A MENINA E O PÁSSARO
A menina acordou com o som de um tilintar ritmado. As últimas gotas de uma chuva forte caíam contra o zinco que protegia a sacada do seu quarto. Ela gostava desse ruído. Ao olhar pelo vão do seu contato com o mundo, seu peito encheu-se de alegria. Uma felicidade espontânea e autêntica, algo raro em sua vida solitária, mas que sempre surgia em ocasiões como aquela, dias em que um arco multicolorido enfeitava os céus, apontando a direção de um tesouro escondido.
Ela não se cansava de reproduzir aqueles traços com seus bastões de cera, esperava encontrar, estampada na folha branca, a perfeição captada por seus olhos infantis.
Seu coração guardava o desejo de sentir o toque fresco e verde do gramado em seus pés descalços. Queria o abraço reconfortante do vento numa caminhada acelerada. Sonhava com o arrepio gelado do riacho acanhado.
Sua vida era limitada. Rédeas impostas pela inoperância das pernas. Ela não tinha amigos. Na escola era rejeitada, tinha apenas as rodas como companhia.
O nascer de um dia tão bonito trazia consigo um complemento ainda mais prazeroso: os acordes de uma melodia encantadora, executada por um artista que há muito a pequena observava. Ele sempre surgia do nada, vencia os obstáculos das folhas cheirosas da mangueira, postava-se sobre a marquise da varanda e iniciava seu canto. Os olhos da menina se encantavam com o amarelo reluzente de sua plumagem. Era como se ele fosse uma jóia de ouro trabalhada com o requinte discreto de uma esmeralda.
O pássaro parecia lhe oferecer algo raro: a companhia de uma amizade. Em todos os seus encontros matinais ela lhe estendia a mão recheada de sementes, mas ele sempre seguia seu caminho, proporcionando mais tristeza à sua depressão. Entretanto, naquela manhã colorida, o ser emplumado se aproximou e começou a bicar com desenvoltura os diminutos grãos. Ao perceber o vazio na mão, e a conseqüente partida do visitante, a menina, num ato reflexo, enlaçou o pequenino em seus dedos, colocando-o, em seguida, numa gaiola enfeitada.
Ela ficou feliz, pois nunca mais se sentiria solitária naquele quarto. Teria sempre consigo a presença de um amigo que jamais tivera. Ele lhe presentearia com a beleza de suas penas e com a alegria do seu canto.
Os dias se passaram. Decepcionada, a menina percebia algo que sua ingenuidade impedira que notasse antes: a amizade não poderia ser imposta. A mudez e a apatia da ave lhe ensinaram isso. Assim ela entendeu que estava fazendo algo terrível ao seu amigo. Ela estava lhe privando do que mais apreciava e invejava na vida. Ela havia lhe tomado a liberdade, a capacidade de ir e vir quando bem entendesse.
Com a portinhola aberta, o pássaro ganhou os céus com a velocidade garantida pelas asas. Rumou direto para a árvore de frutos suculentos. Mas, de maneira diferente do habitual, ele rodeou, rodeou, sem se manter fixo entre os galhos. Então, pousou no chão, rente ao robusto tronco. A menina estranhou de início, porém, com pavor pôde constatar a dureza da realidade: na relva estavam os restos de um ninho, ainda era possível enxergar vestígios de cascas de ovos misturados às folhas caídas.
A ave, de plumagem tão semelhante à bandeira que a tia lhe apresentara na escola, alçou vôo, ganhou os céus, e não mais voltou. Por dias a pequena se remoeu pela dor do remorso. Ela chorou. Chorou nos dias em que o sol se mostrava tão dourado quanto os cachos dos seus cabelos. Chorou quando a grama estava tão verde quanto as esferas em seus olhos. Chorou mais do que as nuvens cinzentas de um céu carregado. Chorou até se sentir seca e vazia. Ela tentava entender as palavras que a mãe lhe dizia em consolo: “a vida tem seus mistérios, mas o maior mistério é a própria vida”. Sem conseguir compreender, ela foi vencida pelo cansaço e abraçada por um sono sem unicórnios, golfinhos ou joaninhas. Naquela noite, nenhum sonho lhe tocara.
Na manhã seguinte, ela acordou com um som agradável. A posição de sua cama lhe permitia observar toda a extensão do jardim. Aos pés da mangueira, cantando mais forte do que nunca, estava um velho conhecido. O pássaro saltitava ao redor de três belas flores de pétalas douradas e folhas verdes. Um jato d’água cortava o ar, despejando filetes no gramado frondoso. Os raios do sol encontravam as gotículas gerando os traços coloridos que a menina tanto gostava. Havia um outro canto naquela manhã. A voz de sua mãe ecoava pelo quintal, num dueto com a ave. Com uma das mãos ela regava o jardim, com a outra, espalmada, alisava o ventre, exalando felicidade. Ela sorria e seu sorriso era contagiante. Os lábios da menina retribuíam aquela manifestação espontânea. E mais do que isso, a composição daquele cenário, sem palavras, mandava embora a tristeza que insistia em fazer morada em seu peito. Ela estava feliz. Pela volta do amigo, pela existência da mãe e por sentir que logo não seria mais solitária. Pois, em breve, teria com quem brincar.
*Esse texto é a réplica ao desafio proposto pela escritora e amiga Celly Borges, onde os escritores de terror do fórum da câmara dos tormentos se aventuraram nas linha infantis.