Relíquias da Adolescência II - Queria ser filho do Artidório
Em “Na hora da aula, saudade de mãe“ eu conto que nem todo aquele zelo com que D. Flávia minha mãe dispensava-me; cheiro, penteado, etc. e tal, ao aprontar-me para a escola, livrava-me daquele terrível aperto no peito, justo quando aproximava-me do Grupo Escolar, com saudade dela. Eu empacava na porta da loja do Sr. Artidório. Pois bem! Quatro anos mais tarde, ali também, arranjei um outro incidente que deixei desapontados os meus pais.
A casa do Artidório e D. Selma: de família pequena – só aí já eram considerados ricos – eles moravam na rua Jacuí, 2494, esquina com rua Botucatú, Renascença. A entrada dava pra rua Botucatú por causa do desnível entre as ruas. Lavanderia, cozinha e outras repartições neste nível. Subia-se a escadaria e dávamos com salas e quartos fartos na parte de cima, que era a laje de piso da loja de móveis de portas de ferro amplas e bem desenhadas, uma em cada extremo da fachada, voltadas pra rua Jacuí. Loja enorme, pé direito alto, imóvel até hoje lá instalado. Como se não bastasse, ainda fazia parte da propriedade, o lote de esquina da rua traseira – a Parús – numa distância aproximada de 60 m. entre uma e outra rua, onde funcionava uma marmoraria.
Estávamos no 4°. ano de grupo quando eu e Marco Antônio refinamos a amizade, pessoa de quem não tenho hoje a menor idéia por onde anda. Era um cara elegante, branquinho, bonito, cabelo rente ao couro, dentes alinhados, brancos e bonitos, menino sarado – nós éramos raquíticos - e ágil. Eu o apelidei de Nunís, cabeça de giz.
Tinha uma única irmã, de nome Márcia, dois ou três anos mais nova que ele. Já no primeiro trimestre, seu pai Artidório consentiu que estudássemos juntos em sua casa, a pedido de seu próprio filho. Era entendimento do Marco que eu poderia tirar-lhe algumas dúvidas, de Língua Pátria, não sei mais o que. Avisei em casa e fui de imediato, feliz da vida. Afinal, de família operária, mais nove irmãos para dividir a casa de dois quartos e um puxadinho, cama pra dois – um para cada lado - quem comia ovo não comia carne, e vice-versa, o inusitado pra mim era festa. De manhã na escola, à tarde, aquela felicidade na casa de esquina, grande que só vendo. Mais quartos do que filhos, longa mesa de jantar, móveis de época, relógio grande de pêndulo e cordas, móveis rústicos,cristais e porcelanas... Já naquela época, nas refeições utilizavam-se de dois pratos. No que agente tomava um caldo num e já levantava da mesa dando por encerrado a tarefa. Demorou algum tempinho pra gente entender. E entre livros e aritmética fui dando conta de que seria bem mais triunfante morar ali. E batia forte em mim a desventura de não ter nascido irmão de Marco Antônio. Cheguei a ter a nítida sensação de que poderia morar lá, até que num dia, em que não tinha mais sujeira debaixo das unhas pra limpar, durante as horas que curtia um castigo, por uma das desavenças que volta e meia tinha com minha mãe, deixei escapar-lhe, meio que entre dentes, a ferrenha vontade de ser filho do Artidório. Pra que meu amigo! Pra que! Aquilo cortou o coração de minha mãe. De boca seca, rosto vermelho e suado, falou que em sua casa era um par de sapatos pra dois, é verdade, mas todo o sacrifício ela e pai faziam em prol dos filhos para que não faltasse nada. Com um pouco mais que um salário mínimo, nós tínhamos moradia e crédito no armazém a “Cooperativa” da fábrica de tecidos. E amargou dias a fio aquele constrangimento que havia lhe imposto. Meu pai, geralmente passivo, chegou a cogitar uma boa coça, pra que eu pusesse os pés no chão e as coisas retornassem a seu devido lugar. O interessante é que minha mãe que agia com mais energia, desta vez foi quem ponderou para evitar as vias de fato. Só depois disso é que a ficha caiu, como dizemos nos dias de hoje. Foi uma injustiça de minha parte ter proferido aquelas palavras. Dali pra frente eu teria a eterna obrigação em repará-las. Fiquei deveras arrependido, embora contente, por manter conservados os dentes. Mas já se aproximava o fim do ano e aos poucos voltava ao convívio caseiro, com o rabinho por entre as pernas, achando graça em tudo e todos até que estabilizasse a situação. Até hoje sou motivo de chacota em família, por causa daquele inocente episódio de infância. Millôr Fernandes já dizia: o orgulho que temos de falarmos de nossa origem humilde, só é igual a humilhação que sentimos quando os outros falam dela.
Toma distraído!
