Dálio e Líria, uma historia para aprender o amor

“-Contas-me uma história?” – a menina perguntou ao sono, que a aconchegava nos braços, como a brinquedo desejado.

“-Claro!” – disse o sono em voz meiga. “-Fecha os olhos e escuta-me...”

Era uma vez um reino onde nada era real. Tudo era de brincar: as casas, as árvores, o sol, as nuvens, o amor, a alegria a tristeza... as meninas e os meninos, as mães e os pais, tudo! Até as brincadeiras!...

Um dia, Líria, uma menina de brincar cansou-se de tanta fantasia e faz-de-conta e resolveu ir à procura da realidade.

“- Cuidado!” - diziam-lhe os duendes, as fadas, o pai e a mãe, e até um sapinho-príncipe que ela conhecia. “- O mundo real tem muitos, muitos, perigos, lá o sofrimento dói a sério, a chuva é mesmo fria, o ódio magoa, o sol faz mal à pele...”

Mas quê?!... a menina estava determinada em ir em busca da Vida verdadeira. E foi.

A mãe preparou-lhe uma refeição aconselhada pela fada Crescina, que ela comeu a brincar e que a fez crescer. Ficou forte e linda! Depois o pai, ainda na brincadeira, subiu-a aos ombros e colocou-a sobre um cavalo branco todo enfeitado de flores de fantasia... e ela partiu, pela estrada calcetada de berlindes e contas...

Cavalgou, cavalgou, atravessou campos pintados de fresco com florzinhas de aguarela, atravessou um rio feito de papel de prata azul, passou colinas feitas de veludo almofadado... até que veio o véu negro da noite e a cobriu de sono e cansaço. Ela apeou-se do cavalo e adormeceu depressa, sem sequer reparar que o chão de relva onde se deitara não era lá muito fofo...

Quando acordou, o sol pareceu-lhe ofuscante e impertinente. Onde é que estavam as nuvenzinhas-a-fingir-cortinas que todas as manhãs lhe traziam beijinhos meigos de sol!?... Notou então que se havia deitado sobre pedras e erva húmida e que o seu vestido estava molhado e sujo. Sentiu frio... Bolas, será que já estava no mundo real?... Como, se ainda não atravessara nenhuma fronteira, se ontem tudo ainda era tão igual ao mundo que deixara, se hoje, apesar do vestido sujo e do frio, tudo ainda lhe parecer tão bonito?...

Resolveu então continuar o caminho, encontrar respostas...

Procurou o cavalo branco, mas... ele desaparecera!...

Sentiu fome. Olhou em volta: perto dela, um silvado acenou-lhe amoras negras, a rebentar de doçura e sumo. Hummmm!... Apressou-se a alcançá-las só que... ui!... picou-se nas silvas agrestes e quase desistiu. Mas as amoras continuaram lá, a tentar-lhe a fome e ela persistiu.

Depois de alguns arranhões, do susto de ver o seu sangue verdadeiro a escorrer-lhe na pele, da raiva verdadeira a fazer-lhe correr lágrimas com sal, a menina alcançou as amoras e deliciou-se. Soube então o que era a grata sensação de cumprir um desejo... e as amoras ainda lhe pareceram mais suculentas e gostosas!...

O sol, que não estivera com contemplações e se adiantara na jornada, já ia alto e dardejava raiozinhos endiabrados sobre a paisagem de largos horizontes. À direita, havia um bosque verdejante; à esquerda uma seara em ondulações de trigo maduro, à sua frente, uma estrada que desaparecia entre dois montes encostados um no outro, como que a medir forças... e atrás de si, uma charneca envolvida em neblina, sabe-se lá escondendo o quê!... Não, fosse qual fosse o caminho que escolhesse, não poderia voltar para trás!... havia algo a repeli-la, naquela charneca, algo, não assustador, mas já não alcançável, que a afastava, que a empurrava para a frente, para a frente...

