MIRANDOLINA E OS GRÃOS MÁGICOS
Mirandolina e os grãos mágicos.
Era uma vez um circo: toldo de cetim colorido; o picadeiro coberto pelas mais finas serragens de cedros da Ásia; tigres albinos da Sibéria; leões africanos; gorilas e chimpanzés do Congo; cavalos brancos e negros da Áustria. Havia pôneis de todas as cores, com crinas longas e lustrosas. Os palhaços encantavam a platéia com histórias cheias de sotaques. Suas focas treinadas jogavam bola com as crianças nas primeiras filas e algumas até sopravam melodias em suas cornetas de metal dourado. A vida no circo seguia alegre e farta. Era o circo mais rico do mundo. Sabem por quê?
Não, não eram as focas, nem os elefantes, tigres, leões, macacos, focas, camelos e cavalinhos. Nem os trapezistas ou os malabaristas ou os rapazes do globo da morte em suas motos reluzentes.
Quem trazia, então, tanta gente, fama e dinheiro ao circo? Quem?
Mirandolina é a resposta. E quem é, ou era, Mirandolina? Era a pequena bailarina que voava, sem asas e sem fios , roldanas ou redes de segurança, que aparariam sua queda se, um dia não conseguisse voar. Voava sozinha!
Bem, mas esta é uma história longa: o segredo estava na caixinha que recebera de sua mãe, a qual, por sua vez, recebera-a da mãe de sua mãe, e que fora herança da mãe da mãe da mãe da mãe da mãe da mãe de sua tetravó. O tal pó, na verdade, composto por minúsculos grãos cor de ouro, havia sido presente de um gnomo que demonstrara, assim, sua gratidão por ter sido retirado de uma armadilha para prender tiltapes—pequenos roedores de carne macia, pele fofinha e de patinhas que serviam como amuletos poderosos contra muitos males do corpo e do coração. Quando aquela mãe da mãe da mãe da mãe da mãe da mãe da mãe da mãe da mãe da mãe da tetravó de Mirandolina caminhava pela floresta de Analonga, na proximidade de uma gruta funda, ouviu os ais do gnomo, já quase sem forças. Tirou-o da armadilha, levou-o para sua caverna e acomodou-o em um leito de barba de pau e alecrim e sândalo, bem ao pé do fogo. Lavou-lhe os ferimentos com uma mistura de arnica, cidreira, guaco, malva e Raízes de valeriana. E um ingrediente mágico que apenas ela conhecia: uma receita de família, antiga como o tempo e a terra e as grutas e as árvores.
Aos poucos, o gnomo ficou curado. Antes de retornar a seus afazeres—de gnomo, claro, e por isso, não sabemos bem quais eram—tirou, lá de dentro do fundo falso de seu gorro, uma caixinha e entregou-a à mãe da mãe da mãe da mãe da mãe da mãe da mãe da mãe da mãe da mãe da tetravó de Mirandolina. E falou com a voz esganiçada dos gnomos: “Nesta caixinha há grãos mágicos capazes de grandes transformações. Porém, são só três grãos. Três grãos, não mais do que três grãos. Os poderes são segredo irrevelável e a caixa deverá ficar, sempre, com a mulheres de sua prole, isto é, com as filhas de suas filhas e assim por diante” .Então, rodopiou e rodopiou e, mais dez vezes rodopiou, e sumiu na nuvem de poeira e vento dos rodopios.
A mãe da mãe da mãe da mãe da mãe da mãe da mãe da mãe da mãe da mãe da tetravó de Mirandolina, curiosa, abriu a ,pensando que fosse alguma guloseima exótica, colocou, sob sua língua, três grãozinhos, só para provar. Queria, além disso, ver se produzia algum efeito também, O certo é que desconfiava que aquela história do gnomo fosse pura lorota. E assim que os grãos derretiam—tinham um gostinho de mel com capim cidró—sentiu um grande arrepio, seus pés tremeram e, de repente, subia e subia e subia acima das grandes árvores, como se fosse um condor.
E o circo, o que tem a ver com os grãos e o gnomo? Outra longa narrativa. Mas, para encurtar, passaram-se alguns séculos e, numa tarde de domingo, a avó da tetravó de Mirandolina passava por um povoado quando se deparou com uns animais esquálidos, uma coisa que parecia um circo abandonado, com o toldo puro remendos. Até os remendos tinham remendos de remendos! A avó da tetravó de Mirandolina parou e perguntou ao dono a razão de tanta pobreza. “É que ninguém mais vem aqui: estão cansados de animais, palhaços e bailarinas. Preciso de uma nova atração para salvar circo, palhaços, domadores, bailarinas, malabaristas, trapezistas e animais”.
Foi naquele instante que a avó da tetravó de Mirandolina lembrou-se da caixinha que carregava em sua trouxa, e falou: “Serei sua próxima atração! Confie em mim e seu circo será famoso no mundo inteiro”.
O resto vocês já sabem.
Há filas intermináveis para o espetáculo. Os aplausos reboam pelas planícies. Hoje é um dia especial: feriado nacional—desses que existem em todos os lugares—e crianças enchem camarotes, cadeiras e arquibancadas com seus pais, avós, tios, amigos, primos, coleguinhas de escola. E todos, todos mesmo, desde a criançada e suas turmas de escola e suas famílias e vizinhos até os pipoqueiros, fotógrafos, vendedores de refrigerantes e cachorros-quentes e algodão doce e maçãs do amor e lembrancinhas, extasiam-se ante a beleza e fragilidade de Mirandolina, quando esta surge no meio do picadeiro em seu vestido de tule, cetim e flores miúdas bordadas com brilhos. E gritam: ”Mirandolina! Mirandolina! Mirandolina!”
Ela escuta, mas está sonhando com o cavaleiro dos pôneis do qual recebera, minutos antes, um beijo na mão e a flor que traz à sua cintura. Coloca a mão no pequeno bolso de cetim de seu cinto dourado e tira dali os grãos. Um punhado. Leva-os à boca vermelha. Corre, depois, de braços abertos pelo picadeiro e saúda a todos. A platéia a ovaciona. Mirandolina faz seu pliê e impulsiona-se, após, em um salto. Palmas e mais palmas dos presentes.
Começa a voar sobre as cabeças dos que ocupam camarotes, cadeiras numeradas, cadeiras comuns e arquibancadas. “Mirandolina! Mirandolina!”, aplaudem crianças, adultos, pipoqueiros, fotógrafos, vendedores de refrigerantes e cachorros-quentes e algodão doce e maçãs do amor e lembrancinhas. Subitamente, faz-se um silêncio. A orquestra pára, também. Mirandolina rompe o toldo, como se um ciclone a carregasse em sua fúria. Dela restaram, apenas, um ramo de miosótis e um cintinho com um bolso do qual escorriam grãos sobre a serragem do picadeiro. E um buraco enorme no toldo amarelo, azul e vermelho.