Mas também, cá pra nós; quem não gosta de coisa boa?
Em “Na hora da aula, saudade de mãe“ eu conto que nem todo aquele zelo com que D. Flávia minha mãe dispensava-me; cheiro, penteado, etc. e tal, ao aprontar-me para a escola, livrava-me daquele terrível aperto no peito, justo quando aproximava-me do Grupo Escolar, com saudade dela. Eu empacava na porta da loja do Sr. Artidório. Pois bem! Quatro anos mais tarde, ali também, arranjei um outro incidente que deixei desapontados os meus pais.
A casa do Artidório e D. Selma: de família pequena – só aí já eram considerados ricos – eles moravam na rua Jacuí, 2494, esquina com rua Botucatú, Renascença. A entrada dava pra rua Botucatú por causa do desnível entre as ruas. Lavanderia, cozinha e outras repartições neste nível. Subia-se a escadaria e dávamos com salas e quartos fartos na parte de cima, que era a laje de piso da loja de móveis de portas de ferro amplas e bem desenhadas, uma em cada extremo da fachada, voltadas pra rua Jacuí. Loja enorme, pé direito alto, imóvel até hoje lá instalado. Como se não bastasse, ainda fazia parte da propriedade, o lote de esquina da rua traseira – a Parús – numa distância aproximada de 60 m. entre uma e outra rua, onde funcionava uma marmoraria.
Estávamos no 4°. ano de grupo quando eu e Marco Antônio refinamos a amizade, pessoa de quem não tenho hoje a menor idéia por onde anda. Era um cara elegante, branquinho, bonito, cabelo rente ao couro, dentes alinhados, brancos e bonitos, menino sarado – nós éramos raquíticos - e ágil. Eu o apelidei de Nunís, cabeça de giz.
Tinha uma única irmã, de nome Márcia, dois ou três anos mais nova que ele. Já no primeiro trimestre, seu pai Artidório consentiu que estudássemos juntos em sua casa, a pedido de seu próprio filho. Era entendimento do Marco que eu poderia tirar-lhe algumas dúvidas, de Língua Pátria, não sei mais o que. Avisei em casa e fui de imediato, feliz da vida. Afinal, de família operária, mais nove irmãos para dividir a casa de dois quartos e um puxadinho, cama pra dois – um para cada lado - quem comia ovo não comia carne, e vice-versa, o inusitado pra mim era festa. De manhã na escola, à tarde, aquela felicidade na casa de esquina, grande que só vendo. Mais quartos do que filhos, longa mesa de jantar, móveis de época, relógio grande de pêndulo e cordas, móveis rústicos,cristais e porcelanas... Já naquela época, nas refeições utilizavam-se de dois pratos. No que agente tomava um caldo num e já levantava da mesa dando por encerrado a tarefa. Demorou algum tempinho pra gente entender. E entre livros e aritmética fui dando conta de que seria bem mais triunfante morar ali. E batia forte em mim a desventura de não ter nascido irmão de Marco Antônio. Cheguei a ter a nítida sensação de que poderia morar lá, até que num dia, em que não tinha mais sujeira debaixo das unhas pra limpar, durante as horas que curtia um castigo, por uma das desavenças que volta e meia tinha com minha mãe, deixei escapar-lhe, meio que entre dentes, a ferrenha vontade de ser filho do Artidório. Pra que meu amigo! Pra que! Aquilo cortou o coração de minha mãe. De boca seca, rosto vermelho e suado, falou que em sua casa era um par de sapatos pra dois, é verdade, mas todo o sacrifício ela e pai faziam em prol dos filhos para que não faltasse nada. Com um pouco mais que um salário mínimo, nós tínhamos moradia e crédito no armazém a “Cooperativa” da fábrica de tecidos. E amargou dias a fio aquele constrangimento que havia lhe imposto. Meu pai, geralmente passivo, chegou a cogitar uma boa coça, pra que eu pusesse os pés no chão e as coisas retornassem a seu devido lugar. O interessante é que minha mãe que agia com mais energia, desta vez foi quem ponderou para evitar as vias de fato. Só depois disso é que a ficha caiu, como dizemos nos dias de hoje. Foi uma injustiça de minha parte ter proferido aquelas palavras. Dali pra frente eu teria a eterna obrigação em repará-las. Fiquei deveras arrependido, embora contente, por manter conservados os dentes. Mas já se aproximava o fim do ano e aos poucos voltava ao convívio caseiro, com o rabinho por entre as pernas, achando graça em tudo e todos até que estabilizasse a situação. Até hoje sou motivo de chacota em família, por causa daquele inocente episódio de infância. Millôr Fernandes já dizia: o orgulho que temos de falarmos de nossa origem humilde, só é igual a humilhação que sentimos quando os outros falam dela.
Toma distraído!
Mas também, cá pra nós; quem não gosta de coisa boa?