- AS AVENTURAS DE DIDO E XITUM –
JULIANO E A MÃE NATUREZA
Juliano aprendeu cedo as lidas do eito e da enxada. Encoivarar roça, queimar as empucas que o fogo não conseguira devorar e que depois precisavam ser requeimadas para se limpar a roça e preparar o solo para a plantação de arroz, de milho e de feijão, ingredientes básicos da mesa do sertanejo. Aprendera com o pai tudo o que era necessário para o plantio da roça. Derrubar as árvores grandes com o machado, brocar as menores com a foice e o facão e esperar os dias quentes de verão para que secassem um pouco. Depois era fazer o asseiro para que o fogo não penetrasse na mata virgem e destruísse a área de reserva legal. Aí, quando tudo estava pronto, ateavam fogo de noite para que o vento não espalhasse muitas labaredas e oferecesse o risco do fogo se espalhar para onde não devia.
Passavam a noite na labuta.
De manhã eram só cinzas. Restos de toco queimando. Aqui e acolá uma empuca, uma touceira de mato mal queimada que precisava ser encoiravada e novamente ateada fogo.
Aos poucos a terra ia esfriando e quando caia as primeiras chuvas era a hora do plantio.
Juliano achava triste ver a terra queimada. Coberta de cinzas. Andar por aquele mundão descampado. Subir serras, descer serras e,... nada. Só um imenso vazio onde antes era só verde e alegria. Nessas horas sentia um aperto no peito. Algo meio estranho que ele ainda não sabia entender, mas não era nada boa, disso ele não tinha dúvida.
De vez em quando grupos e grupos de borboletas multicoloridas apareciam aos montes sobrevoando os ramos retorcidos ao longo do asseiro para sugarem o néctar das plantas cortadas.
Passarinhos e alguns bichos curiosos como cervos, macacos, tatus e coelhos vinham aos poucos, desconfiados e com medo, verem o que havia sobrado de suas casas e lares.
Juliano entendia. Faltava chorar. Chorava às vezes. Seu pai lhe conformava.
- Juliano é assim mermo meu fio! É a lei da vida. No mundo uns morre pro mode dá de cumer os ôtros! Só num pode judiar. Judiar da terra, judiar dos bicho bruto, isso num pode! Deus dexô a terra mermo foi pru mode nóis pudê prantar, cuiê e sobrivivê. Mais nóis tamém tem que sabê côidar. A terra é nossa mãe. É ela que nos dá o sustento necessaro pra nóis vivê, mais nóis tamém tem de zelar dela e amar ela cuma nóis amamo a nóis mermo. Num podi dismatar a tôa, só inté o necessaro. E adispôis nóis tamém tem que vivê num é fio? Se nóis num prantar, cumé que nóis vai cum?
Juliano concordava com a cabeça e nada dizia. Os olhos rasos d’água. O olhar no chão. Cabeça quieta. A garganta apertada. Aquele nó... Ele entendia. Apesar da pouca idade ele entendia. Só não conseguia deixar de sentir.
Nessas horas seu Alfredo ficava cortado de pena de ver o filho sofrendo.
– Minino danado de sensive sô! Puxô a mãe que era um poço de doçura e a avó que era índia, só podi! Nunca vi um diaxo tão ligado as coisas dexe jeito. Esse aí vai pra iscola. Pru modi istudar. Sê um dotô. – Ô se vai! Minino danado de inteligente e prestativo sô!
Acordava cedo e ia todos os dias ver a roça recém semeada. Ficava ansioso para ver as primeiras sementes brotarem e os pezinhos de arroz começar a aparecer sobre as covas. Quando isso acontecia Juliano disparava na carreira feliz e eufórico e ia contar ao pai as novidades. O pai sorria de canto a canto da boca e lhe dava um grande abraço, feliz por dois motivos: primeiro pelas novidades e segundo pela alegria estampada no rosto do filho que pulava em seu pescoço e não sossegava enquanto o pai não lhe dava a devida atenção e o acompanhava até a roça para vê-lo mostrar de perto a maravilha da vida ressurgindo da terra. Agora era só esperar que crescessem.
