Na hora da aula; saudade de mãe

Como o sexto de uma família de dez filhos, tive como os outros uma infância bem regrada, para o padrão de um pai operário. Contudo tínhamos casa fornecida pela Cia. Renascença Industrial - fábrica de tecidos - fundada em 1938, onde o velho Constantino Rêgo trabalhava de Almoxarife e Armazém para desconto em folha. 

Exímio saxofonista e clarinetista fazia parte da Orquestra Sinfônica do Clube Belo Horizonte - Cassino da Pampulha. Aos sábados, tornava-se barbeiro, para aumentar a renda familiar desde que fosse observado um tempinho para ensaiar com o Cojunto denominado Miríns do Rítmo, formado dentro de casa.

Betinho, o primogênito na percussão, Aécio na acordeon, aprendeu música com ele e tornou-se maestro mais tarde. Rubinho que cursava Veterinária ficava por conta do violão, Maria Inês cantava e eu Zé Afonso com apenas 8 anos já solava cavaquinho. Ainda tinha Marilene (China), Toninho que faleceu cedo com problemas de saúde, Constatino Filho (Tininho) e Marisa. Tudo ia bem até que logo no primeiro ano de grupo, arranjei um problema desconsertante prá D. Flávia minha mãe - cuidava do acompanhamento escolar nosso. Estudava no Grupo Escolar Tito Fulgêncio. Eu era o xodó de algumas professoras. Lembro perfeitamente da fisionomia de algumas.

D. Edsonina esposa Sr. Afonso, D. Ivone, alta, bonita, de pele rosada, olhos claros, óculos de grau, veio a ser Diretora mais tarde, do porteiro Sr. Alencar,  baixinho, barrigudinho, cabelos crespos, de bigode e sobrancelhas grossos, que residia no fundo da escola. Gostava de bandeirar partidas de futebol e vestia o short e camisa pretos da FMA - Federação Mineira de Futebol Amador nos finais de semana. Pra ir a Escola eu era vaidoso, ficava muito elegante no sapatinho preto, meias brancas, calça curta em azul marinho, de barra dobrada, com suspensório, camisa branca de algodão com o discreto distintivo Tito Fulgêncio sobre o bolso único do lado direito.

Nos dias de frio mãe vestia-me com uma blusa de malha cinza, com frente em veludo azul marinho e pra completar, caprichava no chuca-chuca, penteado que chamava a atenção dos coleguinhas e das mestras que não poupavam-me elogios. Mas nada disso livrava daquele problema desconcertante de que falei. 

Era um terrível aperto no peito que sentia quando chegava na porta da Escola. Bem na esquina da rua Botucatú com Jacuí, na porta da loja/ casa grande e bonita do Sr. Artidório, eu dava um cangolê, soltava da mão do meu irmão Silvinho que me acompanhava e começava a chorar com saudades de nossa mãe.

As vezes ele me enfiava assim mesmo pra Escola adentro, outras voltávamos pra casa e ganhávamos um sabão daqueles. Mãe era muito rigorosa e tinha certeza que mais dia, menos dia encontraria uma medida que resolvesse de pronto aquela situação. Eis que num belo dia, nas férias escolares, surgiu uma oportunida rara de um passeio na cidade vizinha de Nova Lima, na casa do José Renato Pimentel, colega de ginásio dos meus irmãos Betinho e Aécio no Colégio Municipal - Lagoinha. Zé Renato era muito estudioso, um cara das artes e já despontava nele um gosto acentuado pela pintura. Minha empolgação com a possibilidade de viagem foi tanta que passei a noite em que antecedia ao passeio, em claro. Preparei a calça preta, curta, de tergal, com barra dobrada, limpei o suspensório, aquela melhor camisinha que tinha; cinza, de algodão, xadrezada com listras em marron, gola farta e engomada, sapatos pretos e meia de brancas de algodão. Chega a madrugada, levantamos, escovamos, vestímo-nos, tomamos mingau de fubá com Toddy e comemos o delicioso pão do Sô Zé Oliveira, comprado às 10 da noite anterior. Às 6 chegou o taxi Buick sedan 1941 do Chiquito e rumamos pra Praça da Estação, onde o trem tinha hora marcada. Dentro de 15 minutos, foi dada a partida, entre apitos, fumaça, o balançar prum lado e outro da locomotiva e o toc-toc de emenda dos trilhos. Eu contava os postes, vacas, carros, novos em movimento, velhos enferrujados abandonados no mato, fios elétricos com pipas e sapatos laçados e lá vamos nós pra Nova Lima. Fantástico! Tava bão demais. O coração batia acelerado. Isso que é Viagem? Uma novidade que roubava-me o direito de assentar. E que se dane o chuca-chuca desarrumado. Não podia perder um só pequeno detalhe. Uma outra? Sabia lá Deus, quando. Cheguei ao destino cansado, olhinhos lacrimejando pelo vento da janela, mas sobretudo feliz. Lá na cidade vizinha foi ótimo. Fomos muito bem recebidos, bate papo, música comida farta e tudo mais. A tarde visitamos o estádio de futebol do Vila Nova - Castor Cifuentes - a entrada da Mina de Ouro Velho dirigida pelos holandeses, divertimos bastante. Domingo à noite regressamos e já em casa, o passeio tomou conta da conversa. Depois de viver um inusitado e maravilhoso fim de semana, entra segunfa-feira, chego na esquina do Artidório e bateu-me de novo aquele aperto trazendo consigo a saudade de mãe. De volta pra casa, chorando, puxado pelo Silvinho, demos de cara com mãe na porta que nem deixou eu explicar: o quêêê? Ocê aqui outra vez com saudade de mãe? Não acredito. Cê foi viajar e nem lembrou de me pedir a benção. É só voltar a aula procê sentir saudade de mãe? Volta já nego atoa, se ocês dois num quisé levá uma surra, dobrando o joelho e levando a mão numa de suas sandálias com sola de pneu. Foi o bastante para que saíssemos em disparada rua abaixo de volta à escola. Restou-me do passeio esta pequena foto acima em preto e branco. Nela eu estou no lado esquerdo com a roupinha como descrito acima, cabelo por fazer, magrelinho de cintura fina, camisa pra dentro do short, perninhas tortas e finas onde sobressaem os joelhinhos pontudos, de mão dada com uma garotinha rúiva de aproximadamente 1 ano e meio, carinha redonda, cabelinho grande, assanhado e sem trato, de vestidinho branco, folgado, parecendo de fustão e descalça. Não sei seu nome nem de quem era filha. A direita está Maurício, irmão do Zé Renato, de camisa listrada. Tinha 9 anos, 2 a mais do que eu. Pouco tempo depois soube que perdeu a vida eletrocutado, soltando pipa próximo a sua casa. Estamos no final de uma rua de terra batida, onde ao fundo os mourões de cerca se perdem numa curva na esquerda da foto. Ao lado direito uma montanha em corte e no canto inferior um pedaço de rua rebaixada dando a entender tratar-se de esquina. Ah se pudéssemos voltar ao tempo.

Pensando bem não perdi a “saudade de mãe”. Tivemos todos nós aumentada sua saudade. 

Flaviana Félix de Freitas: * 1915/ 1984 ! - Neste 24 de fevereiro (dia e mês de seu aniversário) de 2022 já se completam 38 anos de sua passagem. Os nossos Parabéns Querida. Felicidades.

 

Afonso Rego
Enviado por Afonso Rego em 05/12/2009
Reeditado em 23/02/2022
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