Sem sentir
Era uma vez uma linda menininha que um dia decidiu não sentir mais nenhuma emoção. Ela havia nascido com medo de sentir não apenas as emoções ruins, mas também as boas. A qualquer emoçãozinha que a menininha se visse prestes a sentir, uma grande onda de pavor subia ao seu coração, e ela cavava um pequeno buraco, onde quer que estivesse, e enfiava o rosto, tal qual fazem os avestruzes.
O jardim de sua casa vivia esburacado, e sua mãe estava cansada de tanto reclamar. Mas nada adiantava. A menininha tinha medo de sentir. Com isso, ela pouco saía de casa, pouco falava, era muito solitária e tinha apenas por companhia os buracos vazios à sua volta.
Ela não conseguia sequer chorar, porque chorar significaria sentir alguma coisa, e a menininha recusava-se a sentir. Então uma coisa estranha aconteceu. Os buracos que havia no jardim de sua casa começaram a sumir.
Um a um foram desaparecendo. Mas eles não sumiram no mundo, não; só mudaram de lugar: foram parar dentro da linda menininha. Ela começou a sentir o vazio que os buracos deixavam. E aquilo a incomodava. Sentir um buraco no peito, um buraco na testa, um buraco nas costas, um buraco em cada parte do seu diminuto corpo era muito ruim, muito ruim mesmo.
Teimosa e orgulhosa, não queria pensar e menos ainda sentir o vazio que os buracos deixavam.
Com isso, cada dia era mais longo que o anterior, porque, pode não parecer, mas buraco pesa pra dedéu. É um mundo que se carrega e, como ela tinha vários buracos, cada dia ficava mais difícil levantar da cama, brincar, sorrir. Ter tantos vazios começou a fazer muito mal à menininha. Ela, que antes enxergava tudo colorido, começou a ver só em preto e branco. Certa vez, ela assistia à televisão na casa de sua avó, e os artistas apareciam todos em preto e branco.
Foi assim que ela começou a ver o mundo. Seu ursinho cor-de-rosa, que ganhou da tia Sonia, de repente se transformou em cinza, um cinza feio. Seu copo, que tinha a figura de um sapo verde, de um dia para o outro ficou preto, branco e cinza. O cinza começou a imperar em sua vida. Para qualquer lugar que olhasse, só enxergava o preto, o branco e os vários tons de cinza.
Tudo isso acontecia por conta dos buracos que carregava. O pior é que a cada dia os buracos incomodavam mais e mais: ardiam, doíam, fediam, coçavam… Ih, era um horror! Um horror horrorizante!!! Mas a menininha continuava com o firme propósito de não sentir. Até que um dia algo aconteceu.
Ela estava no jardim de sua casa, numa linda manhã de primavera – que, diga-se de passagem, ela não era capaz de ver, nem de sentir – a menininha ficou pensando em quanto problema arranjou para sua vida, por ter medo de sentir. Aqueles pensamentos a fizeram ficar cada vez mais triste, com um olhar perdido, porque ela cavara tantos buracos para se esconder, que acabou caindo neles, e não sabia como voltar.
Ela ficou pensando, pensando, pensando em como poderia sair daquela enrascada em que ela própria se metera. Aí se lembrou de sua avó, que sempre dizia que cada menininha tinha um anjinho que lhe tomava conta e que, quando ela estivesse em qualquer apuro, poderia ajudá-la. A menininha, apesar de ser menininha, não acreditava muito em anjinho, não.
Ainda se fosse em fada… “Será que menininhas como eu têm alguma fada-anjinho que lhes poderia ajudar?” – perguntava-se. “Bem, não custa nada tentar”.
E a menininha começou a sentir uma coisinha muito estranha no peito. Era como se fosse um solzinho, do tamanho de um grão de feijão. Então a menininha, que não sabia como chamar a fada-anjinho, fechou os olhos, juntou as duas mãozinhas e disse em alto e bom som:
– Fada-anjinho, por favor, me ajude! Sou apenas uma menininha que tem medo de sentir!
Falou isso e parou. De olhos fechados estava, de olhos fechados ficou. Nada diferente sentiu. Com medo de abrir os olhos – sim, porque a menininha era muito medrosa, teimosa e orgulhosa – ficou ainda alguns momentos parada. Então decidiu contar até dez e só então abrir os olhos.
Tudo continuava o mesmo.
