Anjo da noite
Odeio 12 de junho.
Odeio!
Ai, que ódio! Quando vou poder me sentir normal? 19 anos e sem namorado.
Droga, mais um Dia dos Namorados... sozinha! Deveria ter me acostumado já, mas aí me pergunto: acostumada com o quê, se eu nunca tive um namorado? Nem tô falando de beijinho, amasso, ou mesmo de transar, até porque nem sei o que é isso ainda. Eu só queria um namorado, uma companhia, um colinho, alguém que segurasse a bacia de pipoca. Impossível não pensar que o problema sou eu mesma. Aí me olho no espelho: será que é por isso? O meu cabelo azul, batom roxo, meia arrastão, saia rodada, coturno, piercing no supercílio...
Ah, que se dane! A mãe já disse que é esse meu visual que afugenta os guris, que sou muito louca, barulhenta. Ela só não sabe que nenhum daqueles grupinhos de nojentinhas do colégio me aceitou até hoje, e que sempre tive pouquíssimos amigos. Sempre fui a “estranha de aparelho”, com a cara cheia de espinhas, óculos e gorda e, por conta disso, eu tinha que me defender, achar meu espaço e minha identidade. Em algum buraco, eu tinha que me esconder.
Se bem que, isso foi há quatro ou cinco anos. Tá certo, muita coisa mudou. Até que estou aceitando meu corpo agora, ao menos gosto do que vejo no espelho. Meu bumbum até que fica bonitinho, com uma calcinha fio dental. O aparelho ortodôntico e as espinhas, não passam mais de lembranças horrorosas do meu passado recente.
Acho que realmente mudei um pouquinho, e para melhor. Ao menos é que o espelho e os likes nas redes sociais dizem... Ao menos.
Mas então, por que diabos estou sozinha? Não posso ser tão assustadora assim, não sou de outro planeta.
Ai, como eu queria ter o Stefano para mim! Não tem como não sonhar com aquele garoto. É fácil reconhecer ele, chegando no clube. Sempre dou um jeito de sair uns minutos antes da academia para ver aquele estilo desportista, de agasalho e mochila, indo em direção ao vestiário da piscina. Ele é lindo! Usa óculos, adoro garoto que usa óculos. E quando ele tira os óculos e fica só de sunga quando vai nadar então, nossa! Só me resta morder os lábios e sonhar.
Como eu queria aquele moleque para mim. Mas...
O jeito é fazer essa noite, dos infernos, passar logo. Eu odeio o Dia dos Namorados!
- Boa noite mãe, durma bem. Sim, não vou esquecer de deixar a luz do corredor acesa. Vou ficar um pouco acordada lá no quarto, estou sem sono. Vou ver se acho alguma coisa para fazer. Beijo.
Vou ligar essa porcaria de notebook. Ouvi dizer que aqueles chats das antigas, que a mãe acessava, ainda existem. Quem sabe eu dê umas risadas e faça essa porcaria de noite passar logo. Vamos ver aqui: Chat... Salas... Sei lá... Solteiros...? Ah, vai ser essa. Meu nickname vai ser, deixa ver... “Freyja”! Pronto, foi... vamos ver o que eu encontro aqui.
Imediatamente, alguém da sala me chama. Então, inicio a frenética digitação das conversas de forma mnemônica desrespeitando toda e qualquer regra gramatical.
Prisco: “Boa noite, quer tc”?
Freyja: “oi, boa noite. Claro pq não?”
Prisco: “Muito bem, de onde você é?”
Freyja: “Porto Alegre, RS, e vc?”
Prisco: “De vários lugares, nesse momento estou em Lisboa”
Freyja: “Aaah então vc é português?”
Prisco: “Não não. Apenas por um tempo aqui”
Freyja: “hum, idade?”
Prisco: “Pareço com um homem de uns 30 anos”
Freyja: “como assim, parece?”
Prisco: “Sou mais velho do que aparento”
Freyja: “Aah sei. Casado?”
Prisco: “Já fui, muitas vezes.”
Freyja: “nossa. como assim? Não deu certo com nenhuma?”
Prisco: “Rssss, mais ou menos. Eu penso que sim, deu certo muitas vezes. Ao mesmo tempo que não. E vc? Solteira?”
Freyja: “sim, encalhada rssss. tô nessa sala por causa disso. Em pleno 12 de junho sem ninguém. que ódio. que raiva. todas minhas amigas com namorado menos eu. Ai...desculpa, tô chateada. desculpa o desabafo.”
