Vampira

É difícil transcrever o que sinto. Mais difícil ainda o que acontece comigo.

Mesmo assim, irei tentar. Como se uma maldição assolasse minha alma, por um motivo que sinceramente eu desconheço. Nem mesmo ideia eu tenho do que pode ser.

Acontece sempre à noite. Aliás, desde que isso tudo começou, a noite não tem sido mais uma boa companheira para mim, embora eu sempre esteja ansioso para que ela chegue. O motivo disso, eu também não sei explicar. Ansiosamente aguardo o anoitecer e quando isso ocorre, sinto que minha alma já não mais me pertence, mas sim a ela.

Sim, estou falando dela. Daquela criatura desgraçada, que vem da escuridão da noite para atormentar meu espírito e aos poucos levar minha vida. O mais incompreensível é o quanto desejo sua chegada. O porquê disso eu também não sei.

É sempre assim. Deparo-me diante do espelho em uma fria madrugada de inverno, já completamente vestido. Tento concentrar-me no que estou fazendo, mas não consigo. A única coisa em minha mente é a imagem daquela criatura maligna, linda e sedutora, enquanto me preparo para um encontro com ela.

Antes de sair de casa, seguro com minhas mãos meus lençóis e percebo que estão encharcados. É sempre assim quando ela me chama e tento resistir em meus sonhos para não encontrá-la mais uma vez. Mas ela sempre vence.

Pela avenida então eu caminho. Mesmo sendo uma das vias mais movimentadas da cidade, está misteriosamente deserta. Não tenho companhia alguma, nem mesmo o medo quis sair à noite comigo. Mesmo com uma neblina que não permite enxergar nada diante dos olhos, exceto a fraca luz das lâmpadas de fósforo do canteiro central, vago sem medo e aparentemente sem rumo definido, conduzido apenas por um mórbido instinto que sempre brota do nada, mandando-me seguir sempre em frente.

Está frio, acabo de cruzar a fachada da Igreja e a sensação de impotência aumenta. Por mais que estivesse diante de um local sagrado, aquela força maligna me domina. Meu olhar para a Igreja está para quem pede ajuda a alguém, mesmo desacreditando que ela possa vir. Tenho vontade de agarrar-me às grades, mas simplesmente não consigo desviar a direção de meus passos.

Então do nada ela aparece. O vulto formado por seu vestido negro justo ao seu corpo esguio e cabelos que escorrem por seus ombros surge em meio à névoa sobre uma das lâmpadas amareladas que tornam a visão mais turva. Aos poucos de maneira silenciosa ela se aproxima, sem preocupar-se em se expor, pois sabe que não há ninguém para presenciar seu aparecimento, exceto eu. Não é coincidência, a noite é dela e com ela faz o que bem entender.

Sua imagem torna-se cada vez mais nítida aos meus olhos. E como é linda. Sua beleza não permite que minha atenção seja desviada para outra coisa, senão a aproximação de seu formoso rosto de lábios finos e vermelhos, finas sobrancelhas e olhos negros, desenhado por um suave e aterrorizante sorriso.

Não consigo pensar em nada e somente naquele momento começo a sentir medo. Não é minha consciência que o sente, mas minha alma. Agora sim, tenho a certeza de que esta não mais me pertence.

Ela joga comigo, como se não bastasse minha alma, aprisiona também meu coração e faz de meu corpo seu brinquedo. Me envolve em seus braços com uma mistura de morbidez e doçura em sua voz quando sussurra em meu ouvido: “Boa noite meu amor”.

São estas as únicas palavras que saem de sua boca.

Minhas mãos formigam e deixo de sentir minhas pernas. Um misto de tesão e medo faz meu corpo estremecer deixando-me sem forças e de joelhos ao chão. Ela me acompanha e ajoelha-se apoiando minha cabeça ao seu colo onde sinto o gelo de seus belos e pálidos seios à mostra no decote em meu rosto. Com sua mão macia e gélida, suspende delicadamente meu queixo e beija-me, meus olhos são forçados a cerrarem-se quando minha tremedeira é cessada. O medo finalmente me deixa e demoradamente ela me beija sem deixar-me qualquer noção do tempo em que estivemos naquela situação. Então ela distancia seu rosto do meu e começo a sentir aquela ardência em meus lábios. Mais uma vez a acidez de seu beijo me machucou. Sinto meu sangue escorrer pelos contornos de minha boca.

Com dificuldade abro meus olhos, estando só ao chão, vendo aquela desejável criatura da noite se afastar da mesma forma que se aproximou. Tento estender minha mão e balbuciar algo para que volte, mas minhas forças não permitem. Então percebo que mais uma vez ela me usou, tomando minha vida de forma vagarosa a cada beijo seu, não sei se por prazer ou simplesmente por amor. Acho que ela me ama, ela tem que me amar. Caso o contrário, por quê eu?

Adormeço na calçada daquela via em meio a suas brumas até que os primeiros raios de sol me despertem. Com dificuldade me coloco em pé e volto para casa para retornar minha rotina diária. Um banho, roupas limpas e um pouco de comida me deixam pronto para as intempéries de mais um dia de trabalho, enquanto espero ansiosamente a próxima noite em que ela irá me chamar...

Lupus Noctem
Enviado por Lupus Noctem em 04/10/2024
Reeditado em 04/10/2024
Código do texto: T8166278
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