Plantavam o milho em consórcio com o feijão. Um bocadinho de mandioca para fazerem a farinha, um tantinho de cana caiana para fazer a garapa doce que nem mel, a melancia, a abóbora, o jerimum, o maxixe, o quiabo, até uns pés de algodão dava para plantar também. Dona Zefa não desperdiçava nada. Aproveitava cada cantinho da roça para fazer uns canteiros de hortaliças.
-Temos que aproveitar tudo Juliano, afinal é um sacrifício que a terra está fazendo em nos deixar tirar dela o sustento necessário para a nossa sobrevivência. Temos que ser gratos e zelosos quanto a isso.
Juliano entendia. Entendia tudinho que sua mãe lhe ensinava e guardava aqueles tesouros de ensinamentos em seu coração e à noite dormia feliz. Era um menino feliz.
No cantar do galo ele já estava de pé. Corria ao curral para ajudar o pai a tirar leite das vaquinhas que berravam sem parar. Bezerros prum lado, vacas pro outro. Era um berreiro só. O leite saia fresquinho, suculento, grosso que nem vitamina de cupuaçu.
Adorava o cheiro de terra, de lama, e até de bosta de vaca. Ele nem ligava. Tava mais do que acostumado com isso.
Depois da ordenha ele montava a cavalo e ia deixar o gado no pasto. Soltava o velho alazão pra pastar sozinho um pouco sossegado e voltava a pé por um atalho que ia dar direto na roça onde seu pai a essa hora trabalhava.
No caminho de volta Juliano sonhava. Sonhava com o dia em que começaria a ler. O dia em que iria para a escola pela primeira vez aprender aquelas coisas que seu amigo Dido lhe falava. Contas de mais, contas de menos, de dividir. Uma tal de ciências, história, geografia. Mas o que ele mais queria mesmo era aprender a ler. Ficava imaginando o que será que aquelas coisinhas miudinhas no papel queriam dizer.
Os desenhos sim, esses Juliano sabia ler, entendia tudinho. Até inventava histórias só de olhar para eles... e, contava pra todo mundo. Como se aquilo fosse realmente verdade. Todos achavam graça e diziam que ele tinha uma imaginação e tanto.
- Diacho! Como é que ele ia lá saber que os desenhos diziam uma coisa e aquelas letrinhas diziam outra? Afinal o que deveria haver mais ali além do que os desenhos mostravam? - Hora essa?!
Ah, mas tava perto. Só mais um restinho de ano e aí ele já iria para a escola também. Pra mesma escola de Dido. Ia poder ver o amigo todos os dias. Trocarem livros de histórias, de desenho animado, de figurinhas. Gostava das histórias do Sítio do Pica-Pau Amarelo, do Saci Pererê, da Mônica, do Cebolinha, do Chico Bento, do Surfista Prateado, dos X-Man, de tanta coisa. Ia poder ler as cartas que chegassem em sua casa. Isso ia ser mesmo uma beleza.
Às vezes parava no meio do caminho e ficava riscando o chão, fazendo de conta que estava escrevendo. Imitava até a professora e os alunos:
- Você aí!
- Eu professora?
- Sim, você mesmo Juliano, leia pra nós a sua redação de hoje sobre a natureza.
E Juliano soltava o verbo.
Subia numa pedra, segurava uma folha de bananeira cortada no formato de livro e em voz alta ia soltando sua imaginação como se estivesse lendo de verdade naquela folha verde em branco.
Entonava a voz, gesticulava. Não tinha quem dissesse que ele não estava lendo de verdade.
A mãe sorria orgulhosa. Todos sorriam.
- Esse menino vai longe comadre! Vai ser um doutor!
O pai sorria encabulado e dizia:
- No mínimo, um contador de causos! E caía na gargalhada.
Juliano nem ligava. E dizia bem alto que tudo o que ele queria mesmo era um livro pra ler, um caderno pra escrever e os olhos mais bonitos, da menina mais bonita da escola pra ele se enamorar.
Aí era que todos caíam na risada de verdade.
- Ah, muleque tinhoso sô!
- Esse aí vai dar trabaio Dona Zefa! Vai lhe dar um neto é cedo!
Dona Zefa sorria, Seu Alfredo sorria, todos sorriam e Juliano sonhava.
