O REGATO SERELEPE – (FÁBULA)

O REGATO SERELEPE

(fábula)

(l6/03/10)

Um regato, que nunca se cansava de correr, descia lépido, orgulhoso da pureza da sua água, pela encosta de uma montanha, entre verdejante floresta. Sabia que, todos podendo tomar a água limpa e clara do seu leito, ele se tornava útil, não só por irrigar as plantas que o protegiam desde a margem, mas, também, para matar a sede dos bichos grandes; das aves e passarinhos da floresta, como também, dos homens e crianças que por ali passassem. Os animais que habitavam aquela floresta não conseguiam beber toda a água daquele regato. A Mãe Natureza sempre repunha ao natural as águas com que eles matavam a sede. Estava tão bem protegido pelos arbustos verdes que cresciam nas duas margens que, se não fossem os seus murmúrios quando ele conversava com as pedras, com os animais e os próprios arbustos, seus leais amigos, o esconderijo seria perfeito. A floresta, então, servia-lhe de proteção e cobria-o com seu manto verde para que o predador das águas – o homem – não chegasse até elas. Era longa e cheia de obstáculos a estrada que o regato tinha de percorrer. Mas como era um riozinho ainda jovem, quase criança, não se importava com isso, era seu divertimento predileto pular e brincar entre as pedras. Esse riachinho fora informado pela Mãe Natureza que, uma vez saído da casa da avó Terra, iniciaria a corrida para encontrar seus ancestrais. Na procura para encontrar o melhor caminho, ia encontrar-se com outros riachos maiores e, finalmente, com um rio adulto. Para isso acontecer, porém, teria muitas dificuldades em sua trajetória. Mas, essa advertência, em vez de deixá-lo triste, deu-lhe a maior felicidade. Se tivesse que pular por cima das pedras, acharia nisso um grande prazer, porque sabia que ali, embaixo daquelas pedras havia, também, habitantes da natureza que precisavam dele para sobreviver.

Por isso saiu floresta afora correndo, pulando e cantando. De vez em quando explodia em gargalhadas quando precisava saltar de um enorme penhasco até láaaa embaixo onde outra grande pedra o esperava, tendo que pular novamente. Nestes pulos a que o obrigavam os desníveis da montanha, não tinha como evitar, a água espalhava-se por todos os lados. Mas tudo tem suas compensações. Quando caía em cima daquela enorme pedra redonda, a meio caminho até o fim da queda livre daquela cachoeira, produzia uma coisa maravilhosa – um arco-íris. Mas esse fenômeno da natureza só acontecia de dia e, ainda assim, havendo muito sol. Quando esse sol, com sua luz maravilhosa, batia em cima da copa das árvores da floresta, sempre achava um buraquinho para espiar o que havia por baixo daquelas folhas. E é nesse instante que um jato de luz dele surpreendia o Regato no exato instante que explodia sobre a segunda pedra, transformando-se em vapor. Quando terminavam os saltos, o que Regato fazia com a maior alegria, pois pular barreiras era para ele, além de sua especialidade, um delicioso divertimento, o riacho reunia novamente toda a sua água e, se estivesse num lugar mais plano, descansava um pouco caminhando mais devagar, mas nunca parava. Nas barrancas vinham seus amiguinhos saciarem sua sede deliciando-se com a água potável que lhes oferecia. O Regato sabia que o líquido que ele transportava era necessário para todos. É para isso que a natureza o fazia percorrer a floresta lá de cima do topo até a planície. Sabia, também, que existiam homens maus que, a qualquer pretexto, sujavam seu leito. Ele ficava triste com essa maldade, mas se cuidava para não acontecer com ele a mesma coisa que estava acontecendo com seus irmãos de outros lugares. A Natureza lhe dissera que, enquanto permanecesse escondido no meio da floresta, isso não iria acontecer; que havia outros homens bons cuidando dele; que esses homens tinham juízo bastante para não o poluírem, e faziam melhor: aconselhavam os homens maus para nunca construírem suas casas perto da água porque, mais dia, menos dia, acabariam jogando dentro dela os lixos produzidos e as coisas envelhecidas pelo uso. Estava escrito nas estrelas, ainda, que essas coisas expostas à umidade apodreciam facilmente, deixando doentes suas águas, ainda tão puras.

