Janjão trapaceiro e a Arca encantada

Em um pequeno povoado, próximo a uma pacata cidade, morava um rapaz de nome Janjão. Todos o conheciam por Janjão Trapaceiro, porque vivia contando mentiras e fazendo trapaças com todo mundo.

Janjão morava sozinho em uma humilde casinha próximo a um rio, onde passava o dia todo de papo pro ar sem fazer nada. Preguiçoso como ele só, vivia inventando mentiras para poder arrumar o que comer. Chegava à casa de um sempre com aquela conversinha mole, inventava um monte de histórias e por fim acabava ficando para o almoço. A noitinha ia para a casa de outro e novamente com aquele seu bico doce inventava mais um monte de histórias e acabava ficando para o jantar. E assim ele ia levando a vida, contando mentiras, serrando bóia e trapaceando os outros.

Ninguém sabia ao certo de onde ele era. Um dia ele contava uma história, daqui uma semana já falava outra coisa. Quando chegou ali no povoado, apareceu de terno e gravata, que com certeza deve ter trapaceado alguém para consegui-lo e dizia ser filho de um importante juiz da cidade grande. Com o passar dos meses acabaram por descobrir que ele não passava de um Zé Ninguém. Na verdade não tinha onde cair morto.

O que mais irritava as pessoas é que além de preguiçoso e trapaceiro, ele também gostava de pregar peças em todo mundo. Um dia chegou correndo no algodoeiro, gritando feito um doido, que a escola estava pegando fogo. Os pobres camponeses largaram seus afazeres e saíram de carreira para tentarem salvar a escola. Porém quando lá chegaram perceberam que haviam caído em mais uma mentira do Janjão. E enquanto todos o chingavam de tudo quanto era nome, ele rolava no chão de tanto rir.

Outra vez, em um domingo de missa, enquanto todos aguardavam o padre Fausto chegar da cidade para a celebração dominical, novamente ele chegou correndo feito um doido avisando que o padre Fausto havia caído com a sua charrete em um barranco, tinha se arrebentado todo e estava entre a vida e a morte no hospital e aos prantos implorou que precisava do dinheiro do dízimo que estava depositado na caixinha dos fiéis para comprar os remédios que o doutor havia receitado.

Foi um rebu danado. A mulherada e as crianças choravam desesperadamente, os homens erguiam as mãos para o céu pedindo a Deus que salvasse o Padre Fausto.

Já iam pegar o dinheiro da caixinha dos fiéis para entregarem ao Janjão, quando não passou quase nada e eis que aparece ali inteirinho, ao vivo e a cores, o padre Fausto. Aquilo foi a gota d’água. Saíram correndo atrás do Janjão com pedras e porretes e se ele não fosse bom de corrida teria tomada uma bela de uma surra.

Por alguns dias o Janjão resolveu ficar moqueado em seu casebre, esperando a poeira se assentar para poder voltar ao povoado. Comia o que encontrava pelo campo. Um dia uma fruta, outro dia uma moranga, e às vezes algum animal do mato que conseguia caçar.

Em uma dessas manhãs ele estava sentado em um barranco junto ao rio, quando avistou uma enorme arca boiando sobre as águas. Levantou-se correndo, apanhou um galho seco que estava caído próximo dali e puxou a arca para fora. Janjão ficou todo entusiasmado achando ter encontrado, talvez, um tesouro. Destravou o ferrolho e abriu a arca. Só que ao invés de um tesouro, de dentro da arca saltou um homenzinho de barba e cabelos brancos, trazendo na cabeça um enorme chapéu preto e usando uma roupa toda esquisita. Parecia ter saído de uma daquelas histórias de bruxas e duendes. Janjão tomou um baita de um susto.

----Que diacho é isso? --Gritou ele com os olhos arregalados.

----Livre! Até que enfim alguém abriu essa droga! --Berrou o homenzinho todo festeiro, pulando e dançando.

----Você é louco! Quase me matou do coração! O que você está fazendo ai dentro!

Perguntou Janjão fulo da vida.

----Rapaz, você acredita que eu entrei ai para concertar a fechadura e não sei como a tampa fechou e eu fiquei trancado dentro da arca.

----De onde você é? --Indagou Janjão.

----Do fundo do rio. --Respondeu o homenzinho.

----Do fundo do rio?

Janjão, desconfiado como ele só, franziu a testa olhando para o homenzinho com o canto dos olhos achando que aquele coitado só poderia ser doido.

----Pois é rapaz, a arca deve ter boiado e não sei como vazou pela passagem secreta e veio parar aqui na superfície.

Janjão pensou consigo: “Não acredito! Encontrei alguém mais mentiroso que eu!”

----Qual seu nome? --Perguntou.

----Karfeu! --Respondeu o homenzinho

----Então quer dizer que você mora no fundo do rio! -- Perguntou Janjão.

----Moro sim. --Respondeu ele.

----Ah, tá! Mas você mora sozinho ou tem mais alguém que mora com você? --Perguntou Janjão com a intenção de dar corda a conversa.

----Tem mais um montão de gente. Porém só eu possuo poderes para subir até a superfície. --Respondeu Karfeu.

