Como um licor

Diante da porta do apartamento 302, Vernon Liddiard hesitou. Não costumava bater na porta de estranhos à noite - a não ser que os estranhos estivessem sendo investigados, o que não era o caso. Pensou também que seria mais simples enfiar o cartão-postal por baixo da porta e ir embora, para que a destinatária o encontrasse na manhã seguinte. Ou, talvez devesse ir até o térreo e entregar o cartão ao porteiro da noite, mas a ideia de que estaria possibilitando que outra pessoa lesse o que estava escrito no verso da correspondência, mesmo que em francês, o desagradava. Embora, naturalmente, isso não fizesse o menor sentido, já que o postal circulava sem envelope, e dezenas de pessoas no serviço postal já deveriam ter lido o que havia sido escrito nele, desde que o remetente o enfiara numa caixa de correio em Paris, uma semana antes. Suspirou e apertou a campainha; já que descera até ali, melhor terminar o que começara...

A porta abriu-se de supetão e ele viu-se diante da moradora do 302, uma mulher nos seus 50 anos ainda em boa forma, bobes no cabelo louro platinado, um robe de flanela mostarda sobre a camisola, amarrado na cintura. Ela levou a mão a boca, parecendo surpresa ao vê-lo.

- Oh, é o senhor... - tartamudeou.

- Vernon Liddiard, seu vizinho do 502 - identificou-se. - Desculpe vir tão tarde, mas cheguei em casa agora, e vi que o porteiro do dia colocou isto por baixo da minha porta. Imaginei que talvez estivesse aguardando por esta correspondência.

E estendeu o postal para a mulher, que o recebeu com uma expressão um tanto desconsolada ao ver o nome do remetente e ler o que estava escrito; finalmente, balançou a cabeça como que num gesto de aceitação.

- Sim... eu já imaginava que fosse isso. Ele não vai vir, prefere ficar em Paris com a família.

- Bem, está entregue; boa noite - disse Liddiard, que era a discrição em pessoa e não queria se meter em assuntos de terceiros, mas a mulher tinha outros planos.

- Espere!

O inspetor, que já se virava para voltar ao hall dos elevadores, interrompeu o gesto.

- Posso ajudá-la em mais alguma coisa, senhora Mueller? - Indagou protocolarmente.

- O senhor acabou de chegar do trabalho, e se deu ao trabalho de vir me trazer estas... novas. Permite lhe oferecer um drinque?

A mulher não estava se oferecendo, avaliou analiticamente Liddiard; aparentemente, só queria um ombro para desabafar. Ele mesmo, às vezes se sentia muito solitário, e nem sempre encontrava alguém acordado disposto a jogar conversa fora.

- Bem, eu não bebo, senhora Mueller... - alertou.

- Tem alguma outra coisa que eu possa fazer para você? Quero dizer... se não bebe, talvez queira fazer um lanchinho - indagou ela, parecendo agora um tanto solícita demais.

Liddiard semicerrou os olhos. "Fazer um lanchinho" parecia um convite cifrado, embora ele ainda não houvesse captado o que havia por trás das palavras. Decidiu testar a profundidade da água onde teria que entrar:

- Tampouco estou com fome, senhora Mueller...

- Lori, senhor Liddiard. Por favor. Não sou tão velha assim.

"Eu sim", pensou o inspetor, com uma ponta de amargura.

- Certo, Lori... então, me chame de Vernon. Bom, eu ia esquentar a minha sopa; se quiser conversar um pouco, eu vou lá buscar, e depois você me convida para entrar um pouco, caso sofra de insônia.

Agora quem hesitava era ela.

- Ah, tem esse negócio do convite...

Ele fez um aceno positivo de cabeça.

- Se quiser que eu entre, terá que me convidar. Formalmente. Se está receosa, continuo aqui, na porta.

Lori Mueller se encheu de coragem.

- Por favor... entre Vernon.

- Agora? - Ele ergueu os sobrolhos, sentindo que mais prudente seria preencher o vazio que sentia no estômago.

- Agora - ela reforçou o convite.

Ele cruzou o limiar invisível que separava o interdito do permitido e viu-se dentro do apartamento da mulher. A mobília provavelmente pertencera aos pais dela, mas ao menos tinha um certo charme atemporal.

- Importa-se de que eu beba? - Indagou Lori Mueller.

- De forma alguma - redarguiu ele.

Ela pegou uma dose de uísque, enquanto ele se sentava num sofá de veludo de três lugares. Não se surpreendeu quando ela se sentou na outra ponta, não muito longe dele, copo na mão; colocou o postal entre eles, verso para cima.

- Esse homem, Marcel... - ela apontou o postal, depois de tomar um gole de uísque. - Nós começamos um relacionamento, tempos atrás... ele é francês, representante comercial. A gente costumava se encontrar quando ele vinha a negócios.

- E você sabia que ele era casado, imagino - ponderou o inspetor, tentando imaginar até onde ela pretendia chegar.

- Sim, ele nunca me escondeu isso. Mas, estava tudo bem. Ele me dava atenção enquanto estava aqui; havíamos feito planos para este mês, mas parece que a esposa tinha outras ideias. Ele não vai vir.

- Compreendo.

Lori tomou mais um gole de bebida.

- Você já foi casado, Vernon?

Ele fez um gesto afirmativo.

- Há muito, muito tempo. Ela morreu.

Uma expressão de simpatia surgiu no rosto de Lori.

- E você ficou sozinho desde então... sem ninguém para compartilhar essas noites solitárias?

"Ah, então era disso que se tratava", preocupou-se Liddiard.

- Você não tem ideia do que está falando, Lori - alertou-a. - Não é uma bênção, é uma maldição.

Ela virou a cabeça sobre um ombro, de um jeito que parecia coquete, mas que destinava-se apenas a deixar o pescoço bem visível para ele. Ele sentiu a boca salivar; o animal dentro dele estava com fome.

- Qual foi a última vez em que você mordeu um pescoço como esse, Vernon? - Indagou Lori baixinho, num tom sedutor.

Liddiard não quis correr o risco de dar a resposta que ela gostaria de ouvir. Antes que seus instintos o dominassem, saiu correndo do apartamento. Não esperou pelo elevador e subiu correndo as escadas. Já em casa, trancou a porta e ficou um tempo ali parado com as costas contra ela, o coração aos pulos; quando se acalmou, acabou de tomar os últimos goles da sopa negra que levara na garrafa térmica para o trabalho e pôs uma panela com o mesmo conteúdo para ferver no fogão. Depois de ter batido uns dois pratos fundos, sentiu-se um pouco mais aliviado, embora envergonhado. Como pudera deixar ser manipulado daquele jeito?

Quando despertou, após o crepúsculo, haviam passado um bilhete por baixo da porta. Era de Lori, naturalmente: "desculpe pela noite de ontem. Você pode voltar quando quiser para conversar, prometo que não vou tentar te paquerar novamente". E num P.S. após a assinatura: "a não ser que você queira, é claro".