Decidiu-se pela floresta, porque viu uma casinha, lá bem ao fundo, com a chaminé a pintar o céu azul de fumo cinzento, e a sombra das árvores lhe pareceu mais acolhedora que o ondular quase de aço quente da seara. A estrada não, não quis seguir pela estrada que, apesar de rectilínea e convidativa, lhe pareceu incerta, árida e traiçoeira, assim a sumir-se entre a dúvida de duas escarpas rivais.

E lá foi, sentindo o afogueamento do calor a tingir-lhe as faces de vermelho e a molhar-lhe a testa de suor... Tudo era novo para ela: o toque áspero dos ramos secos, a satisfação de descansar na sombra dos ramos frescos... a dor nos pés, que ela logo esquecia, quando corria atrás de uma borboleta que a encantara... a sede aflitiva, que ela saciou com um gosto novo, quando encontrou um riacho de águas frescas... Por um momento quase pensou estar de novo no seu mundo de brincar, de tão cristalino e cantante que era o riacho!... Mas não, era água mesmo, água que molhava, que ela não podia apanhar entre os dedos, mas que refrescava, que lhe matava a sede, que lhe lavava a pele e os vestido!... “-Ah, afinal este mundo real também tem coisas maravilhosas!” – repetia ela, entre encantada e surpresa, para os passarinhos que a acompanhavam, tão admirados quanto ela por verem ali uma menina tão-de-brincar...

E pronto, encontrou-o. Ao desembocar numa clareira, deu de caras com ele. Era um rapaz com cara de poucos amigos, roupas sujas, suor a escorrer-lhe pelo peito quase descoberto, mãos ásperas de lenhador. Ele olhou para ela com ar entre estupefacto e desconfiado. Ela já tinha lavado o vestido e parecia uma boneca cara de porcelana, com os seus cabelos feitos de anéis de ouro em fios, os seus olhos entre-azul-e-verde-com-o-sol-lá-dentro, a sua pele de rosa com orvalho, os seus lábios pintado de frutos silvestres...

“-Donde é que saíste, menina?...” – perguntou ele, em tom irónico. “- De algum conto de fadas, foi?...”

Líria baixou os olhos e resolveu não responder... Se lhe contasse, ele acreditaria?... claro que não! A sua intuição dizia-lhe baixinho que neste reino de vida real não se acreditava muito em fantasia... bastava ver o brilho irónico dos olhos dele!...

“-Hã.... eh... eu perdi-me”, titubeou ela.

“-Ah, logo vi!...”. Pôs-se a olhar fixamente para ela e perdeu-se num gesto de mãos a acariciar-lhe os lábios grossos, que sorriam ironicamente.

Que inconveniente!, pensou Líria, sentindo uma impressão nova. Seria raiva? Ódio? Ah, este mundo a sério bem podia ser mais objectivo e aqueles sentimentos novos mais fáceis de encaixar em palavras e definições!...

Sentiu-se perdida, pequenina, naquele imenso momento novo. Pareceu-lhe que ele nunca mais deixava de olhar para ela e desfazia aquele sorriso atrevido. Até os passarinhos que a tinham vindo a acompanhar, se calaram, na expectativa...

Finalmente ele desfez o gesto contemplativo e, quase de maneira brusca, disse-lhe:

-Vá, não tenho tempo para ti, tenho que trabalhar... Se tiveres fome, vai por este caminho, logo encontrarás a minha casa. Já deixei o lume aceso, podes entrar, preparar alguma coisa para comer, e depois descansa um pouco, pareces cansada. Quando eu terminar, vou ter contigo e explicas-me quem és e donde vens.

Ela rodeou-o, quase a medo, e lá foi, pelo caminho que ele indicara.

Quase respirou de alívio, quando se viu livre daquele olhar que parecia querer absorver-lhe algo novo que ela sentia dentro do peito... a sua alma de verdade, pensou ela, e isso quase a assustou.

A casa do lenhador era modesta, mas limpa e arejada. A primeira impressão que lhe causou, porém, foi de solidão e tristeza: não havia cortinas com folhos nas janelas, nem jarras com flores, nem lustres cintilantes a pender do tecto, nem quadros coloridos nas paredes, nem tapetes fofos pelo chão… e nada, mesmo nada de fantasia. Será que o mundo real tinha que ser assim tão frio e austero?