Prisco: “Está tudo bem. Imaginei que algo do tipo tivesse passando com você. Uma menina em pleno 12 de junho numa sala de bate-papo”
Freyja: “como sabe que ainda sou menina?”
Prisco: “Desculpe, apenas supus. Mas vou tentar adivinhar. Você deve ter uns 20 anos.”
Freyja: “sim, 19. Vc tá fazendo o que aqui?”
Prisco: “Meus hábitos são noturnos. Optei por viver a noite de forma plena.”
Freyja: “uau, então estou falando com um vampiro? Rssss”
Prisco: “E se eu fosse? Me responda uma coisa: por que Freyja?”
Freyja: “deusa da magia”
Prisco: “Ah sim, o panteão nórdico”
Freyja: “Simmmmm. Acho que já sacou minha vibe, ne?”
Prisco: “Sim, é moda hoje ser viking. Aqui ne Europa também é uma febre entre os jovens.”
Freyja: “e vc? o que significa seu nickname?”
Prisco: “Meu o quê?”
Freyja: “seu apelido. o q significa Prisco?”
Prisco: “Sim. Na verdade, não é apelido. É meu nome mesmo. Acredito que tão diferenciado, não haveria problema em usá-lo. Até mesmo porque não há o que esconder.”
Freyja: “então é seu nome?”
Prisco: “Sim, meu nome é Prisco. Muito prazer.”
Freyja: “igualmente, mas não vou dizer meu nome rsssss. ta diz aí, como assim viver a noite?”
Prisco: “Me sinto mais confortável a noite para trabalhar, ler, conversar”
Freyja: “trabalha com o que:”
Prisco: “Minha família tem muitos negócios. Temos muitos imóveis aqui pela Europa. É de onde vem meu sustento”
Freyja: “Humm, tá. mas não entendi algumas coisas. perguntei que idade tinha e vc não falou. agora esse papo de negócios da europa. olha, se quer tirar onda, tô caindo fora. o jeito como escreve ta parecendo um guri de poa mesmo.”
Prisco: “Sim, entendi você. Não estou zombando. Vou tentar explicar. Morei em muitos lugares, inclusive no Brasil por muitos anos. Nasci na Alemanha, mas tenho muitas nacionalidades. E minha idade, se eu lhe contasse acho que não iria acreditar.”
Freyja: “pq não? mas se não quer falar, td bem. então me diz: como você é?”
Prisco: “Fisicamente?”
Freyja: “Sim”
Prisco: “Depende”
Freyja: “como assim?”
Prisco: “Depende da pessoa e do que sinto por ela. Se gosto dela chego a parecer um anjo. Caso o contrário, minha aparência pode chocar.”
Depois de mais de hora de conversa, por algum motivo súbito, o tom das palavras daquele cara cujo pseudônimo – ou nome real - era “Prisco” mudaram de uma forma leve e agradável, para uma sombria e apavorante. Parei uns minutos, com os olhos vidrados no monitor, lendo e relendo aquela última mensagem. Aquilo mexeu comigo. Não sei se esse cara estava tirando onda, mas sei que atiçou minha curiosidade e agora, gostaria de ir mais longe e descobrir o máximo dele.
Freyja: “nossa, me assustou. se descreva vai. fiquei curiosa”
Prisco: “Se eu me apresentasse a você, veria um homem alto de pele clara. Tenho em torno de 1,85m e meu porte é atlético. As mulheres que me conheceram me consideravam muito atraente”
Freyja: “xiii, pelo visto tem gente que se acha. qual a cor de seus olhos, castanhos, azuis, verdes”
Prisco: “Nenhuma dessas cores”
Freyja: “ah não inventa. Vai me dizer que são vermelhos que nem um vampiro agora?”
Prisco: “Não não, rsssss. São cor de âmbar.”
Abro uma página em paralelo, no browser do notebook, para pesquisar e ver o que são olhos cor de âmbar. Nossa! Que lindos!
Freyja: “uau! Que lindo. Pesquisei aqui.”
Prisco: “Obrigado, é herança genética. A aldeia onde nasci predomina essa característica”
Freyja: “qual sua idade?”
Prisco: “Que tal falar um pouco de você agora? Mora sozinha?”
Freyja: “não, moro com minha mãe.”
Prisco: “Você não tem pai, não é?”
Freyja: “como sabe?”
Prisco: “Apenas um palpite, a considerar que você disse morar com sua mãe. Logo deduzi a ausência do pai.”
Freyja: “sim, mas morar com a mãe não significaria que não teria um pai, eles poderiam ser separados”.
