A SINFONIA DAS GOTEIRAS
O piano de um menino.
Era uma vez, um menino curioso e caprino, na verdade, era um pequeno questionador e inventor. Vivia sempre procurando algo com que se divertir. É verdade que esse menino não tinha grandes brinquedos, por isso, procurava inventar um, com os meios que a natureza lhe oferecia. Certo dia, ele saiu pelas vizinhanças e pelas ruas, a catar pequenas latas vazias. Eram latas inservíveis, tampas de latas, restos de latas, latas de leite ninho, latas de azeite comum, de fermento royal e algumas de azeite de oliva importadas, é claro, mas muito raras.
Com todo esse estoque de latas, ou melhor, de futuros teclados, ele pretendia construir um piano nas goteiras da casa. Assim, ele se deliciava na sua solidão de menino, com os sons diferençados que produziam as goteiras. Para ele, esses dias, os dias de chuva, eram dias de verdadeiros encantos, pois, ele podia apreciar o cantar do sabiá laranjeira, o trinado das ariscas Cambacicas, o estalo característico do Tié e o grito triunfante lá do alto da paineira do gritalhão e alvissareiro Bem-te-vi.
Os dias chuvosos dizem os adultos de hoje, são tristes e modorrentos, mas quando eu era um menino, esses mesmos dias, eram dias de alegria, brincadeiras e pueris invenções. Tomar banho pelado na chuva, fazer represas nos córregos que a chuva nervosa escavava com fúria na chácara, eram os divertimentos com os quais faziam com que esse menino esquecesse o próprio mundo.
Eram em grande quantidade esses pequenos rios, por onde as águas da chuva desciam perdidas e amareladas dos morros. Tudo isso, naqueles dias de chuva, era o melhor passatempo de um menino magrelo que andava descalço, pois os sapatinhos era só um que tinha para ir à escola, entretanto, ele se achava um herói, um engenheiro e dono do mundo.
Os dias de chuva eram dias de recolhimento e de algumas leituras ou, para a memorização das enjoativas e repetitivas tabuadas. Era um exercício aritmético que mais se parecia com uma reza ou uma interminável ladainha, daquelas de fazer a gente dormir. Mas, a minha diversão curiosa e predileta, entretanto, era a de ouvir a sinfonia das goteiras, caindo sobre as latas velhas que havia pacientemente recolhido pelas ruas e nas vizinhanças. Ali, elas eram colocadas estrategicamente, para que produzissem aqueles sons extremamente bucólicos, que até hoje vivem em minhas lembranças.
Eu passava horas e horas, escutando a natureza de cada som. O som era tirado do teclado das latas e cada um representava uma nota musical. A sonoridade das notas líquidas era proporcional ao estado ferruginoso das pobres latas. Havia pousado numa acácia ali por perto, um “sabiá dos vermelhos” que mais se parecia com um maestro, pois ele dava o tom e acompanhava aquela harmonia metálica no mesmo ritmo das goteiras, com o seu trinado, numa tessitura silvestre, triste e encantada.
Nesse momento, sentado numa pilha de balaios, a minha infantil imaginação voava por territórios inexplorados que, por certo, se escondiam numa floresta, na verdade, era um capão fechado que fazia divisa com as terras de meu pai. Entre alguns arbustos e as bananeiras da chácara, estarrecido, eu via um índio agachado com a sua lança e uma sacola de flechas. O índio, que depois lhe dei o nome de Baruêrê, ali ficava quietinho, sem piscar os olhos, me espiando de um jeito como se há muito me conhecesse. Eu acho que ele também apreciava o som tirado do meu piano de goteiras.
Hoje, pensando sobre o Baruêrê, admito ter havido uma projeção da figura arquetípica de um índio do meu inconsciente. Mesmo porque, hoje, eu reconheço que ainda tenho os dois pés numa taba, coisa que aquele menino de outrora não compreendia. É verdade que a minha árvore genealógica, deve ter sido plantada com as suas raízes numa dessas ocas que a gente só conhece ou vê em figuras ou reportagens da TV.
Temos muitos hábitos que em tempos passados devem ter sido costumes que, de vez em quando, afloram do inconsciente ao nosso consciente. Na verdade, esses hábitos ou costumes, são verdadeiras autenticações que reclamam ou ressuscitam as nossas origens. Esse menino que ainda tem as artérias da cor verde, pois, mesmo na metade do Século XX, ele ainda brincava como se fosse um autêntico índio, devidamente paramentado com palhas de bananeiras, dançando no terreiro da casa para chamar a chuva: Iá-Iá-Iá – Rô – Iá-Iá-Iá - Rô
O piano de um menino.
