ANJO NEGRO
- Dona Sebastiana? Posso entrar? Sou eu Celinha.
- Olá querida, claro que pode, entre logo que já vamos começar.
- Muito bem crianças, de quem é o dia de pedir histórias?
- Hoje é meu dia. Disse Celinha.
- Pensei que era o meu. Disse Pedrinho.
- Amanhã é seu dia Pedro, hoje é a Celinha.
- E que história você quer menina?
- Bem dona Sebastiana hoje eu queria saber de outras coisas.
- E que coisas são essas?
- Quero saber porque a senhora é negra?
- Sabe que ninguém nunca me perguntou isso? Mas vamos lá que eu te respondo.
- Nasci assim, tenho mais melanina que você e seu amigo, pois a pela negra me protege mais do sol. Venho de uma família que viveu na África a muitas gerações.
- Meu pai era negro, minha mãe e toda a minha família.
- E alguma vez a senhora foi descriminada por causa da sua cor de pele?
- Sim menina, e não foi uma vez somente, foram varias vezes.
- Muita gente pensa que somos diferentes, não somente na pele, mas aqui no coração.
- Vou contar uma história que aconteceu já uns 10 anos.
- Eu já morava aqui nessa casa, e um dia quase fui atropelada na esquina ali de cima.
- O motorista desceu do carro e começou a me xingar com muitos palavrões, e me chamando de negra suja e que eu devia voltar pra África.
- Fiquei dias sem sair de casa, arrasada com o que havia acontecido. Nunca em minha vida tinha passado por isso.
Mas como tudo tem volta nessa vida, algumas semanas mais tarde meu filho chegou em casa, e disse que havia no hospital em que ele trabalhava uma criança que precisava de um tipo raro de sangue. Ele sabia que eu tinha, e me pediu pra ir até o hospital doar.
- Chegando lá vi um menino mais ou menos da sua idade, muito lourinho e uns olhos azuis da cor do céu. A mãe dele estava junto, e começou a chorar ao contar a história do filho. Ele ia morrer se não recebesse sangue naquele dia. Pois havia sofrido um acidente de bicleta e havia sangrado muito. Estava ali deitado meio sem vida, parecia que nem respirava. O médico veio e perguntou se eu poderia doar o sangue. Claro que sim eu disse. Fui ligada ao pequeno e rapidamente vi meu sangue passar das minhas veias a dele. Isso me deu a sensação mais feliz da vida. Meu coração transbordou de alegria pelo bem que fazia aquela criança.
- Voltei para casa no fim da tarde, o menino ficou bom e rapidamente foi pra casa.
- Passado alguns dias vieram bater a minha porta, e qual não foi a minha surpresa em ver o menino que havia recebido meu sangue. Pedi para entrarem e rapidamente os recebi aqui nessa sala. A mãe se chama Jussara, o menino Lucas, assim como meu filho.
- E o pai de Lucas se chama Luiz. Perguntei onde estava o pai, e a mãe disse que ele já vinha, pois tinha ido estacionar o carro mais a frente. Quando ele chamou lá fora pedi que entrasse, e qual não foi a surpresa de ambos quando percebemos que o pai de Lucas era o homem que quase havia me atropelado dias atrás.
- Ele começou a chorar sem parar, e sem que eu pudesse falar alguma coisa, se ajoelhou aos meus pés e me pediu perdão pelas palavras que havia dito a mim. Contou a mulher e ao filho o ocorrido e cheio de remorso só sabia chorar.
- O dona Sebastiana, mas que história! E a senhora desculpou o pai do menino?
- Disse a ele que, naquele dia quando fui me deitar havia pedido a Deus que perdoasse aquela alma, e que eu esquecesse o que havia acontecido. Rezei vários dias por ele.
- E o que mais aconteceu?
- Bem Celinha, ele me abraçou muito, beijou o meu rosto e as minhas mãos e disse que nunca mais esqueceria o que fiz pelo filho dele. E toda semana ele vem aqui em casa com o Lucas e a Jussara. Já viajamos juntos, e vou sempre a casa deles. Jussara agora está grávida e querem que eu seja madrinha da menina que irá nascer. E já tem até nome, vai se chamar Sebastiana assim como eu.
- Ele aprendeu a lição, e percebeu que a cor da pele nada significa, e sim o que temos dentro de nós. Sabe que ele descobriu que teve um bisavô mestiço? Assim como você que tem uma vozinha negra.
- É verdade dona Sebastiana, eu tenho muito orgulho de ter parte do sangue da minha vó e do meu avô índio. E também tem italiano, e mais que ainda nem sei.
- Bem menina, agora por hoje é só.
- Ah, mas ainda nem pedi outra história.
- Vai ficar pra amanhã, pois daqui a pouco meu filho chega e tenho que dar atenção a ele.
- Pedrinho, você ficou quieto o tempo todo, está tudo bem com você?
- Está sim dona Sebastiana, fiquei é muito feliz em ver que a senhora não guarda mágoa no seu coração. E que esse pai aprendeu que não se deve julgar as pessoas pela cor da pele.
- Tem razão Pedrinho. Mas olha, amanhã você escolhe a história.
- Amanhã quero ouvir a história da sua família que veio lá da África, a senhora me conta?
- Conto sim, mas agora vão crianças que já está ficando tarde.
- Dêem um beijo aqui na negra e vão pra casa.
As crianças abraçam dona Sebastiana e dão um grande beijo em sua face.
- A senhora é um anjo. Disse Celinha.
- Anjo negro? E riu-se dona Sebastiana. Está bem Celinha e você menina também é um anjo, afinal quem disse que anjo tem cor?
Silvya Regyn@
21-06-2011
Nota: Uma história real acontecida nos idos de 1968.