma saborosa refeição. Depois que o moço se banhou e comeu, Rosaura lhe indagou: “Meu marido, se meu irmão viesse me visitar, o que você faria com ele?” O rei pareceu surpreso. “Não sabia que você tinha um irmão. Mas se viesse, é claro que eu o trataria com o máximo respeito e consideração...”

Então Raimundo tirou o capuz e apareceu. O rei soltou um grito de espanto, mas o rapaz se apresentou e lhe fez uma reverência, colocou e retirou o capuz de novo, explicando como se havia escondido. E disse ainda que entrara graças à sua bota de sete léguas, que o transportava aonde ele quisesse ir. O rei examinou os dois objetos curiosamente, dizendo em voz alta: “Você realmente tem neles uma mágica muito valiosa!...” E depois foi até a janela e murmurou: “Se fossem meus, eu ia visitar a Princesa de Castela...” Raimundo ouviu, porém não comentou nada. O rei disse, sorridente a Rosália: “Então, você me enganou, mas fez bem, senão eu poderia ter quebrado os ossos de seu irmão, antes de recobrar meu raciocínio de homem...” Conversaram até tarde e depois o rei bateu palmas e mandou levar Raimundo para o quarto que lhe haviam preparado.

No outro dia, novamente o rapaz se acordou bem cedo, tomou um banho agradável e foi a seguir tomar café com o rei e a rainha, que já o estavam aguardando, avisando a seguir que pretendia agora procurar a sua terceira irmã. O rei queria que ele ficasse mais alguns dias, mas ele disse que já tinha visto como Rosaura e Rosália estavam bem, ambas sendo tratadas com carinho e atenção por ótimos maridos, mas que estava preocupado com a sorte de Rosalba... Assim o rei, ainda em forma humana, o levou até o terraço, onde lhe entregou um chumaço de lã branca e lhe disse: “Meu cunhado, se alguma vez, de dia ou de noite, precisar de mim, segure firme este chumaço de lã e diga: ‘Valei-me, Rei dos Carneiros!’, que eu prontamente virei em seu socorro.” Raimundo agradeceu e o rei acrescentou: “Mas nunca deixe este velo ao alcance de mais ninguém, porque minha lã tem fama de ser mágica, como de fato o é, e posso ser invocado por algum de meus inimigos.” O rapaz prometeu que teria o máximo de cuidado, calçou a bota e disse: “Bota, bota-me na clareira onde deixei o meu cavalo!” Houve um clarão, tudo escureceu por um momento e ele apareceu no centro da clareira. Depois de verificar que o cavalo estava muito bem alimentado, amarrou a corda em outro galho para que pudesse continuar comendo à vontade, verificou a peia nas suas patas dianteiras e falou: “Bota, bota-me na casa de minha irmã Rosalba!...” Imediatamente houve um clarão e ele desapareceu.

Na mesma hora, apareceu no quarto de sua segunda irmã, que estava escolhendo o vestido que pretendia usar nesse dia e levou um susto quando aquele rapaz apareceu em seu quarto. Mas antes que pudesse gritar, Raimundo lhe disse quem era. Rosália só o conhecera até que fizesse cinco ou seis anos, mas brincara e cuidara dele e logo o reconheceu. Passaram o dia botando as notícias em dia, ele lhe contou a respeito dos pais e das duas irmãs, almoçaram uma ótima refeição, mas assim que começou a chegar o crepúsculo, Rosaura pôs-se a chorar. “Mas por que choras, maninha? Foi alguma coisa que eu disse ou estás com saudade?” quis saber Raimundo. "É que eu não reparei que o tempo estava passando, fiquei tão contente em te ver e saber das notícias, mas o meu marido depressa vai chegar e se o encontrar aqui no meu quarto, não há de compreender... Ora, acontece que ele é o Rei dos Gaviões e enquanto está nessa forma, é muito feroz... Quando chega aqui, se desencanta... Entretanto, se ele te encontrar antes da transformação, se espantará e vai te matar a bicadas, antes que eu possa explicar a tua presença. Vai embora daqui, maninho, foge depressa!" Porém Raimundo logo lhe afastou o medo: “Com o meu capuz eu posso me esconder muito bem... Depois tu explicas que eu sou teu irmão e que consigo me teleportar graças à minha bota mágica. Foi por isso que os guardas não me viram chegar...”