Olhou os campos circundantes, através da vidraça fria e as flores lá fora lembraram-lhe o reino de onde viera: coloridas e alegres, baloiçavam no vento como borboletas de fantasia. Apeteceu-lhe trazê-las para dentro daquele casebre, trazer a cor, o perfume, a delicadeza dos seus bailados na brisa... Saíu, apanhou um enorme ramo de muitas cores e trouxe-as para dentro, espalhando-as pela casa, em ramos artisticamente compostos. Pareceu-lhe muito melhor!

Então, sentiu fome.

Lembrou-se que o lenhador lhe tinha dito para preparar alguma coisa para comer - isso devia ter alguma coisa a ver com o lume, a crepitar docemente a um canto da sala ampla. Mas ela era um menina de um reino de brincar, como poderia saber o que preparar para matar a fome?... Pela manhã tinha comido amoras silvestres, e para isso não precisara de lume, nada! Só o sacrifício de uma ou outra picadela, desferida pelas silvas a quem as “roubara”… Ah que mundo complicado! Agora, nada era a fazer-de-conta, muito menos aquela dorzinha no estômago, como se tivesse engolido um ratinho a sério, e ele a estivesse a roer por dentro…

Abriu os armários toscos ao lado da lareira e tudo o que encontrou foi um pedaço de toucinho e uma côdea de pão. Pouco, sequer dava para alimentar o seu ratinho, que ela fingia estar no seu estômago, quanto mais para dois ratinhos, o seu e o do rapaz, que tão generosamente, afinal, se dispusera a partilhar com ela tudo o que tinha… E, como gente de coração verdadeiro, achou que não era justo comer tudo sozinha. Lembrou-se que, quando fora colher as flores, vira uma pequena horta, com feijões tenros, tomates vermelhinhos, cenouras e cebolas a espreitar da terra, cabacinhas rechonchudas e outros legumes prontinhos e apetitosos. No fogo, um grande pote de ferro borbulhava vapores, fazendo tamborilar o pesado testo como rítmica pandeireta… Instintivamente, levantou-o, cuidadosa, e introduziu na água fervente o pedaço de toucinho. Depois saiu para a horta, levando uma enorme cesta, que encontrara atrás da porta. Trouxe nabos, hortaliças, batatas, feijões, cebolas, cenouras, cabacinhas; colocou tudo na panela de barro, cortado em pedacinhos com uma faca que ela tivera de aprender a manusear com cuidado, porque cortava a sério!...

Dali a pouco um aroma agradável rescendia da panela, enchendo a sala. O seu estômago ronronou e, desta vez, ela achou que a sua fome era, afinal, um gatinho manhoso… e tão manhoso e atrevido, que nem a deixou esperar pelo lenhador: depressa a fez servir de uma enorme malga do caldo que “produzira”, e que ela achou a coisa mais saborosa que alguma vez, no seu mundo de fantasia, tinha provado.

Estava tão cansada agora, que só lhe restaram forças para entrar no pequeno e único quarto da casa e deixar-se cair sobre a cama simples, onde ela já tinha espalhado flores…

Adormeceu.

Quando Dálio (assim se chamava o jovem lenhador) chegou, o cheiro da sopa quente surpreendeu-o agradavelmente: aquela menina, que mais parecia surgida de um conto de fadas, afinal era uma fada mesmo! As flores “transplantadas” por ela reflectiam a luz da tarde e enchiam os cantos de cor. Pareceu-lhe que um toque mágico tinha iluminado o ambiente…

Guiado pelo aroma, dirigiu-se ao canto da lareira e descobriu a sopa retemperadora preparada por Líria. E soube-lhe tão bem, tomá-la na tigela grande onde ela própria a tomara também, e que deixara por arrumar, tomada pelo cansaço… Depois, com um sorriso agradado nos olhos simples, lavou a tigela ele mesmo, arrumou-a, retirou o caldo do fogo. Devagarinho, abriu a porta do quarto e espreitou-a. Era linda, pensou ele, sentindo-se corar. Devia ser da sopa quente, deduziu. Ficou ainda uns momentos a olhá-la, até se decidir entrar no quarto, cobri-la com muito jeitinho com um cobertor de lã, retirar outro do único armário existente, e, em bicos de pés, depois de outro olhar ao rosto de boneca de Líria, sair e fechar a porta com todo o cuidado.