Pensando nessas coisas, Regato chegou à sonhada planície, onde pararia de correr e poderia descansar as pernas doídas de tanto pular. Na verdade a paisagem não mudava. O que se verificava era que, depois de um barranco enorme, as árvores cresciam num espaço menos íngreme. Parecia que a montanha, também cansada de tanto descer, deitasse naquele lugar para também descansar. Reuniu-se, formando um remanso numa depressão mais funda do terreno; bebeu as águas do córrego que vinha de cima do morro que ficava do seu lado esquerdo, descansou e, já mais crescido e refeitas as forças, seguiu sua viagem.

Na inércia do descanso, porém, pôde observar melhor a natureza viva ao seu redor, que o acompanhava em sua trajetória pela floresta. Pequenos arbustos cobriam-lhe parte do leito com suas folhas. Logo atrás deles, grossas árvores que, com seus longos galhos cheios de folhas bem verdes, faziam uma cortina escondendo-o do sol. Bandos de passarinhos pulavam de galho em galho, cantando alegremente. Às vezes, faziam revoadas entre as árvores, depois sentavam novamente e o faziam com muita elegância, perto dos seus ninhos. Muitas lagartas caminhavam de folha em folha comendo vorazmente. Não entendia direito porque estavam assim enfeitados os galhos, mas, em muitas folhas via pendurados casulos dourados, como se fossem brincos feitos de ceda. Aqui e ali viu borboletas multicoloridas pousando sobre as flores, sugando-as, para delas extrair seu alimento. Mas uma coisa intrigava esse curioso e jovem viajante das florestas virgens. Ele não podia atinar com a origem das borboletas. Não sabia como elas nasciam. Ficou confuso porque até agora só vira borboletas adultas. Nunca vira uma borboleta ainda menininha. Estava claro em sua mente que todas as coisas nasciam e cresciam, para depois tomarem a forma adulta. Mas isso não acontecia com as borboletas. Sempre que via uma, ficava admirado com suas lindas cores. Achava-as um tanto orgulhosas, pois, pelo menos ali no meio da floresta, nenhuma delas vinha conversar com ele. Talvez porque ele ainda era criança, mesmo porque todas elas enfeitavam-se e se produziam como se todas fossem adultas. Continuava confuso. O fato de ele mesmo ser criança e sentir-se um moleque travesso, mas curioso, fazia muito sentido suas dúvidas. Queria saber a verdade das coisas. Nasceu muito longe dali, num lugar chamado Topo do Morro. Quando saiu da casa da Avó Terra, a Mãe Natureza o batizara de Regato e mandara-o brincar. Era miúdo, com pouca água. Um regatinho menino ainda. Bebera os riachinhos das margens para matar a própria sede, enquanto corria morro abaixo. Agora já crescera um pouco, mas tudo ao seu redor, observava, nascia criança. Ainda até hoje, pelo menos em seu elemento natural, onde vivia, nada aparecera já em estado adulto. Foi aí que ele se lembrou ser muito simples saber alguma coisa a mais sobre as borboletas. Correu para a biblioteca da Natureza para pesquisar o assunto a lhe dar voltas no pensamento. Lendo os registros que ali haviam sido deixados, uma luzinha começou a tomar forma em sua mente. Ficou pasmo ao constatar que era do metamorfismo (mudança de formas de um ser – metamorfose) de que a Mãe Natureza se utilizava para produzir tão belas flores voadoras. Voltando da biblioteca da natureza, Regato sentou-se a um canto do remanso formado pelas águas que descansavam e ficou ali alguns dias para ver o que aconteceria com os bulbos pendurados nas árvores que estavam ao seu redor. Não teve que esperar muito tempo. Logo já viu um desses invólucros feitos de fios de seda romper-se em uma das pontas e dele saiu uma maravilhosa borboleta. Mas não voou logo. Caminhou até em cima do galho em que estava pendurado o seu casulo e, quando achou um lugarzinho mais seguro, parou para exercitar-se. Espreguiçou-se toda dando um doce gemidinho de prazer, esticou uma perna, depois outra e, assim, experimentou todas elas e, quando as sentiu fortes, agarrou-se firmemente com suas garrinhas na casca do galho para exercitar suas asas. Ficou assim algum tempo deliciando-se com o que via e acontecia ao seu redor. Começou a sentir uma fome terrível. Estava distraída quando, de repente, viu um passarinho pousar a seu lado ameaçadoramente. Seu coraçãozinho começou a bater acelerado do susto que lhe pregou o predador. Não queria ser devorada por um predadorzinho geringonçado, cheio de penas, sem coloração agradável aos olhos dela, feito aquele pássaro e, menos ainda, antes mesmo de realizar seu primeiro sonho de voar. Deu um saltinho no ar e, batendo as asas com vigor, sumiu por entre a folhagem. Regato acompanhou esse momento por muitas vezes. O processo era sempre o mesmo. Abria-se o casulo, saía a borboleta já colorida e voava para procurar nas flores da floresta seu alimento. Outra coisa interessante na biblioteca da natureza foi a lei do equilíbrio. Todos os bichos da floresta, do menor ao maior, tinham seus predadores. O maior, ou o mais forte, sempre engolia o menor. Todos tinham que comer para não morrer de fome. Com esse processo a Mãe Natureza alimentava todos, sem que nenhum desses animais ficasse em maior número que o necessário. Foi por isso que a borboleta virou em asas com a aproximação do passarinho. Ela, certamente, sabia dessa lei instintivamente.