Prisco: “Como disse, foi um palpite”
Freyja: “tudo bem”
Prisco: “Pode falar sobre isso? Sobre não ter um pai?”
Freyja: “ah pra mim é tranquilo. não sinto tanto pq nunca tive. não conheci meu pai. minha mãe também não fala sobre ele, eu pergunto, mas ela nunca responde então não forço. pq esse interesse todo?”
Prisco: “Nada demais, não se assuste. Eu gosto de ouvir a história das pessoas, apenas isso. Fale mais de você. Descreva sua personalidade”
Freyja: “tá bem. sou uma nerd um tanto anti-social pq nem tenho muitos amigos, gosto de ler, de assistir filmes, curto um som pesado.”
Prisco: “Heavy Metal”
Freyja: “yes. Gosto de um som pesado e denso, melancólico. Tipo Lacuna Coil, Tristania, Within Temptation e Nightwish”
Prisco: “Desculpa, estou bastante desatualizado. Nunca parei para apreciar esse estilo, tampouco sou familiarizado com os artistas desse meio.”
Freyja: “são estilos de música gótica. Sabe anjos da noite, trevas, frio, lua cheia, vampiros, etc.”
Prisco: “Ah, sim a escola ultrarromântica. Como os contos de Edgar Allan Poe”.
Freyja: “vc tb curte Alla Poe?”
Prisco: “Já li alguns textos dele”
Freyja: “show”
Prisco: “Então aprecia a subcultura gótica?”
Freyja: “gosto da estética. me visto um pouco assim. se me visse no dia a dia pensaria que eu saí de uma capa de um cd dessas bandas. Kkkkkk. mas não se preocupe, só me visto como uma vampira, não mordo.”
Prisco: “Tenho certeza disso. O que sabe sobre eles?”
Freyja: “quem”
Prisco: “Vampiros, você disse que adora se vestir como um”
Freyja; “ah sim, ao menos como a gente ve em livros e cinema. é como eu disse antes, gosto da estética apenas. Pq? Vai me dizer que eles existem agora”
Por uns instantes, fiquei com um pouquinho de medo. Não tinha como não fantasiar certas coisas, depois daquela pergunta que ele me fez. “O que sabe sobre eles?”.
Então, um cara de longe que recém conheci numa sala de chat me perguntou uma coisa dessas, no início de uma madrugada. Só podia me dar um arrepio na espinha. Mas, ao mesmo tempo em que me assustei, uma certa excitação me tomou conta, como se quisesse saber um pouco mais sobre aquele homem e iniciar uma pequena aventura entre as palavras. Era um papo gostoso, porém havia uma nítida diferença entre nós. Dava para perceber o quão mais velho ele era, em relação a mim, e como ele estava um tanto desconexo com os assuntos da atualidade. Parecia alguém que se trancou anos numa biblioteca, mesmo que sua forma de se comunicar pelo chat não deixasse tanto a desejar, como se já tivesse uma certa “tarimba” daquele ambiente.
Prisco: “Os vampiros de certa forma existem sim. Mas não como aqueles descritos na literatura. Eles não viram morcego e nem bebem sangue. Mas se alimentam de outras coisas”
Freyja: “interessante, mas como assim?”
Prisco: “É que na verdade, o conceito de vampiro é o de um ser que se alimenta das essências vitais de outros seres, não necessariamente sangue. Nesse caso, existem muitos vampiros emocionais e psíquicos. Eles podem roubar de você muitas coisas, inclusive a vontade de viver das pessoas”
Freyja: “credo, eu hein. como sabe de tudo isso. vc curte vampiros também, pelo visto.”
Prisco: “Não“curto” essas pessoas, pelo contrário. Afinal, elas foram más, e pela maldade elas mantém-se vivas”
Freyja: “acredito.”
Prisco: “Talvez não acredite, mas sou um vampiro”
Freyja: “hein? tá bem. fez bobagem então”
É claro, havia entendido a analogia do vampiro como uma pessoa má e, de certa forma, já havia lido algo de que ser um vampiro poderia significar coisas bem diferentes, como pessoas sem escrúpulos, que não dão um mínimo de importância para com as outras pessoas. Mesmo assim, já estava um pouco arrepiada com o rumo da conversa, com aquele indivíduo que aos poucos ia se demonstrando mais misterioso e soturno.
Aí ele me escreve aquilo.
Prisco: “Sim. Já fiz muita coisa de ruim para as pessoas. Estou cansado disso.”
Freyja: “ta me assustando, mas tb fiquei curiosa. pode contar mais?”
