TICO DE GENTE

A escuridão é medonha. O vento agita as árvores lá fora, os cães fazem sua sinfonia, enquanto Tico espia lá fora. As lembranças teimam em cutucá-lo. Uma a uma volta rasgando as entranhas de quem não pediu pra nascer. Não sabe nem de que ventre foi gerado. Muitas vezes chegou a pensar que nascera de um olho de batata ou de uma moita de bananeira. Quem sabe? Ninguém nunca lhe tem uma resposta, parece que nasceu sem voz. Bem, não é bem assim. Ele ouve a si próprio, mas quando fala parece que as pessoas não entendem sua língua.

Com um gemido de dor – a dor é mais do que física -, o menino se enrosca procurando vencer o incômodo do estar vivo. Ele recolhe os cambitos, coça a cabeça piolhenta e perebenta. O cabelo de pixaim dificulta à caça aos milhares de seres minúsculos que dominam àquele território. O coquinho de Tico é bem requisitado e habitado. É apenas um guri. Um pingo de gente. É Tico... Que só recebe cascudo, pontapé, bofete. Apanha por ou sem merecer. A vara de goiaba, de marmelo, o chicote, a corda desce por mãos gigantes sem dó, nem piedade. Depois de tanto descaso a pele do Tico ganhou uma crosta. Endurecida, parecida com casco de jacaré.

Dorme no chão. Aquenta-se com os cães da fazenda. Por companheira inseparável: a fome. Mesmo se houver fruto no pomar ele jamais poderá pegar até àquela que estiver apodrecendo no chão. Sede? Mata a bendita em qualquer poça d’água ou de lama. Assim vai vivendo. Trabalhando de sol a sol. Trabalhando pra burro. Mas os burros da fazenda recebem até guloseima, e tem teto. Água e comida trocadas duas vezes ao dia. Tem até quem lhes dê banho e escove os pelos... Nenhum deles tem pereba ou bicho no corpo. Qualquer sinal de doença,chamam o veterinário.Quanto ao Tico... Corpo franzino, cabeção e olhos esbugalhados. A um sinal, corre feito um raio, mas os maus tratos continuam. É que ele não sabe como agradar àquela gente.

Depois daquela sova ‘bem merecida e piedosa’ o menino sem forças para lamber as feridas fora enroscar-se pela última vez...

Pela manhã, ‘seus tutores’ irão encontrá-lo dormindo após o sol despontar. Mas a rotina deve continuar a mesma. Tico deixará de ser um’ peso morto’, uma ‘boca a mais’, um ‘estorvo’, um ‘burro que de tão burro não sabe coçar outro burro’... Quem vai sentir falta desse ‘farrapo de gente’? Coloca dentro de uma estopa, acrescenta umas pedras, e joga no ‘Cai Aí’!

É... Tico foi apenas chama de uma vela que o vento apagou.

Ione Sak
Enviado por Ione Sak em 16/06/2011
Reeditado em 30/03/2012
Código do texto: T3039169
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