Unidos pelo sangue

Vernon Liddiard escutou educadamente, enquanto a representante do chefe de polícia lhe comunicava o que parecia ser uma ideia ruim para uma campanha de relações públicas.

- Nem sei por onde começo... - disse por fim, reclinando-se em sua cadeira de rodízios quando a mulher parou de falar e olhou para ele em expectativa.

- Veja, inspetor, não o estamos obrigando a nada - prosseguiu ela. - Mas o chefe Goodman gostaria de poder contar com a sua colaboração nesta iniciativa.

Liddiard aprumou-se no assento e encarou a interlocutora:

- Só me explique uma coisa, Veronica... é Veronica, não é?

- Sim, Veronica - repetiu a mulher.

- Pois vamos resumir o que ele propõe: que eu faça doações de sangue regulares, para salvar pessoas que de outra forma vão morrer?

Veronica balançou afirmativamente a cabeça.

- Mas essas pessoas VÃO morrer! - Exasperou-se Liddiard. - De uma forma ou de outra!

Ela parecia estar esperando por aquela reação.

- Pois, para alguém que morreu há mais de 100 anos, o senhor me parece muito bem, inspetor - declarou ela.

Liddiard suspirou.

- A Comissão de Ética Médica aprovou essa... experiência? - Indagou por fim.

- Aprovou porque sabem que funciona - Veronica admitiu. - Há uma pressão de cima, dos altos escalões do governo, para que essa iniciativa vá adiante... afinal, isso poderia prolongar a vida de pessoas que ainda podem ser extremamente úteis à sociedade.

"E que continuariam trabalhando por toda a eternidade", refletiu melancolicamente ele. Ou até que resolvessem pôr um fim à própria existência, embora o forte espírito de autopreservação dos "convertidos" quase sempre evitasse este desfecho trágico.

- Mas porque Goodman me citou, especificamente? - Inquiriu, para evitar pensar em coisas sombrias.

- Porque o senhor é um homem bom, inspetor - reconheceu ela. - Já que a vida daqueles que poderá vir a salvar estarão ligadas à sua, o chefe Goodman resolveu indicar o seu nome à equipe do doutor Murphy, responsável pelo projeto. Murphy achou que poderia ser uma contribuição valiosa.

Liddiard pensou que aquela declaração era uma meia verdade. Ele nunca tivera alguém "convertido" por ele, embora estivesse ligado ao seu doador, Hersten, assassinado anos atrás. Os laços que o uniam ao homem que evitara que ele morresse, após ser baleado numa perseguição policial, eram fortes ao ponto de saber onde Hersten estava, num raio de duzentos metros ao redor, mesmo que não pudesse vê-lo. E quando próximo de Hersten, era capaz de perceber o que este sentia, sem qualquer troca de palavras. Sem dúvida, o próprio Hersten deveria sentir o mesmo ou quiçá algo ainda mais forte. Perguntou-se como seria ter um grupo de pessoas ligadas a ele por este vínculo sobrenatural.

- Eu não estou dizendo que aceito a proposta de Goodman... preciso de um tempo para pensar - disse por fim. - Mas também me reservo o direito de saber a quem estarei... ajudando. E, obviamente, não pretendo morder ninguém!

- Ninguém iria lhe propor isso, inspetor - replicou Veronica, aparentemente chocada com a ideia de Liddiard indo direto na jugular de voluntários indefesos. - Amostras do seu sangue serão retiradas... e aplicadas diretamente nos pacientes. O doutor Murphy também deseja testar a possibilidade de que o seu sangue possa apenas curar as doenças, sem transformar os receptores em vampiros.

Liddiard ergueu os sobrolhos.

- Bom, se eu for participar da experiência, creio que é melhor torcer para que eles se tornem exatamente como eu, não é? - Ponderou. - Caso contrário, é bem provável que o governo me converta num doador compulsório de "soro da eterna juventude". Seria uma existência realmente desagradável, como pode imaginar.

Veronica assegurou-lhe que haveria uma cláusula no contrato da pesquisa médica, que lhe asseguraria o direito de interromper sua participação no mesmo a qualquer momento. Aquilo quebrou as últimas das suas resistências.

Quando Veronica saiu do seu gabinete, já quase perto da meia-noite, Liddiard percebeu que algo, em sua natureza mais recôndita, estava feliz pela perspectiva de ter outros ligados a ele pelo sangue.

"Quase como se fossemos uma família", pensou, recostando-se em sua cadeira. "Uma família de sangue".