Prisco: “Posso sim, é importante para mim compartilhar essa dor. Fiz muitas coisas ruins, garota. Magoei pessoas, enganei pessoas, entre outros pecados maiores que não vou ousar relatar-te. Eu nunca me arrependi de nenhum deles”
Freyja: “será que estou falando com um criminoso?”
Prisco: “Crimes são aqueles atos errôneos aos olhos dos homens. Eu tenho pecados. Enquanto não me arrepender deles, estarei com minha alma ardendo em brasa e àqueles que atingi.”
Agora sim, fiquei com medo. Meu coração disparou. Depois de uns instantes me acalmei, olhei para os lados e percebi que nada poderia acontecer comigo e que eu poderia estar apenas conversando com um espertalhão, se passando por um vampiro, com crise existencial. Então, resolvi continuar aquela conversa me propondo a não demonstrar minha tensão. Agora sim, queria ir mais a fundo e ver onde aquele papo iria chegar.
Freyja: “nossa, como vc é dramático rsssss”
Prisco: “Não teria como me expressar diferente. Mas estou disposto a resolver e aparar essas arestas hoje mesmo, nessa noite. Foram muitos os pecados que cometi durante muitos e muitos anos. Já está na hora de me arrepender deles, menos de um.”
Freyja: “qual?”
Prisco: “Gosta de flores?”
Freyja: “ah não sou lá uma grande apreciadora, mas me agradam”
Prisco: “Que tal rosas brancas?”
Freyja: “rosas brancas?”
Prisco: “Sim, significa beleza e pureza. Nada muito passional, porém não menos delicado”?
Freyja: “que legal, nunca tinha parado para apreciar elas”
Prisco: “Combina com você”
Freyja: “será?”
Prisco: “Tenho certeza disso”.
Freyja: “qual pecado?”
Prisco: “Digamos que foi um roubo”
Freyja: “roubo?”
Prisco: “Está na hora de devolver certas coisas a alguém. Estou farto do meu próprio egoísmo. Vivemos em mundos opostos. Não tenho como sequer tocá-la.”
Freyja: “só podia ser mulher. que excitante. deixa eu adivinhar, vc ama ela, mas ela não”
Prisco: “Não, ambos nos amamos. Mas minha possessividade doentia praticamente a amaldiçoou. Eu sou um ser das trevas garota, não percebeu ainda?”
Freyja: “nossa, amaldiçoou!!!! pelo visto sua autoestima está mais baixa do que a minha”
Prisco: “Não se trata de autoestima. Se trata de reconhecer os erros e admitir o inevitável. Quanto a ti, posso garantir que tua autoestima não será mais problema em breve”.
Freyja: “rsssss amém parceiro”
Prisco: “Acho que está bastante tarde. Você precisa descansar”
Freyja: “nem tanto. podemos continuar o papo. gostei de você. é bastante misterioso. além do mais, nunca conversei com um vampiro antes, rsssss.”
Prisco: “Acredito. Preciso lhe dizer algo, já que estamos nos despedindo”
Freyja: “ah já vai? pelo visto não é bem eu que estou cansada. Mas pode falar”
Prisco: “Pode parecer que nada tu possas fazer, mas ao menos saber sobre meus arrependimentos para mim é o suficiente: a todos que mal eu causei peço o perdão. Me arrependo de cada um deles, menos de você”.
Freyja: “tá bem. Não entendi o que quer dizer, mas tudo bem. Viu, gostaria de conversar mais vezes contigo.”
Prisco: “Se assim desejar, poderemos sim Não sabe o prazer que terei. E Serei muito grato a ti por isso”.
Freyja: “Mas mata minha curiosidade”
Prisco: “Pergunte”
Freyja: "quem foi esse seu grande amor?"
Prisco: “Era uma moça linda que errou. Sem saber ela cultuava o mal. Digamos que ela era uma bruxa. Uma bruxa que não soube enxergar a linha tênue entre o bem e o mal da magia que ela começou a praticar percorre. Eu apareci na vida dela por causa disso. Elas me chamam e para elas eu apareço, como em inúmeras outras vezes. Roubei seu coração e sua alma e hoje ela sofre. Eu não podia ter feito isso com ela. É só isso que posso dizer, o resto creio que você não irá compreender.”
Freyja: “ultima pergunta Prisco, sua idade?”
Prisco: “318”
Freyja: “??????????”
Silêncio. Não sabia o que dizer. Já não sabia se estava diante de um esquizofrênico, de um fanfarrão ou de um apaixonado cheio de metáforas e retóricas.