JULIANO E A MÃE NATUREZA
Juliano aprendeu cedo as lidas do eito e da enxada. Encoivarar roça, queimar as empucas que o fogo não conseguira devorar e que depois precisavam ser requeimadas para se limpar a roça e preparar o solo para a plantação de arroz, de milho e de feijão, ingredientes básicos da mesa do sertanejo. Aprendera com o pai tudo o que era necessário para o plantio da roça. Derrubar as árvores grandes com o machado, brocar as menores com a foice e o facão e esperar os dias quentes de verão para que secassem um pouco. Depois era fazer o asseiro para que o fogo não penetrasse na mata virgem e destruísse a área de reserva legal. Aí, quando tudo estava pronto, ateavam fogo de noite para que o vento não espalhasse muitas labaredas e oferecesse o risco do fogo se espalhar para onde não devia.
Passavam a noite na labuta.
De manhã eram só cinzas. Restos de toco queimando. Aqui e acolá uma empuca, uma touceira de mato mal queimada que precisava ser encoiravada e novamente ateada fogo.
Aos poucos a terra ia esfriando e quando caia as primeiras chuvas era a hora do plantio.
Juliano achava triste ver a terra queimada. Coberta de cinzas. Andar por aquele mundão descampado. Subir serras, descer serras e,... nada. Só um imenso vazio onde antes era só verde e alegria. Nessas horas sentia um aperto no peito. Algo meio estranho que ele ainda não sabia entender, mas não era nada boa, disso ele não tinha dúvida.
De vez em quando grupos e grupos de borboletas multicoloridas apareciam aos montes sobrevoando os ramos retorcidos ao longo do asseiro para sugarem o néctar das plantas cortadas.
Passarinhos e alguns bichos curiosos como cervos, macacos, tatus e coelhos vinham aos poucos, desconfiados e com medo, verem o que havia sobrado de suas casas e lares.
Juliano entendia. Faltava chorar. Chorava às vezes. Seu pai lhe conformava.
- Juliano é assim mermo meu fio! É a lei da vida. No mundo uns morre pro mode dá de cumer os ôtros! Só num pode judiar. Judiar da terra, judiar dos bicho bruto, isso num pode! Deus dexô a terra mermo foi pru mode nóis pudê prantar, cuiê e sobrivivê. Mais nóis tamém tem que sabê côidar. A terra é nossa mãe. É ela que nos dá o sustento necessaro pra nóis vivê, mais nóis tamém tem de zelar dela e amar ela cuma nóis amamo a nóis mermo. Num podi dismatar a tôa, só inté o necessaro. E adispôis nóis tamém tem que vivê num é fio? Se nóis num prantar, cumé que nóis vai cum?
Juliano concordava com a cabeça e nada dizia. Os olhos rasos d’água. O olhar no chão. Cabeça quieta. A garganta apertada. Aquele nó... Ele entendia. Apesar da pouca idade ele entendia. Só não conseguia deixar de sentir.
Nessas horas seu Alfredo ficava cortado de pena de ver o filho sofrendo.
– Minino danado de sensive sô! Puxô a mãe que era um poço de doçura e a avó que era índia, só podi! Nunca vi um diaxo tão ligado as coisas dexe jeito. Esse aí vai pra iscola. Pru modi istudar. Sê um dotô. – Ô se vai! Minino danado de inteligente e prestativo sô!
Acordava cedo e ia todos os dias ver a roça recém semeada. Ficava ansioso para ver as primeiras sementes brotarem e os pezinhos de arroz começar a aparecer sobre as covas. Quando isso acontecia Juliano disparava na carreira feliz e eufórico e ia contar ao pai as novidades. O pai sorria de canto a canto da boca e lhe dava um grande abraço, feliz por dois motivos: primeiro pelas novidades e segundo pela alegria estampada no rosto do filho que pulava em seu pescoço e não sossegava enquanto o pai não lhe dava a devida atenção e o acompanhava até a roça para vê-lo mostrar de perto a maravilha da vida ressurgindo da terra. Agora era só esperar que crescessem.