----Olha meu irmão, ou você é louco ou é mais milongueiro que eu! --Retrucou Janjão dando a entender que não estava acreditando em nada daquilo.

----Mentiroso? Por quê? --Berrou Karfeu, não gostando nada por Janjão estar duvidando dele.

----Você acha que eu vou acreditar em uma história maluca dessa! --Zombou Janjão.

----Bom, acredite se quiser! --Ironizou Karfeu balançando os ombros

----E você possui alguns poderes? --Indagou Janjão ainda em tom zombeteiro.

----Depende!

----Depende do que? --Continuou Janjão só pra ver até onde ia aquela conversa.

----Pode ser que o que para nós é algo normal de repente aos seus olhos possa parecer uma coisa do outro mundo.

----Explique melhor? --Inquiriu Janjão

----Por exemplo, o que você gostaria que eu fizesse para convencê-lo?

Janjão ainda achando que aquele pobre coitado não passava de um doido varrido resolveu continuar a brincadeira.

----Bom... tá vendo essa arca?

----È lógico, eu não sou cego! --Respondeu Karfeu.

----Pois bem! Você consegue fazer aparecer ai dentro dela um tesouro igual aqueles que os piratas pilhavam em alto mar.

Karfeu aproximou-se da arca e passou a mão sobre ela.

----Assim está bom? --Perguntou Karfeu com um sorrisinho maroto.

Janjão quase caiu de costa. Assim que Karfeu passou a mão sobre a arca ela se abarrotou de ouro e pedras preciosas.

----Como você fez isso? --Gritou Janjão enfiando a mão no tesouro, deixando-o escorrer por entre os dedos.

----Não tem segredo nenhum! Essa arca é encantada e qualquer criança pode fazer isso. É só passar as mãos sobre ela, pensar em alguma coisa e "puf" ela realiza o seu desejo. --Explicou Karfeu, achando graça de ver o Janjão de boca aberta diante daquilo.

----Eu ainda não estou acreditando no que vejo! --Falou Janjão incrédulo ainda com o que acabara de presenciar.

----É aquilo que eu te disse, o que para nós é tão simples como respirar, para vocês aqui em cima parece mágica.

----Minha Nossa Senhora, se isso fosse meu eu seria o homem mais rico do mundo! Gritou Janjão, já arquitetando alguma trapaça para ficar com aquele tesouro todo e também com a arca encantada.

----Pode pegar pra você! Fica como paga por ter me libertado! --Ofereceu-lhe Karfeu

----Você está falando sério? --Duvidou Janjão.

----Claro que estou! No nosso mundo isso não passa de lixo!

Janjão já ai abraçando a arca quando Karfeu o interceptou.

----Calma! Também não é bem assim!

----Mas você disse que eu podia pegar para mim! --Retrucou Janjão.

----Só que antes eu preciso de um favorzinho. --Impôs-lhe Karfeu.

----Que favor? --Perguntou Janjão.

Karfeu tirou do bolso um pequeno frasco de vidro e entregou para Janjão.

----Preciso que você coloque aqui dentro o suspiro de uma jovem pura e formosa.

----Para que você precisa disso? --Perguntou Janjão.

----È para uma nova formula que estou inventando. --Explicou Karfeu.

Janjão percebeu de imediato que aquilo seria impossível, pois caso voltasse para o povoado com aquela história maluca com certeza ninguém iria acreditar nele. E além do mais todos na cidade ainda não haviam esquecido da última malandragem que ele aprontara. Porém ficar sem aquele tesouro? De maneira alguma! Na insensatez de sua ganância, sem que Karfeu esperasse, deu-lhe um empurrão com toda a sua força e o jogou dentro do rio, abraçou a pesada arca e saiu correndo feito um doido pela encosta do rio. Porém não foi muito longe, sentiu um forte golpe nas costas como se uma lâmina o houvesse atravessado. De imediato viu-se paralisado. Por mais que tentasse não conseguia sair do lugar, e bem a sua frente, como se tivesse surgido do nada, avistou Karfeu flutuando no ar com os olhos vermelhos em brasa, transbordando toda a sua ira pelo que Janjão havia feito com ele.

----Canalha! Vais pagar caro por isso! È o tesouro que você quer? Pois veja o que vou fazer com ele!

Passou a mão sobre a arca e transformou todo aquele ouro e pedras preciosas em um amontoado de ossos.

----Tome cafajeste é todo seu! E você queria saber se eu possuo algum poder? Pois veja só o que eu posso fazer!

Karfeu passou a mão sobre os olhos de Janjão e se apropriou de sua visão, colocando-a dentro de outro frasco de vidro que trazia consigo.

----Ei, o que foi que você fez comigo? Você me cegou! --Gritou Janjão apavorado.

----Tens duas horas para retornar com o que eu havia-lhe pedido. Nem um segundinho a mais. Caso não voltar dentro do tempo determinado, trazendo-me o suspiro de uma jovem formosa, voltarei para o fundo do rio e levarei junto comigo a sua visão.