Mas chegara a hora de ir adiante. Muitas peripécias e serelepices o aguardavam certamente. Pulou do barranquinho pequeno que estava à sua frente e retomou a corrida pela mata abaixo.

Ele continuava com aquele espírito jovem e indômito de sempre, mas a paisagem mudara. Já não havia a floresta para protegê-lo; já não estavam aí as árvores para lhe dar carinho; já não havia aqueles passarinhos barulhentos que faziam festa à sua passagem; e já não tendo árvores, também não havia folhas e, muito menos lagartas verdes a comê-las vorazmente para, depois, construir casulos coloridos, que ficavam bamboleando em galhos e folhas. Regato ficou com medo. Sentiu muito medo. A Mãe Natureza já lhe dissera que, um dia, chegaria às planícies, onde haveria campos e lavouras. Dissera, também, que a paisagem seria bem diferente e o céu estaria a descoberto, mostrando um sol forte e quente o dia inteiro; que, uma vez naquelas planícies, sentiria muito calor. E, o que mais pavor inspirava ao Regato foi o fato de ela ter dito que os homens maus habitavam aquelas planícies. De fato, ao sair fora da floresta constatou com tristeza, mais tendente ao desespero, que todas as revelações da Mãe Natureza eram a pura verdade. A Terra ali lhe parecia um menino descalço, sem chapéu e sem roupa. Como único adorno trazia nas mãos um tapete verde. Até os bichos que vieram até ele eram diferentes. Ainda que amistosos, além de enormes e chifrudos, bebiam em grandes goles e com muito gosto suas águas, mas, quando saciados, pisavam com toda a força nelas, machucando-o e misturando lama suja à água limpa. Nas primeiras vezes que isso aconteceu, Regato, mais que depressa varria seu leito, fazia correr água pura sobre ele e seguia adiante. Embora de nada adiantasse, repetia esse trabalho todas as vezes que os grandes animais, machos e fêmeas, aproximassem-se dele para beber. Enquanto era só o barro que sujava o seu leito, tudo bem! Era um adolescente forte e trabalhador e não se incomodava mais com os descuidos dos animais do campo por onde andava. O maior desconforto era a falta quase absoluta de proteção. Embora a barranca fosse alta em quase toda sua extensão, raras vezes Regato passeava pelo meio de um capão de mato, ainda assim, os que haviam, eram ralos e de arbustos mirrados e pálidos. Daria para deduzir que estavam doentes ou mal alimentados. Mas, como já vira antes de sair da sua floresta, tudo tem as suas compensações.