Era uma vez, um menino curioso e caprino, na verdade, era um pequeno questionador e inventor. Vivia sempre procurando algo com que se divertir. É verdade que esse menino não tinha grandes brinquedos, por isso, procurava inventar um, com os meios que a natureza lhe oferecia. Certo dia, ele saiu pelas vizinhanças e pelas ruas, a catar pequenas latas vazias. Eram latas inservíveis, tampas de latas, restos de latas, latas de leite ninho, latas de azeite comum, de fermento royal e algumas de azeite de oliva importadas, é claro, mas muito raras.
Com todo esse estoque de latas, ou melhor, de futuros teclados, ele pretendia construir um piano nas goteiras da casa. Assim, ele se deliciava na sua solidão de menino, com os sons diferençados que produziam as goteiras. Para ele, esses dias, os dias de chuva, eram dias de verdadeiros encantos, pois, ele podia apreciar o cantar do sabiá laranjeira, o trinado das ariscas Cambacicas, o estalo característico do Tié e o grito triunfante lá do alto da paineira do gritalhão e alvissareiro Bem-te-vi.
Os dias chuvosos dizem os adultos de hoje, são tristes e modorrentos, mas quando eu era um menino, esses mesmos dias, eram dias de alegria, brincadeiras e pueris invenções. Tomar banho pelado na chuva, fazer represas nos córregos que a chuva nervosa escavava com fúria na chácara, eram os divertimentos com os quais faziam com que esse menino esquecesse o próprio mundo.
Eram em grande quantidade esses pequenos rios, por onde as águas da chuva desciam perdidas e amareladas dos morros. Tudo isso, naqueles dias de chuva, era o melhor passatempo de um menino magrelo que andava descalço, pois os sapatinhos era só um que tinha para ir à escola, entretanto, ele se achava um herói, um engenheiro e dono do mundo.
Os dias de chuva eram dias de recolhimento e de algumas leituras ou, para a memorização das enjoativas e repetitivas tabuadas. Era um exercício aritmético que mais se parecia com uma reza ou uma interminável ladainha, daquelas de fazer a gente dormir. Mas, a minha diversão curiosa e predileta, entretanto, era a de ouvir a sinfonia das goteiras, caindo sobre as latas velhas que havia pacientemente recolhido pelas ruas e nas vizinhanças. Ali, elas eram colocadas estrategicamente, para que produzissem aqueles sons extremamente bucólicos, que até hoje vivem em minhas lembranças.
Eu passava horas e horas, escutando a natureza de cada som. O som era tirado do teclado das latas e cada um representava uma nota musical. A sonoridade das notas líquidas era proporcional ao estado ferruginoso das pobres latas. Havia pousado numa acácia ali por perto, um “sabiá dos vermelhos” que mais se parecia com um maestro, pois ele dava o tom e acompanhava aquela harmonia metálica no mesmo ritmo das goteiras, com o seu trinado, numa tessitura silvestre, triste e encantada.
Nesse momento, sentado numa pilha de balaios, a minha infantil imaginação voava por territórios inexplorados que, por certo, se escondiam numa floresta, na verdade, era um capão fechado que fazia divisa com as terras de meu pai. Entre alguns arbustos e as bananeiras da chácara, estarrecido, eu via um índio agachado com a sua lança e uma sacola de flechas. O índio, que depois lhe dei o nome de Baruêrê, ali ficava quietinho, sem piscar os olhos, me espiando de um jeito como se há muito me conhecesse. Eu acho que ele também apreciava o som tirado do meu piano de goteiras.
Hoje, pensando sobre o Baruêrê, admito ter havido uma projeção da figura arquetípica de um índio do meu inconsciente. Mesmo porque, hoje, eu reconheço que ainda tenho os dois pés numa taba, coisa que aquele menino de outrora não compreendia. É verdade que a minha árvore genealógica, deve ter sido plantada com as suas raízes numa dessas ocas que a gente só conhece ou vê em figuras ou reportagens da TV.
Temos muitos hábitos que em tempos passados devem ter sido costumes que, de vez em quando, afloram do inconsciente ao nosso consciente. Na verdade, esses hábitos ou costumes, são verdadeiras autenticações que reclamam ou ressuscitam as nossas origens. Esse menino que ainda tem as artérias da cor verde, pois, mesmo na metade do Século XX, ele ainda brincava como se fosse um autêntico índio, devidamente paramentado com palhas de bananeiras, dançando no terreiro da casa para chamar a chuva: Iá-Iá-Iá – Rô – Iá-Iá-Iá - Rô