Plantavam o milho em consórcio com o feijão. Um bocadinho de mandioca para fazerem a farinha, um tantinho de cana caiana para fazer a garapa doce que nem mel, a melancia, a abóbora, o jerimum, o maxixe, o quiabo, até uns pés de algodão dava para plantar também. Dona Zefa não desperdiçava nada. Aproveitava cada cantinho da roça para fazer uns canteiros de hortaliças.
-Temos que aproveitar tudo Juliano, afinal é um sacrifício que a terra está fazendo em nos deixar tirar dela o sustento necessário para a nossa sobrevivência. Temos que ser gratos e zelosos quanto a isso.
Juliano entendia. Entendia tudinho que sua mãe lhe ensinava e guardava aqueles tesouros de ensinamentos em seu coração e à noite dormia feliz. Era um menino feliz.
No cantar do galo ele já estava de pé. Corria ao curral para ajudar o pai a tirar leite das vaquinhas que berravam sem parar. Bezerros prum lado, vacas pro outro. Era um berreiro só. O leite saia fresquinho, suculento, grosso que nem vitamina de cupuaçu.
Adorava o cheiro de terra, de lama, e até de bosta de vaca. Ele nem ligava. Tava mais do que acostumado com isso.
Depois da ordenha ele montava a cavalo e ia deixar o gado no pasto. Soltava o velho alazão pra pastar sozinho um pouco sossegado e voltava a pé por um atalho que ia dar direto na roça onde seu pai a essa hora trabalhava.
No caminho de volta Juliano sonhava. Sonhava com o dia em que começaria a ler. O dia em que iria para a escola pela primeira vez aprender aquelas coisas que seu amigo Dido lhe falava. Contas de mais, contas de menos, de dividir. Uma tal de ciências, história, geografia. Mas o que ele mais queria mesmo era aprender a ler. Ficava imaginando o que será que aquelas coisinhas miudinhas no papel queriam dizer.
Os desenhos sim, esses Juliano sabia ler, entendia tudinho. Até inventava histórias só de olhar para eles... e, contava pra todo mundo. Como se aquilo fosse realmente verdade. Todos achavam graça e diziam que ele tinha uma imaginação e tanto.
- Diacho! Como é que ele ia lá saber que os desenhos diziam uma coisa e aquelas letrinhas diziam outra? Afinal o que deveria haver mais ali além do que os desenhos mostravam? - Hora essa?!
Ah, mas tava perto. Só mais um restinho de ano e aí ele já iria para a escola também. Pra mesma escola de Dido. Ia poder ver o amigo todos os dias. Trocarem livros de histórias, de desenho animado, de figurinhas. Gostava das histórias do Sítio do Pica-Pau Amarelo, do Saci Pererê, da Mônica, do Cebolinha, do Chico Bento, do Surfista Prateado, dos X-Man, de tanta coisa. Ia poder ler as cartas que chegassem em sua casa. Isso ia ser mesmo uma beleza.
Às vezes parava no meio do caminho e ficava riscando o chão, fazendo de conta que estava escrevendo. Imitava até a professora e os alunos:
- Você aí!
- Eu professora?
- Sim, você mesmo Juliano, leia pra nós a sua redação de hoje sobre a natureza.
E Juliano soltava o verbo.
Subia numa pedra, segurava uma folha de bananeira cortada no formato de livro e em voz alta ia soltando sua imaginação como se estivesse lendo de verdade naquela folha verde em branco.
Entonava a voz, gesticulava. Não tinha quem dissesse que ele não estava lendo de verdade.
A mãe sorria orgulhosa. Todos sorriam.
- Esse menino vai longe comadre! Vai ser um doutor!
O pai sorria encabulado e dizia:
- No mínimo, um contador de causos! E caía na gargalhada.
Juliano nem ligava. E dizia bem alto que tudo o que ele queria mesmo era um livro pra ler, um caderno pra escrever e os olhos mais bonitos, da menina mais bonita da escola pra ele se enamorar.
Aí era que todos caíam na risada de verdade.
- Ah, muleque tinhoso sô!
- Esse aí vai dar trabaio Dona Zefa! Vai lhe dar um neto é cedo!
Dona Zefa sorria, Seu Alfredo sorria, todos sorriam e Juliano sonhava.