Regato chegou a um lugar onde a barranca do riacho era bem baixinha. Aliás, nem se via o barranco alto, de cuja proteção usufruíra antes. Em seu lugar, ainda que judiada pelos grandes bichos que habitavam aqueles campos, havia uma enseada e, depois, um espaço sem vegetação, coberto de areia e barro. Por isso só não seria tão bonito e agradável, não fosse aquele bando de borboletas de todas as cores e tamanhos, disputando um lugarzinho ao sol, perto da água. Isso sim que era lindo de se ver. Quando vinha um animal beber água, todas elas levantavam vôo, colorindo o ar com sua beleza. Quando passava o perigo, todas sentavam novamente. Regato pensou que, certamente, se alimentavam com a umidade que suas águas deixavam na areia. Como não tinha visto muitas borboletas na floresta, Regato deduziu, também, que elas voariam para lá só quando chegasse o tempo de depositarem seus ovinhos nas folhas das árvores, dos quais, depois, nasceriam as larvas que, quando adultas, eram as lagartas que vira comendo as folhas. Essas lagartas depois de bem adultas, fabricariam os casulos, de que nasceriam as borboletas. Era um círculo vicioso perfeito.

Se até aqui Regato só descobrira coisas bonitas, das quais poder-se-ia deduzir quão perfeita é a natureza em seu estado primitivo, dali por diante, só viu tristeza e devastação. Passou por um campo alagado com altos e verdes juncos povoando-o; passarinhos adaptados ao banhado pousados sobre as hastes desses juncos e um ou outro peixinho fazendo-lhes cócegas nos pés... e mais nada!

Logo viu as casas construídas bem perto dele. Deviam ser as moradias dos homens maus que poluíam as águas, de que lhe falara a Mãe Natureza. Às margens do riacho aglomerava-se lixo de todos os tipos. Latas velhas e enferrujadas, palhas, sacos de ráfia e plástico e pneus usados, faziam a corte ao barro. Viu galinhas ciscando; ouviu cabritos berrando; baliam alguns carneirinhos um pouco mais distantes. Mas o que lhe arrepiou a espinha foram aqueles porcos que grunhiam e fuçavam no lixo que fora jogado dentro do barro, formado um cenário muito sujo e feio ao redor do seu leito. Muito perto dali, presos dentro de um chiqueiro, um monte de porcos dormiam. Estavam lisos, quase redondos, de bem alimentados que estavam. Atrás da casa desses porcos formava-se um pântano, misturando barro com as fezes dos porcos e, tudo isso produzia uma sopa fétida misturando-se às águas do riacho. Um cheiro nauseabundo subiu às suas narinas. Sentiu suas entranhas revolverem-se podres e, ali mesmo, teve que vomitar. Mas seu vômito de nada adiantou para que suas entranhas sentissem menos nojo da malvadeza daqueles homens que permitiam que a água, que é um elemento vital para todos os seres vivos, vegetais e animais... e o próprio homem está incluído nessa necessidade, deixasse morrer esse precioso líquido, poluindo-o, só para ganhar uns trocadinhos a mais, deixando de fazer um planejamento que não produzisse poluição.

A tristeza que sentiu levou Regato a um gesto extremo: correu para o rio adulto que passava logo adiante e atirou-se em suas águas, também malcheirosas e poluídas, afogando-se e... morreram ambos, vitimados pela incúria dos homens maus.

Afonso Martini
Enviado por Afonso Martini em 19/03/2010
Reeditado em 22/05/2010
Código do texto: T2148282
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