Relíquias da Adolescência

Desde a mais tenra idade, já nos tempos de escola primária, agente era instruído a respeitar os adultos e ajudar os vizinhos cuja família proliferava de forma tão rápida que em pouco tempo o bairro operário da Renascença já se encontrava habitado. Fundada a fábrica de tecidos em 1938, foram construídas casas populares para os operários e descontavam em seus salários uma pequena fração, referente a aluguel. Anos mais tarde tomaram posse do imóvel. As casas eram de parede meia; uma ao lado d’outra, dividida por uma parede comum.A forma de ajudar as famílias era a de cuidar dos filhos daquelas que eram mais numerosas.Lembro-me da saudosa Irene, esposa do Sr. Derly contador da fábrica. Teve a família composta rapidamente com o nascimento em série de Serginho, José Augusto, Márcio, Décio e Cássio.Agente freqüentava escola numa parte do dia e n’outra ia prá casa deles cuidar do entretenimento de seus filhos. Isto não foi exclusividade de nossa família. Era costume oferecer os préstimos aos recém chegados. Outra fase interessante foi a de engraxate na rua Jacuí, esquina com Botucatú, pertinho da portaria principal da fábrica de tecidos. Alí era o “point” da rapaziada, na porta do bar do Sr. João. A época era de roupa sob encomenda e os alfaiates ficavam sobrecarregados. Anos mais tarde é que, com a chegada das calças Lewis e Lee, as encomendas de roupas foram desaparecendo e com elas os alfaiates quase extintos. Antes disso, cada um queria andar melhor vestido que o outro. Ficavam como que numa disputa, anunciando o seu alfaiate preferido, muitos de nome e renome. Anos mais tarde também cheguei a ter o meu; João Francisco, num edifício da Caetés com Afonso Pena.O pessoal andava rigorosamente na moda. Calças de tergal e linho vicunha. Até camisas eram feitas sob encomenda e as mais elaboradas tinham botões forrados de mesmo tecido. Os sapatos andavam sempre reluzentes. Nas noites de sextas e sábados formava-se até fila de espera em torno de nossas caixas de engraxar. Os mais habilidosos na arte conseguiam reproduzir um som em rítmo de samba, com escovas e flanelas de lustrar, ao cabo de cada serviço executado. E era justo no final de semana que aquele serviço engordava nossos bolsos. Dava pra levar pra casa pão, carne moída, couve, batata doce e outras pequenas iguarias. Aquilo enchia-nos de orgulho. Éramos em número de cinco engraxates. Quase toda sexta-feira ocorria um lance pitoresco. Lá pelas cinco e meia da tarde, surgia na Jacuí, há dois quarteirões de distância, sentido centro bairro, um carroceiro de quem ninguém sabia o nome, naquele trote maroto, carregando capim ou outra bobagem qualquer - pelo menos pra nós – com aquele seu cavalo magro, sujo, feio e marron. Bastava um de nós avistá-lo que a notícia corria de boca em boca e ele era aguardado com ansiedade. Ao passar pela gente, todo mundo gritava: olha a traseira, olha a traseira.... Rapaz..., mas o velho ficava possesso, dava chicotada pra tudo o quanto é lado, com direito a todo tipo de palavrão. Pr'agente não havia coisa melhor. Era o resto da tarde rindo e comentando o assunto. Não me pergunte quem descobriu e como começou esta parada. O certo é que era divertido demais. Voltemos à batalha. Um tempo depois, passei na seleção de um curso profissionalizante no SENAI , torneiro mecanico, um curso de tres anos, em que estudava-se em dois turnos, exceto o primeiro semestre. Para preenchê-lo fui trabalhar na lapidação de pedras preciosas. Meus primos, filhos de D. Tibúrcia, casada com tio José Augusto, tinham uma lapidação no fundo do quintal da casa deles. Alí burilavam pedras que eram comercializadas aos sábados. As profissões eram a de Colador; aquele que colava a pedrinha em um pauzinho de bambu chamado de caneta, para que a mesma pudesse ser trabalhada. Como tratava-se de serviço de relativa facilidade, foi este o que me foi concedido. O equipamento era caseiro e constituía-se de uma lata vazia de azeite que tinha a frente aberta. Apoiada em uma pequena mesa, colocava-se em seu interior uma lamparina de querosene. Acesa, ela esquentava a parte superior da lata em que eram depositados os fragmentos de rubís e com o auxílio de breu, agente colava a pedrinha no bambú. A parte mais plana ficava voltada para o lado de fora, neste primeiro estágio. Serviço realizado, passava-se para o Formador. Este trabalhava a pedra num rebolo de esmeril, banhado em água, dando-lhe conformação em forma circular. Este papel era desempenhado pelo meu padrinho Zé Rego. Dalí seguia para o Talhador, o responsável por imprimir minúsculas facetas, em forma de triângulos na pedra rubí. Para obtê-las, o talhador apóia a ponta da caneta oposta à pedra em um toco de madeira, em forma retangular, provido de uma série de furinhos não cegos, distribuídos aleatoriamente um perto d'outro. Este toco, fixado na banca de talhar, perto do disco de chumbo que girava em posição horizontal, com velocidade constante. A parte da rubi era tocada ao disco, que era embebido intermitentemente em mistura de água e pó abrasivo, aplicado com o auxílio de uma brocha. Ficava por conta da habilidade do Talhador a escolha do furinho e o tempo de contato da rubi com o disco, para cada faceta de que se desejava obter, formando aquele desenho maravilhoso das pedras preciosas, que bem conhecemos nas jóias depois de prontas. Este serviço era desempenhado pelo Raimundo Pacú, Pedro Pato, Miguel e o pandeirista Kodac. Mas pra ficar prontas precisavam brilhar. Para isto eram levadas ao Polidor, que em banca e disco semelhantes e habilidade igual ou superior a de um talhador, passava as facetas da rubí por sobre o disco, embebido agora em pó de pulir, amarelado tipo amido, para dar-lhes brilho final. Trabalhavam como polidor Chico Arroz, Helinho Rarirá, Ticepo e Marquinhos irmão de R. Pacú. As canetas eram enviadas ao Colador que esquentava a rubi, virava- a ao contrário, para ter burilada a sua parte cônica. Todo o processo se repetia. Terminado, retornava a ao colador para desprendê-la da caneta e limpá-la com álcool para estar pronta para a comercialização. Considero que tive uma fase de adolescente muito rica em minha vida. Depois disso veio a fase profissional logo após formatura no SENAI. Este, dentre todos os meus cursos, sem exageros, é aquele de que tirei melhor proveito. Recentemente, nosso cientista brasileiro Marcos Pontes, teceu rasgados elogios à esta Instituição. Na ativa até os dias de hoje, vamos sempre aprendendo. Quem sabe, um dia possamos deixar algum conteúdo, pra essa nova geração.

Abraço a todos.

Afonso Rego
Enviado por Afonso Rego em 07/12/2009
Reeditado em 26/03/2012
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