O jardim continuava igual às fotografias antigas que a avó tinha em casa, em preto, branco e cinza. Porém, ao olhar mais detalhadamente em volta, viu uma linda borboleta azul pousada num canteiro de margaridas. Tudo estava branco, preto e cinza, mas na linda borboleta ela conseguia enxergar seus maravilhosos tons de azul. Ela viu quando a borboleta voou e veio pousar em seu colo. Era uma borboleta muito linda, mas era estranha.
Tinha cara de gente, não de borboleta.
Foi aí que a menininha entendeu que aquela borboleta era sua fada-anjinho, que veio atender ao seu chamado. A fada-anjinho logo começou a falar com voz de gente, e a menininha prestou muito atenção.
– Menininha, ouvi o seu chamado e vim ajudá-la. Não tenha medo de sentir qualquer emoção – aconselhou a fada-anjinho.
– Mas as emoções são muito fortes, e eu sou apenas uma menininha, tenho muito medo.
– Eu sei que é apenas uma menininha, mas, se continuar a não querer sentir, sua vida ficará cada dia pior. Tudo a sua volta se tornará cada dia mais triste. Passará a enxergar só preto. Até o cinza e o branco vão sumir. Você só verá a escuridão. O mundo é tão bonito, há tantas coisas que você precisa ver e apreender… Mas você precisa entender que temos que viver todo tipo de emoção, porque senão não vamos crescer. Você não quer crescer, estudar, viajar, ter uma casa grande e bonita? Então! Para isso precisa crescer, não é verdade? – perguntou docilmente a fada-anjinho.
– É… eu quero – disse a menininha, meio desanimada, mas com um grãozinho de esperança no peito.
Depois de um pequeno silêncio, ela indagou à fada-anjinho:
– Mas como faço para parar de sentir medo?
– Você nunca deixará de sentir medo. Há momentos em que sentir medo é bom. O que você pode fazer é, mesmo sentindo medo, agir. Não deixar que o medo faça você ficar parada. – aconselhou a fada-anjinho.
– Mas como faço então para agir mesmo quando o medo vier muito forte?
– Ah, para isso eu vou dar de presente a você, um objeto especial. Ele é mágico! – disse a fada-anjinho, sorrindo – Feche os olhos e estenda as mãos!
Assim fez a menininha. Ao sentir um pequeno peso nas mãos, abriu os olhos e viu um caderno com ilustrações de borboletas. Parecia, no entanto, um caderno comum, apesar das alegres figuras das borboletas.
A menininha ficou intrigada, olhando para aquele caderno. Ele não parecia especial, muito menos mágico. Nas histórias que sua mãe lia antes de ela dormir, os livros mágicos eram grandes, cheios de figuras e salamaleques. Aquele caderno não tinha nada de especial! Ela olhou para a fada-anjinho e perguntou, sem muita fé:
– Isso é mágico?! Mas é apenas um caderno! – questionou a menininha.
A fada-anjinho riu e garantiu:
– Acredite: é um caderno mágico, sim. As melhores coisas da vida são assim, simples! Se você, a cada vez que tiver medo de sentir, escrever nele, sua vida vai melhorar muito! Você vai crescer, e os buracos que habitam você diminuirão, até sumirem. Para tirá-los de dentro de você, só escrevendo. Cada vez que escrever, mais e mais as palavras que escrever taparão os buracos que você criou. Um a um serão fechados, e sua visão também voltará ao normal. Passará a ver tudo colorido. O mundo terá todas as cores. Você passará a sentir emoções boas e também as más, porém será, ainda assim, feliz. Creia. Você crescerá e será feliz! – garantiu a fada-anjinho, sorrindo.
– Mas… e quando o caderno acabar? – questionou a menininha.
– Quando este acabar, basta comprar qualquer outro que tenha borboletas na capa. Qualquer caderno com borboletas é um caderno mágico, você sabia disso? – perguntou.
A menininha sacudiu a cabeça, admitindo a própria ignorância.
– Sim – continuou a fada-anjinho – creia: qualquer caderno que tenha borboletas é mágico. Se pegar um que não tenha e pintar borboletas nele, o caderno fica mágico na mesma hora.
Em seguida, a linda borboleta azul bateu as asas e começou a voar. Antes de sumir completamente, olhou para trás e disse:
– Siga as borboletas. Você será feliz!
E a menininha seguiu.
Hoje ela não é mais uma menininha. Cresceu. Transformou-se numa linda mulher. Uma mulher que é feliz e tem uma pilha enorme de cadernos cheios de borboletas em casa. A pilha cresce, mais e mais, a cada ano.