----Mas eu não consigo enxergar! Como vou fazer isso? --Suplicou Janjão.

----Te vira! Agora suma da minha frente! O tempo já está correndo! E lembre-se nem um segundinho a mais!

Janjão completamente cego saiu correndo feito um louco, tropeçando, caindo, levantando, tropeçando e caindo, até que conseguiu chegar ao povoado. Quando o viram chegando naquele estado, todo sujo e machucado, cambaleando feito um bêbado, as pessoas já trataram logo de enxotá-lo dali, pois com certeza estava querendo aprontar mais uma das suas trapaças, pensaram. Janjão tentou explicar o que havia acontecido, mas foi em vão, ninguém acreditava em sua história maluca.

----Caia fora daqui seu mentiroso, trapaceiro!

Gritava um.

----Aproveitador! Preguiçoso! Contador de falsas histórias! Suma da nossa frente!

Gritava outro.

----Vamos dar uma surra nele, que é pra ele não enganar mais ninguém! --Gritou uma senhora com uma bengala na mão.

E todos partiram pra cima do pobre Janjão, que acabou tomando uma baita de uma sova. Só não apanhou mais porque o padre Fausto apareceu e acalmou os ânimos do pessoal. Janjão mais uma vez tentou explicar a sua história, porém foi em vão, ninguém acreditava nele. E vendo que o tempo já estava se expirando voltou correndo às cegas até a beira do rio onde havia deixado Karfeu com a sua visão guardada dentro de um pequeno frasco, na tentativa de que ele o perdoasse, porém de nada adiantou o seu esforço. Quando ele lá chegou já havia se passado um minuto do tempo estabelecido e o homenzinho não estava mais ali.

Cansado, machucado, com fome e agora também sem a visão, Janjão chorou a tarde toda pelo seu malfadado destino. Teria agora que viver por toda a sua vida envolvido pelo negrume das trevas. A noite chegou e Janjão continuava chorando. Orou desesperadamente pedindo a Jesus que o perdoasse, pois estava tremendamente arrependido por tudo que havia feito durante a promiscuidade de sua vida. Só muito tarde é que conseguiu dormir e durante o seu sono sonhou que uma mulher de feição dócil e semblante puro, vestida toda de branco e trazendo á cabeça um manto azul, apareceu a sua frente e olhando-o compadecidamente passou a mão sobre sua cabeça e disse-lhe:

----Vede Janjão o que fizestes com a tua vida. Uma existência toda de inércia, trapaças e mentiras.

----Quem é você? Perguntou Janjão.

----Meu nome é Maria! Eu sou a sua fada protetora!

----Se és aminha fada protetora por que me abandonastes diante de tão penoso destino!

----Eu nunca te abandonei Janjão! Você sim é que tem se afastado de mim a cada dia de sua vida! Olhe o seu passado Janjão! Ele é todo feito de coisas erradas!

----Perdoa-me senhora! Estou arrependido! Roubaram-me a visão! O que será da minha vida agora? --Chorou Janjão.

----Não, Janjão. O que a Deus pertence ninguém haverá de se apropriar. Logo será manhã, e assim que acordares vá até a beira do rio, ajoelha-te e passe as mãos sobre a relva umedecida, depois lave os olhos com a pureza desse orvalho e peça a Jesus, com toda fé de seu coração, que lhe devolva a sua visão, e com certeza ele vos atenderá. Porém preste atenção no que vou lhe dizer: É chegado à hora de mudar. Arranque esse homem velho de dentro de ti e se vista de roupagem nova. E enquanto viveres torna-te reto, faça de ti um exemplo a ser seguido, e caso voltares a essa vida de trapaças, mentiras e preguiça, perderas a visão novamente.

----Obrigado por me salvar, minha senhora! --Agradeceu Janjão em prantos.

----Não, Janjão! Não sou eu quem vos salvarei! A vossa fé é quem vos salvará!

Dito isso ela desapareceu. Logo o dia clareou e Janjão acordou. Lembrou-se do seu sonho e fez exatamente o que aquela senhora havia lhe recomendado. Arrastou-se cegamente até a beira do rio, ajoelhou-se, lavou os olhos com o orvalho da madrugada que cobria a relva e orou fervorosamente para que Jesus lhe restabelecesse a sua visão. Um forte clarão começou a sair de dentro das águas do rio e, como que sugado por Janjão, o clarão adentrou-se por seus olhos adentro. Era sua visão que retornava das profundezas do desconhecido, e ele logo começou a enxergar novamente.

Daquele dia em diante Janjão se transformou. A mudança foi tão grande que ninguém mais o chamava de Janjão Trapaceiro. Seu apelido agora era Janjão Sincero. Um exemplo de dignidade, moral e caráter reto. E assim ele o foi até o fim de sua vida.

Ainda hoje quem passa por aquela humilde casinha a beira do rio, onde agora não mora mais ninguém, costuma ver ali próximo ao barranco do rio, em noite de lua cheia, um homenzinho de cabelos e barba branca, com um enorme chapéu a cabeça, carregando nos ombros uma enorme arca. Cantando, dançando e dando risadas feito um doido.