Logo se enxergou uma sombra na janela, um farfalhar de asas e um gavião imenso, coberto de penas castanhas e douradas e com uma coroa na cabeça, invadiu repentinamente o quarto, grasnindo e dizendo: “Aqui tem cheiro de cristão! Chegou aqui alguém que não habita em minhas montanhas!” Rosalba riu devagarinho, , começou a lhe acariciar as penas e falou: “Querido, eu sou cristã: é o meu cheiro que estás sentindo...” O gavião se acalmou e transformou-se em um moço ainda mais lindo que os outros dois, trazendo na cabeça a mesma coroa que o gavião havia usado. Rosaura mandou as escravas lhe prepararem um banho e lhe trazerem uma saborosa refeição. Depois que o moço se banhou e comeu, Rosaura lhe indagou: “Meu marido, se meu irmão viesse me visitar, o que você faria com ele?” O rei pareceu surpreso. “Realmente, eu a vi na sacada de sua casa com um meninozinho. Mas não sabia que seu irmão conseguiria chegar até aqui. Mas se viesse aqui, com todo o respeito e amor o trataria, quando menos porque precisaria de grande habilidade e coragem para galgar estas montanhas sem conseguir voar...”

Então Raimundo tirou o capuz e apareceu. O rei deu um pulo de espanto e quase virou um gavião de novo, mas o rapaz se apresentou, fez-lhe uma profunda vênia e colocou e retirou o capuz, aparecendo e desaparecendo várias vezes, para explicar como se havia escondido. E disse ainda que entrara graças à sua bota de sete léguas, que o teleportava aonde ele quisesse ir. O rei examinou os dois objetos curiosamente, depois olhou para a esposa e disse em alto e bom som: “Se fossem meus, eu ia visitar a Princesa de Castela...” Rosalba deu uma risadinha e lhe deu um tapinha de brincadeira. Raimundo prestou toda a atenção, porém preferiu não comentar, porque entre marido e mulher não se mete a colher. O rei então sorriu para Rosalba: “Isso foi para me vingar, porque você me enganou, mas fez muito bem, senão eu poderia ter arrancado os olhos de seu irmão, antes de recobrar meu raciocínio de homem...” Conversaram até tarde e depois o rei bateu palmas e mandou levar Raimundo para o quarto que lhe haviam preparado.

No outro dia, mais uma vez o rapaz se acordou bem cedo, tomou um banho agradável e foi a seguir tomar café com o rei e a rainha, que já o estavam aguardando, avisando a seguir que pretendia agora voltar para casa, a fim de dar as boas notícias a seus pais. O rei queria que ele ficasse mais alguns dias, mas ele disse que já tinha visto como Rosaura, Rosália e Rosalba estavam bem, todas sendo tratadas com amor e carinho por excelentes maridos, mas que estava preocupado com a saúde de seus velhos pais... Assim o rei, ainda em forma humana, o levou até o terraço, onde lhe entregou uma pena dourada e lhe disse: “Meu cunhado, se alguma vez, de dia ou de noite, precisar de mim, segure firme esta pena e diga: ‘Valei-me, Rei dos Gaviões!’, que eu prontamente virei em seu socorro.” Raimundo agradeceu muito, porém o rei lhe falou: “Mas nunca deixe esta pena ao alcance de mais ninguém, porque ela tem fama de ser mágica e de fato o é, porque com ela posso ser invocado por algum de meus inimigos.” O rapaz prometeu que teria o máximo de cuidado, calçou a bota e disse: “Bota, bota-me na clareira onde deixei o meu cavalo!” Houve um clarão, tudo escureceu como dantes e ele apareceu no centro da clareira. Depois de verificar que o cavalo estava bebendo tranquilamente a água do regato, tirou a peia de suas patas dianteiras, montou na sela e, ao invés de pedir para ir ver os seus pais, falou: “Bota, bota-me na capital da Princesa de Castela!...”

*** *** ***

Raimundo apareceu em uma grande cidade, perto de um castelo magnífico. O que ele não sabia, porque não perguntara aos cunhados, é que a Princesa de Castela era solteira e tinha a fama de ser a mulher mais bela do mundo. Mas foi indagando aqui e ali e como estava muito bem vestido, seu cavalo ricamente ajaezado e ainda tinha ouro suficiente para pagar a sua estadia nas estalagens, logo achou quem lhe contasse que a princesa era tão linda, que ninguém conseguia passar diante do castelo sem erguer os olhos, na esperança de a ver parada em alguma janela... Mas de nada lhes adiantava, porque a princesa havia jurado que só se casaria com um homem que passasse pelo castelo sem levantar as vistas para tentar vê-la.