Havia uma enxerga num recanto da sala com algumas almofadas simples, que lhe servia de canapé. Embrulhou-se, ele próprio, no cobertor que trouxera do armário, e deitou-se, adormecendo quase imediatamente.

Na manhã seguinte, Líria acordou sentindo um calor doce inundar-lhe as faces: era o sol, pensou, que entrava livremente pela janela aberta e trazia chilreios de passarinhos…

Mas afinal não era só o sol… quando as suas longas pestanas esvoaçaram e lhe abriram o olhar, ela viu-o. E voltou a sentir aquela estranha e real perturbação dos sentidos: o coração desatava a bater mais depressa, o rosto pegava fogo, as suas pálpebras recuavam o voo aberto e os seus olhos fugiam dele, pousavam, tímidos, nas suas mãos, nos objectos, nas flores espalhadas pelo quarto… nas flores espalhadas pelo quarto!!! De repente esqueceu o olhar dele e levantou-se, numa aflição! Que acontecera às flores espalhadas pela casa?...

Ela não queria acreditar. Quase a chorar, corria de flor para flor, desgostosa, realmente desolada… Primeiro ele não compreendeu. Ficou a vê-la chorar as flores mortiças, sem viço, moribundas, como quem chora a morte de alguém…

-Que fiz eu, que fiz eu?... Elas eram tão lindas, eram um pedacinho da minha terra de sonho… Porque murcharam, porquê…?

Dálio sentiu o coração enternecer-se quase até lhe doer… Percebeu que tinha de lhe ensinar coisas que ela não aprendera no sítio de onde viera, fosse ele qual fosse. Uma terra onde tudo seria perfeito, talvez… como ela. Explicou-lhe então, numa voz doce (era extraordinário como a sua voz podia ser tão doce! – pensou ela, lembrando-se da rudeza que ele aparentara, na véspera), que as flores cortadas estavam condenadas a morrer mais cedo, mas eram eleitas e felizes, porque contribuíam para alegrar, para oferecer como símbolos de amor, para embelezar, para dar vida, para estar perto dos corações humanos, para homenagear. Uma flor podia ser mensageira de tantas emoções! No jardim, acabaria por morrer também, sem ter cumprido essa missão maravilhosa!...

-E depois – continuou ele, dirigindo-se a uma mesa onde tinha um jarro de água fresca – podemos sempre cuidá-las e dar-lhes de beber, assim, olha… - e ia colocando os ramos a definhar no jarro da água.

Líria escutou tudo atentamente, ouviu-o falar de jardins, de ramos de noiva, de coroas de flores… da vida, enfim, sentindo-se cada vez menos inibida por ele, cada vez mais perto de ser sua amiga a sério. De gostar dele a sério. De repente ele calou-se, mas ela continuou a compreendê-lo, só olhando-o nos olhos. E aprendeu também que no silêncio também pode haver entendimento, que os olhos também falam…

Quando voltou a olhar para as flores, viu que tinha acontecido uma coisa maravilhosa! Elas tinham, pouco a pouco, recuperado a vitalidade e pareciam celebrar o amor e a beleza, erguendo-se em exuberância de cores e perfume!

-Vês, Líria?... – ela já lhe tinha, entretanto, contado a sua história. – As flores são frágeis, ainda mais quando cortadas do jardim que as criou… por isso temos que cuidar delas, colocá-las em água sempre fresca, aparar-lhes as pontas mortas… tratá-las com amor. E, principalmente, nunca descurar o jardim onde nasceram: replantar, regar, cuidá-lo, para que haja sempre flores frescas para colher…

Abraçaram-se e entenderam-se. Como se houvesse uma razão para que a fantasia nunca deixasse de florir nas suas vidas.