A aristogata e o gato esfarrapado

Numa cidade do interior de São Paulo, uma gata assiste da janela da mansão onde vive, o movimento de outros animais que vivem na rua e comem das sobras que vão ao lixo.

- Nojentos – exclama a felina. Será que não tem casa não? Pobres diabos esfarrapados e rejeitados. Acho que ninguém os quer; são tão feios. Eu não! Sou bem adotada e tenho na casa que é quase um palácio, um quarto só para mim; igualzinho ao Mateus, filho dos meus protetores.

De repente, vindo do lado contrário da rua, um gato esfarrapado cruza o asfalto em busca de alguma migalha que lhe dê sustento por algum tempo. Num lance feliz de percepção, os olhos que varrem a rua e as casas mais próximas, vêem a gata refestelando-se na janela. E, com um miado meio que morto de fome, fala para ela:

- Desce aqui gatinha. Vamos conversar.

- Ora, seu gato insolente, por que eu iria sair do alto da minha nobre aristocracia para ir até ai falar com você?

- Porque somos gatos, você e eu, iguais em raça e sentimento. Predadores de ratos.

- Aposto que nem nome tem - indaga a gata.

- Tenho sim, chamo-me Amendoim. Fui adotado por um tio que era porco e que acabou virando lingüiça, por isso vivo sozinho como um órfão sem lar. Mas, já tive uma casa, um lugar para chegar. Se bem que um chiqueiro.

- Amendoim? Isso lá é nome de gato que preste? Tem cabimento, gato ter tio porco? Veja eu; tenho por nome completo Joana Mi Albuquerque Mi. Olha só que nome mais chique. Socialmente, chamam-me Joana Mimi. No seio da família, carinhosamente, atendo por Mimi. Descendo dos Albuquerques Mimis, da monarquia escandinava dinamarquesa. Família constituída de gatos apenas; respeitada pela nobreza e coragem desde a guerra dos cem gatos quando meu avô, bravo felino da realeza, defendeu o país da invasão dos gatos nórdicos, num gesto heróico que lhe custou a perda da pata traseira esquerda e do único rabo que tinha.

Mal acaba de narrar sua história, inicia-se uma sucessão de movimentos que num piscar de olhos encerra a cena: Amendoim, num salto rápido como um corisco alcança um galho no alto da árvore em frente ao casarão e um Pastor Alemão choca-se com o Resedá, batendo violentamente a cabeça contra o tronco da árvore. O cão, soltando um dolorido ganido sai tonto a cambalear pela rua.

- Como soube que seria atacado, se estava de costas? - pergunta Mimi, admirada - Eu que estava olhando de frente para a rua não vi o canzarrão. Surgiu sorrateiramente sabe lá de onde.

- Ora, minha querida gata, companhia das madames de Toulouse; na vida tudo é uma questão de oportunidades. Quantas vezes não sonhei com essa que você teve, cara gatinha? Desejei uns cem números de vezes que algum menino me visse perdido no meio da rua e pedisse ao pai que parasse o carro, me acolhesse carinhosamente, me afagasse no seu colo e me levasse para casa. Mas, como disse, na vida tudo é uma questão de oportunidades. Uma que por necessidade a vida me deu e por inutilidade te negou, foi a de desenvolver esse sentido aguçado, quase intuitivo que me defende de ataques de inimigos como esse de há pouco.

Mimi entendeu claramente a mensagem de Amendoim. No mesmo instante despe-se da empáfia e surge em seu intimo a simplicidade, e entre ela e o esfarrapado, uma grande amizade, e deles, no futuro, quiçá, muitos gatinhos.

Rossan
Enviado por Rossan em 26/04/2011
Reeditado em 28/04/2011
Código do texto: T2933001