Raimundo passou várias vezes pelo castelo, olhando firme para a frente e o rei mandou chamá-lo: "Minha filha quer se casar com você!... E eu prometi que sua escolha aceitaria, salvo se o homem que escolhesse me dissesse já ser casado ou que em nosso Deus não crê." Raimundo garantiu que era solteiro e um bom cristão; então o rei ordenou que fizessem os preparativos e realizassem a boda, mesmo que já estava ficando velho e sua filha era sua única herdeira. Precisava de um neto do sexo masculino para continuar a dinastia. O casamento foi muito lindo e concorrido e Raimundo e a Princesa Dona Leonor se deram muito bem. Mas era mulher e curiosa, Raimundo estava apaixonado e acabou por lhe contar todos os seus segredos.

Ora, acontece que o reino era assolado por um monstro imortal, a quem chamavam de Bicho Manjaléu. Por mais que o matassem, ele sempre retornava para comer carne de gente. Chegaram a queimar seu corpo e pulverizar seus ossos, mas daí a seis meses, ele estava de volta, meio fraco, mas faminto, portando-se pior que antes. Bravos cavaleiros o haviam matado de novo e cem soldados o arrastaram até o castelo, onde haviam construído um enorme poço, no qual ele foi acorrentado da cabeça aos pés. Havia uma portinha lá embaixo, por onde lhe jogavam comida, porque tinham medo de que, se ficasse com muita fome, fosse destruir o castelo. Leonor esperou um dia em que o pai e o marido tinham ido caçar, pegou a chave mágica e abriu a portinhola para ver como era o monstro.

Imediatamente o bicho, que tinha uns dez metros de altura, encolheu, passou pela abertura, agarrou Leonor, gritando: “Era você mesma que eu queria!” e saiu pelo corredor até a primeira janela, de onde pulou com a princesa nos braços, sem se machucar, porque voltou a seu tamanho natural antes de tocar o chão. E fugiu com ela para uma caverna que tinha numa montanha. O palácio ficou em alvoroço, sem acharem o monstro e nem a princesa... Só acharam a chave de Raimundo, caída no corredor. O rei disse: “Mas que menina mais levada! Há anos que estava curiosa e queria fazer isso... Que menina mais arteira!...” Mas Raimundo, para quem Leonor era uma mulher feita e não mais uma menina, não achou a menor graça e disse que iria trazê-la de volta.

A bota o levou até a caverna; por sorte o monstro estava caçando, mas Leonor estava presa por um grilhão no pé, atado a uma corrente grossa. Ele tentou abrir com a chave, mas descobriu que não tinha fechadura. Leonor lhe disse: “Meu querido, vá embora depressa, o Manjaléu volta em seguida e, se o encontrar, o matará!...” Mas Raimundo explicou que colocaria o capuz e o monstro não conseguiria encontrá-lo. Só que ninguém sabia como matar o monstro, então ela teria de seduzi-lo a lhe contar o segredo, só assim ficariam livres dele. Que não tivesse medo, ele estava ali e mataria o monstro para salvá-la, só que ele ia ressuscitar de novo e os perseguiria. Leonor prometeu que ia tentar.

Em seguida, chegou o bicho carregado de caça e pôs a carne para assar. Leonor lhe perguntou: “Ai, Manjaléu, você vai me devorar?” “Mas é claro que não, minha princesa,” disse ele. “Se quisesse, já a teria comido há muito tempo. O que eu quero é me casar com você...” “Casar comigo? Mas que absurdo, você é muito maior do que eu!...” “Ora, não seja por isso...” disse o Manjaléu e encolheu, ficando com uns sete metros. “Ainda está grande demais!...” Ele encolheu de novo e ficou com uns quatro metros de altura. “E agora, está melhor?” “Ainda faz três do meu tamanho!...” “Ora, vocês humanos são tão pequenos!... Mas tudo bem...” Encolheu uma última vez e ficou com dois metros de altura. “Agora é certo que nós podemos. Enquanto esperamos o casamento, quero que me faça um cafuné...”

E o Manjaléu pôs a cabeça coberta de pelos grossos e espetados no colo da princesa. Ela engoliu o nojo e começou a coçar-lhe a cabeça, a nuca, as costelas... O bicho começou a ronronar como um gatinho e falou, muito satisfeito: "Já vi que vai me dar uma boa esposa, agora que minha altura é do seu jeito..." "Mas eu não amo você!" disse a formosa. "Ah, mas eu lhe darei muitos presentes e serei muito bondoso e delicado, até que o seu amor tenha conquistado...” "Mas eu não posso me casar: já sou casada!" "Não é problema... Eu mato o seu marido..." Leonor estremeceu e disse que, mesmo assim, não poderia casar com ele, porque ela era cristã e o monstro não era batizado.

