UM MENINO ENGENHOSO
 
 
A batida noturna do monjolo.
 
 
Eu poderia chamar o que vou escrever agora de história, mas como eu vou tratar das minhas peraltices e invencionices cometidas na infância, eu prefiro chamá-la de “conto”. Pois, na verdade, na cabeça daquele menino, a vida era verdadeiramente um conto. Naquela época tudo era um conto, mesmo que a gente não o entendesse ou acreditasse, assim mesmo, ele era vivido no palco da minha fantasiosa mente, como algo ocorrido de fato em outros mundos e que era, sem dúvida, carregado magistralmente de um fascínio encantador.
Se me contavam um conto, de noite eu sonhava com aquele conto, mas se eu lesse o livro Tesouro da Juventude, comprado pelo meu pai, é lógico que ia direto para as páginas que me interessavam, e logo em seguida transformava em realidade aquilo que o autor pretendia explicar nas páginas de ciência. E assim, aquele menino engenhoso partia da teoria para a prática, mas muito sem jeito, com apenas um canivete na mão e com as ferramentas que a natureza lhe dava de graça.
Mas tudo isso era feito e eu me lembro muito bem, de forma escondida, porque os adultos têm essa mania de não tolerarem os sonhos e os inventos de um menino engenhoso. Hoje eu entendo porque eles eram assim, talvez tenha sido porque na época da infância deles, não souberam desfrutar dessas benesses da idade ou os adultos daquela época os impediam com as suas costumeiras e malditas rabugices.
Atitude, aliás, que hoje chamamos de castração. Hoje, eu também entendo que, se não nos deixavam brincar nas águas das chuvas, era por que eles tinham também outras intenções. Entretanto, além dessas rabugices, eles se preocupavam com a minha saúde. Pois, entre os dedos dos meus pés, se alojavam uns bichinhos pretinhos que os deixavam sempre vermelhos, e que nós chamávamos de frieiras. Na verdade, à noite, depois de tomar o escasso e econômico banho, tínhamos mais um divertimento que era o de coçar as frieiras. As minhas, eu curei lavando os pés nos restos daquelas drogas, que os homens da saúde sempre lavavam os aparelhos, depois de pulverizar a nossa casa. Eu não sei se eram os homens ou as drogas que eram chamadas de DDT, pois deixavam isso escrito, nas paredes das casas visitadas.
Se, naquela época houvesse incentivo e empenho aos meninos, por certo que muitos gênios teriam surgido. Mas o fato era que, depois da infância, nos éramos remetidos ou simplesmente despachados para um colégio, na verdade, um internato aonde a nossa primeira vocação era também totalmente castrada. E assim, o ensino oficial destruía a vocação de um menino, e tão-somente preparava-se o pobre coitado, aquele inocente menino engenhoso, para ganhar dinheiro na vida, assistir às missas e não pecar contra o sexto mandamento. A minha primeira vocação na infância era a de ser, quando grande, um engenheiro. Mas na verdade, aquele menino não sabia direito quais seriam as funções de um verdadeiro engenheiro, entretanto tinha bem aflorado em suas múltiplas curiosidades, as evidentes predileções por engenhocas.
Por exemplo:
No verão era uma época de chuvas fortes, o que a gente costumava chamar de “toró”. Era uma chuva torrencial que fazia as águas se perderem morro abaixo, numa velocidade de águas loucas de verão. Assim desesperadas, levavam tudo o que encontravam pela frente na sua agonia de chuva, descendo o morro desgovernada e sem rumo. Ocasião em que, fazíamos pequenas represas para amansar as águas, e que depois, eram convertidas em força para mover os nossos inventos. A cada inclinação do terreno construíamos amareladas represas, e depois, instalávamos um monjolo, algumas rodas-d’água e uma hélice. A roda-d’água e a hélice eram feitas de cascas grossas de bananeira, mas o monjolo, já era mais uma obra de arte feita em madeira, na verdade, eram restos de engradados de madeira. O dito monjolo, como máquina real, em certos lugares, é ainda um engenho tosco que serve para pilar arroz, milho ou descascar o café.
Quando a queda das águas não era suficiente para mover as minhas invenções, prontamente, eu fazia verdadeiros aquedutos, até se encontrar um desnível suficiente para mover as minhas hélices de cascas de bananeira. O monjolo que fora montado à tarde ficava bem pertinho do meu quarto, questão de alguns metros. E, no silêncio da noite, eu escutava o seu toque rítmico que não pilava nada, apenas batia compassadamente, a minha felicidade e o meu sonho de ser, um dia, um engenheiro de verdade. Para mim, aquilo era a realização total e os meus sonhos, eram visitados por entes de outros mundos que me ensinavam novas tecnologias. Pela manhã, quando a chuva dava uma estiada, era também decretado o silêncio do meu monjolo. Por isso, eu pensava na possibilidade de ter um rio de verdade em nossa propriedade. Mas isso era uma invenção que para mim, era totalmente fora de cogitação e religiosamente proibida, pois se tentasse fazer um rio, eu estaria em maus lençóis com o Sacrossanto Senhor, criador de todas as coisas.
Era assim que vivia um menino engenhoso. Mas que, no colégio com os seus padres falsamente santos ou religiosos, com as suas prédicas de céu e inferno, nos intermináveis e silenciosos retiros espirituais, acabaram por soterrar os sonhos e as invencionices de um menino arteiro. Quiseram fazer desse menino um padre, mas depois esse menino percebeu que, reza não rimava com cálculos ou padre não rimava com engenheiro. Agora, depois de muitos anos, já perambulando pelo crepúsculo que se fez, esse menino, tão-somente vive saudoso nas suas lembranças, as hélices, os monjolos e as rodas-d’água, agora todas movidas pelas luzes das saudades.