LIZA
Quando as coisas vão mal com a sua vida, é bem possível que você esteja se aproximando do reino da imperatriz Liza Sorguina. Há muito tempo, quando a gigantesca rocha foi retirada da entrada do sepulcro cinza, conta-se que o seu fantástico guarda-costas Boiuiun foi o primeiro a vê-la, e a notar o quanto ela estava mudada. Boiuiun era um cachorro de fogo brilhante, cujos pêlos transparentes lembravam papel celofane multicolorido. Girando, alegre, em seu redor, ele latia muito alto, o que alertou todos nas redondezas, naquela manhã quente de primavera. Liza disse:
-petitio arretex boiuiun, dissimularum presentia meam.
O cão de pronto obedeceu, mas algumas pessoas já tinham chegado e olhavam, estupefatas. Uma nuvem passou pelo céu encobrindo a colina onde Liza tinha sido sepultada. Claro que isto não ocorreu, como eu havia dito antes, ‘há muito tempo atrás’, mas no tempo exato para que se repita indefinidamente para você, ou para qualquer um que tenha problemas. Ou seja, naquele momento circular que todos chamam de salvação, ou intervenção divina ou acaso ou convergência ou karma ou pronóia ou mesmo o absoluto mais inexplicável.
Mas o fato é que Liza Sorguina tinha renascido, e isto é grande coisa, acreditem. Aquelas pessoas ali não sentiam isso, mas aquela nuvem surgira só para que ela não se incomodasse com o sol forte. Na verdade, a Natureza circunstante se sublimava, por calefação. A Lua apareceu no horizonte, e Marte e Júpiter. O velho Saturno se escondeu com medo, e Mercúrio suspirou de desejo de voar. A Terra parou, como num filme, e, do fundo do poço de estrelas que fica na aljava de Cupido- sabiam?-, antigos e fiéis seguidores dela abriam os olhos e reviviam. O Zodíaco fervilhava, desarticulado, seu antigo poder destronado. É, meu desventurado amigo, quando tudo está perdido e o terror consumiu a própria cauda é que ela renasce.
Aquesto lontanum ib fughere!, disse Liza aos curiosos que ali estavam. Imediatamente eles perceberam que Boiuiun subia nas patas para pular sobre eles, e saíram com pernas pra quê te quero. Dois ou três relâmpagos reboaram perto, para dar mais susto. A pequena imperatriz-sim, ela era pequena e magra, agora- começou a andar, e notou que não tinha sombra. Na verdade, ela já sabia que não teria sombra. Esta tinha ficado para trás. Boiuiun uivava de felicidade como um radiante cometa.
FIM.
Ahá, enganei vocês! Como sempre, nestes contos de fada, uma minúscula coincidência vai estragar tudo e prolongar a história até a morte proverbial da protagonista, ou nos fazer percorrer terras distantes repletas de perigos e traições e amores e lições de moral chatas(às vezes), como adoravam nossos ancestrais gregos e latinos e seus discípulos. Nada é perfeito, sabem? Nos últimos instantes eu posso esquecer de colocar meu pseudônimo e, aí, lá vai... ou, também, um diabrete escapa do inferno e vem atazanar a humanidade. Bem, eu me divirto bolando estas catástrofes e alguns, por incrível que pareça, se divertem lendo.
No nosso caso, o grande problema de Liza se chama Hello. Uma coisinha irritante e fofinha, dessas que tem cheirinho de maçã verde e morango. E que é, antagonicamente, muito má, como o mofo nos livros ou um certo chanceler de bigodinho. Hello vive deleitosamente numa mansão na Costa Amalfitana, de onde envia seus servos estúpidos para atrapalhar a vida das pessoas boas- um chavão inigualável, concordo, mas funcional, como a Torre Eiffel. Logo, se as coisas vão mal com você, culpe a gatinha branca. O bom disso é que, como eu disse no início, quando acontece, é muito provável que estejam se aproximando as terras de Liza Sorguina.
Mudar não é esquecer, e nossa imperatriz correu a reaver seus pertences, com a ajuda do fiel Boiuiun. Primeiro, ela precisava de um novo castelo. E, segundo, de roupas novas(ela ainda usava o vestido azul da festa de três dias atrás, que era três números maior), e, terceiro, de seu peixe-palhaço Céceros Blug, que tinha, por engano, se escondido dentro de uma bolha de sabão que, por sua vez, tinha se desgarrado e ido parar numa fábrica de brinquedos perto de Nigella, uma aprazível cidadezinha de veraneio na Cornualha, onde se reúnem, no verão, dezenas de escritores cansados, em cada ano par.
Liza, é preciso que se diga, ainda não estava acostumada ao novo corpo, principalmente às pernas mais curtas, tão curtas quanto as da mentira. Resolveu, então, montar em Boiuiun, que era rápido como o orvalho sob o sol. E, assim, voaram sobre os campos e as raparigas em flor por alguns minutos, até encontrarem o castelo, tornado negro e enferrujado como uma gaiola amassada e gigante- parecia o pesadelo de um pintor espanhol, devido a seu desaparecimento.
-arretex stupete!
Boiuiun chorou de tristeza, sua casa estava feia.
-COR, disse Liza.
Era uma palavra mágica dessas que os deuses aprendem na infância para amaldiçoar os homens, mas que na voz dela se convertia em poder criador. Liza também estava reaprendendo a falar. Renascer não é fácil, não. O castelo virou uma delicada flor amarela da altura de um arranha-céu. Cada pétala era um quarto.
-COR, disse Liza, novamente.
Um manto branco a envolveu e ela começou imediatamente a brilhar. Os seus olhos eram como os de um gato à noite.
-COR, disse Liza, mais uma vez.
Um apito alto e um trovão, e Céceros Blug, mais uma vez, retornava a sua dona. Ele era chato de doer, mas ela gostava dele.
Pois bem, leitor, siga pela estrada até dar com um trigal bem grande. Então, caminhe na direção do sol poente...sim, é esta aí mesmo. Cuidado com os corvos. Ao chegar ao começo dos montes...encontrou? Muito bem! Aí está o castelo. Não tenha medo, Boiuiun é de fogo, mas não queima. Ele vai te levar até a nossa imperatriz. Adeus.
Enquanto isso, Hello está tomando banho de sais em sua banheira de ouro, e pensando em novas maldades...