"Ora, não seja por isso: eu me batizo..." "Mas de que jeito? Para se batizar, é preciso ter alma e você não tem, porque não é gente..." Leonor falava todo o tempo sem parar o cafuné e o monstro respondeu, meio dormindo: "Mas alma eu tenho... É uma velazinha... A cera não derrete e sua luzinha nunca se apaga, porque onde ela está não tem vento...” "Mas como a velinha permanece acesa? Sem vento, não tem ar!” "É que ela está dentro de um ovo e o ovo está dentro de uma pombinha...” "Como assim?" perguntou a princesa, sem parar de lhe coçar o pelo duro, que já estava lhe lastimando os dedos. “É que a pomba está dentro de um diamante, enrolado em um pano de veludo; e o pano está dentro de uma arca e a arca esta no lugar mais profundo do oceano... É por isso que ninguém pode me matar! Eles me furam e cortam e eu me curo... Eles me queimam com fogo e óleo puro e novamente eu consigo levantar!... Eu só lhe conto isso porque está acorrentada aqui e não vai poder contar para ninguém... E mesmo que contasse, quem é que iria buscar a arca no ponto mais fundo de todos os mares...?”

Ora, Raimundo, protegido pelo capuz, tinha escutado tudo... Ele falou baixinho para a bota e esta o colocou diante da praia do mar. Então segurou firme a escama e disse: “Valei-me, Rei dos Peixes!” Assim que seu cunhado apareceu, pediu que mandasse buscar a arca. Não demorou muito e uns golfinhos a empurraram para a praia. Raimundo abriu a fechadura com sua chave-mestra e levantou o pano de veludo. O diamante refletiu os raios do sol e quase o deixou cego. Mas ele fechou os olhos bem depressa, segurou o chumaço de lã e disse: “Valei-me, Rei dos Carneiros!” Apareceu o seu segundo cunhado e ele mostrou o diamante. O rei chamou vinte de seus carneiros mais fortes e tanto marraram, que o diamante se espatifou e uma pombinha branca saiu voando de dentro dele. Raimundo segurou a pena e disse: “Valei-me, Rei dos Gaviões!” Uma revoada de gaviões perseguiu e capturou a pomba, trazendo-a para o rapaz.

A essa altura, o Manjaléu começou a sentir fortes dores de cabeça e reclamou de Leonor: “O que foi que você fez? Será que contou o meu segredo para alguém?” “Eu juro que não contei nada a ninguém!...” disse ela, sem mentir. “Pois se eu estou acorrentada aqui!...” O monstro sacou um alfanje, ou seja, uma espada recurvada que trazia à cintura, e disse: “Pois se me matarem, você morre primeiro, eu lhe corto a garganta!...” Mas Raimundo já tinha apertado a pombinha, que pôs o ovo e este bateu em um dos cacos do diamante, quebrando-se. Assim que apareceu a velazinha, Raimundo assoprou-a e ela se apagou! No mesmo instante, o Manjaléu sofreu uma dor terrível e morreu antes de ter tempo de degolar a princesa!...

Raimundo se teleportou até a caverna e viu que o monstro se virara em cinzas e que a corrente encantada havia caído do pé de Leonor. Pegou a princesa nos braços e a bota os levou de volta para a sala do trono de seu pai. Fizeram uma festa magnífica, que durou sete dias e sete noites, apareceram os três reis com as irmãs de Raimundo e ele foi até em casa, onde abraçou a mãe primeiro e a trouxe com o auxílio da bota, deixou-a com as filhas e foi buscar seu pai. O rei de Castela disse que estava muito velho e abdicou, nomeando Raimundo regente até que tivesse um filho e este completasse dezoito anos. Logo em seguida Leonor teve seu primeiro e muitos outros vieram depois.

E assim Raimundo se tornou rei de Castela

e firmou com seus cunhados aliança...

E até o ponto em que a memória alcança,

todos gozaram de vida longa e bela...

(VEJA TAMBÉM A VERSÃO EM FORMA DE POEMA)

William Lagos
Enviado por William Lagos em 14/07/2011
Código do texto: T3093955
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