A VERDADEIRA HISTÓRIA DA CHUVA

Era ainda o tempo em que as nuvens falavam e só se vestiam de algodão puro, por fiar. É claro que não havia ainda boletins meteorológicos nem medidores de poluição! Todas as nuvens eram virgens, se vestiam de branco e adoravam o Sol, senhor absoluto do reino do Céu Azul.

Sim, nesse tempo não havia ainda chuva. Nem necessidade dela. Os rios eram jovens e felizes, fortes e dóceis, havia minas naturais de água fresca onde eles não chegavam e, todas as madrugadas, o orvalho dava de beber a quem tivesse ainda alguma sede... Por isso as nuvenzinhas viviam despreocupadas no Céu Azul, brincando à apanhada com o vento e puxando raiozinhos loiros ao sol, o que, diga-se a verdade, o irritava profundamente. Mas aí é que estava a graça!

Ah, mas o que elas gostavam mais, era disfarçarem-se e desafiarem os meninos da Terra a descobrir-lhes o feitio: "Que sou eu, que sou eu agora?..." - perguntavam de lá de cima, metamorfoseadas em cordeirinhos, em flores, em anjos, em castelos... E os meninos gritavam-lhes hipóteses, rindo e pulando, até acertarem e elas se desmancharem a rir com eles...

Havia nuvens de todas as idades e origens. Algumas, as mais velhas, já não toleravam muito bem o calor do Sol e só apareciam de manhã ou à tardinha: essas falavam muito com as pessoas adultas e davam-lhes conselhos sábios! -"Hoje o vento está de feição... é dia bom para joeirar o trigo."; "Amanhã é bom dia para semear..."; "Vá, põe-te aqui à minha sombra, que o Sol hoje está de mau-humor..."

Havia também nuvens malvadas, que andavam sempre às turras, outras preguiçosas, que nunca saíam da cama do horizonte, outras doces, mansinhas, que se atreviam quase ao nível das árvores e brincavam de perto com os passarinhos e os meninos...

Mas tudo vivia em harmonia: Nuvens, Gente, Sol e Água...

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Um belo dia (nesse tempo, todos os dias eram belos...), ainda o sol e as nuvens dormiam, nasceu um amor impossível. Nem os passarinhos mais madrugadores, as únicas testemunhas do nascimento desse amor, queriam acreditar!...

Reza então a história, contada por eles de bico em bico, que Alva, uma jovem e sonhadora nuvem disfarçada de mulher, dançava sozinha no Céu ainda pálido de sono... O vestido em que ela metamorfoseara as suas partículas vaporosas, era branco e leve. Pequenos e delicados flocos de si mesma, retocados com o róseo tom que o sol nascente lhes emprestava, imitavam na perfeição o rosto e as mãos duma bela mulher. A lua, em fina tiara de ouro quase nova, apanhava-lhe os cabelos, feitos de restos de noite... E assim, formosa e gentil, bailava elegantemente, imaginando-se nos braços de um príncipe encantado...

Cá em baixo, o dia também acordava.

Romindo, um jovem e forte camponês, já trilhava os caminhos agrestes da serra, no encalço de mais um dia de trabalho. Ele olhava o vale verdejante, onde as casinhas da sua aldeia fumegavam os primeiros suspiros das lareiras, e pensava como era afortunado por viver entre tanta beleza... Foi então, num subir de olhos ao Céu, para agradecer a Deus, que ele a viu. Alva, a nuvem.

Como era bela! Linda, mais linda que todas as nuvens, mais linda que todas as mulheres que ele conhecia!... Ela, parecendo saber-se fitada com tanta intensidade e admiração, corou e suspendeu o bailado.

Ficou a pairar, entre o primeiro raio de sol e o primeiro beijo de vento...

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Foi paixão à primeira vista, já se sabe. Logo ali o coração de ambos jurou amor eterno, viesse quem viesse.

Mas veio o Sol. E o Vento.

A princípio, ainda estremunhados, quase foram cúmplices desse amor, pelo que já contei (do que me contaram os pássaros, claro). Depois, como a função do rei Sol sempre foi aquecer, e a do Vento, dispersar, o que se passou foi inevitável: Alva, a nuvenzinha vestida de mulher, foi-se esvaecendo, meia levada no vento, meia evaporada pelo sol... e dali a pouco só restavam floquinhos brancos reflectidos teimosamente nos olhos de Romindo.

Ah, mas amor é amor e este tinha nascido para ser um amor eterno!... Dali em diante, todas as manhãs e todas as tardinhas, naquela hora em que a Paz parece descer sobre a Terra em passos de silêncio e luzes de médio fulgor, ela lá estava, esperando o olhar dele!... Sempre linda e donairosa, ora vestida de branco, ora vestida de rosa, ora vestida de azul... às vezes enfeitada de estrelas, às vezes cheia de lua, às vezes de lua nova...

Romindo vinha sempre, ao cimo do monte de onde a vira a primeira vez... Ficavam extasiados, a olhar um para o outro e a falar coisinhas patetas (nesse tempo as nuvens falavam, lembram-se...?), tipo "Hoje vai estar um dia lindo, não vai?..."; "Gostas de mim, muito, muito, muito?..."; "Vou ter tantas saudades tuas!...". Pronto, essas coisas desnecessárias que os namorados dizem, enquanto os olhos dizem um ao outro aquilo que realmente é importante: "amo-te, amo-te, quero-te..."

Mas aí é que começou o problema. Nesse "querer". Como é que um homem ia "querer" uma nuvem?... As leis desse tempo, apesar de serem todas naturais e sem aditivos preconceituosos, eram já leis. E diziam que homem nenhum podia casar com uma nuvem. Onde já se viu?... Era anti-natural, e já vimos que as leis eram naturais, nesse tempo!

Foi um drama! Quando, de cabeça ainda nas nuvens, depois de Romindo a ter pedido em casamento, Alva foi pedir permissão ao rei Sol, e ele só lhe deu uma gargalhada, ela quase caíu do Céu Azul...

Pobre Alva! A gargalhada do Sol foi tão sonora e sarcástica, que todo o Céu e a Terra ouviram, nuvens e gentes. Vieram logo todos, prontinhos a bisbilhotar. E todos, uns querendo adular o rei, outros querendo menosprezar o sonho, gargalharam com ele, condenando por unanimidade o amor de Alva e Romindo.

O pobre Romindo, caído das nuvens, jurou viver triste para sempre...

Alva... bem, com Alva aconteceu uma coisa estranha e inédita: ela ficou tão triste, tão triste, que toda a sua alma feita de pequeninas gotículas de água pura, quis morrer. Ela começou a definhar, a ficar cinzenta e disforme... uma força tão grande como o amor que tinha por Romindo, começou a puxá-la para a Terra e toda ela era desejo de o tocar, de o abraçar...

Dizem que veio morrer com ele, no mesmo sítio onde se viram pela primeira vez... Caíu do céu em lágrimas, banhou-o de amor, e morreram abraçados, felizes...

Nesse mesmo local jorrou uma nascente, da água mais pura e límpida que a Terra já fez nascer...

Parece que esta história de amor se repetiu muitas vezes, em todas as terras, em todos os tempos, com outras nuvens e outros mancebos. Aliás, parece que ainda acontece, sempre que chove...