O despertador do celular tocou avisando já 6h30min da manhã. Havia esquecido com o despertador ativado, mesmo que hoje viesse a ser domingo e, portanto, sem compromisso matinal algum. Me vi só de calcinha e debaixo de meus edredons. Algo normal, a considerar que durmo desse jeito todos os dias. Comecei a me despertar, preguiçosamente, aos poucos me lembrando de um bate-papo estranho e misterioso. Imediatamente, procurei com os olhos meu notebook que repousava desligado sobre minha escrivaninha. Aos poucos ia me lembrando de detalhes, de palavras, de reações...
Mas, foi apenas um sonho.
Não havia nenhum sinal, nenhum rastro digital, nada. A sala de chat sequer existe. Nenhum...Como era mesmo? “Priscos”. Sim, esse era o seu nome.
- Bom dia, dorminhoca.
- Bom dia, mãe. Como você está diferente?
- Como assim, filha?
- Mãe, nunca te vi com esse sorriso. Nossa mãe, como você está bonita, está brilhante.
Era uma manhã de domingo. Um domingo muito diferente. Minha mãe estava, de fato, com um semblante lindo e brilhante como eu nunca tinha visto antes. Aquele sonho maluco não saia da minha cabeça e ver minha mãe daquele jeito, só atordoou mais meus pensamentos.
Também, pudera. Via minha mãe desde sempre melancólica e deprimida. Diagnósticos de Ansiedade e Síndrome do Pânico, segundo psiquiatras. Desde criança a vejo entre idas e vindas a consultórios médicos e psicólogos sob muita medicação. Penso inclusive que, se minhas atitudes ou posturas são rebeldes e sou completamente fora do esquadro social, talvez seja porque tudo o que passei durante a minha vida junto a mãe.
Ah, mãe, que exemplo... minha rainha! Professora de mão cheia, batalhadora e de um caráter sem igual. Todas as virtudes que procuro numa mulher, senão sua constante e aparentemente eterna tristeza. Por que ela não abre o jogo para mim? Por que não conta suas mais profundas aflições? Eu bem que já tentei, mas em vão. Mas hoje nada disso mais importa. Ali, em minha frente, poderia jurar que estava vendo uma nova mulher, minha nova mãe, aquela que nem nas mais profundas orações ao Anjo da Guarda – a única oração que ela me ensinou – eu poderia ousar em pedir. Ali estava ela, como se acordasse de um grande e profundo pesadelo.
Resolvi, apenas, observar. Então, ela se dirige novamente a mim.
- Filha, eu estava pensando: acho que podemos nos aproximar mais. A gente pode começar a conversar mais né?
- Por que diz isso mãe, que estranho você pedir isso...
- Nada demais. Parei para pensar e acho que perdemos muito tempo afastadas. Acho que, eu mesma perdi muito tempo. A tristeza me cansou. Além do mais, penso que podemos e devemos ser amigas. Você já é uma mulher, e eu não vi você crescer.
Sim, isso era verdade. Não nos falávamos, apesar de sermos apenas nós duas, a vida inteira, dentro daquele apartamento. Minha mãe se afundava em seu trabalho, com muitas pesquisas e orientações a alunos e bolsistas, dando pouca ou apenas a necessária atenção para que eu me mantivesse nos eixos. Eu percebia que ela sempre desejava me dar mais carinho, mas alguma coisa a impedia. O trabalho era apenas uma fuga para ela de algo que nunca compreendi, mas que a assombrava por todo o sempre. A referência masculina para mim, nunca existiu em meu lar. Nunca conheci meu pai e e minha mãe nunca falava dele se recusava a isso, além de nunca ter demonstrado interesse em algum outro homem. Talvez nunca a tivesse questionado de forma mais severa por ser criança, e toda e qualquer resposta bastaria. Mas agora eu tinha 18 anos e não engoliria qualquer bobagem.
No entanto, e a partir daquele momento, minha mãe passou a demonstrar um interesse e um carinho por mim como nunca. Eu passei a ficar assustada, sem entender absolutamente nada com relação a essa mudança. Todavia, devo admitir que, o que estava acontecendo em nossa casa era tudo o que eu mais desejava.
As surpresas daquele dia não acabaram por aí. Era por volta das 20 horas quando minha mãe veio até mim e, com um beijo em minha testa, me desejou boa noite, recolhendo-se ao seu quarto. Isso foi muito estranho, porque, em primeiro lugar, ela nunca dormia antes da 01 hora da madrugada. Em segundo, ela nunca deixaria a luz do corredor apagada, tampouco a porta de seu quarto fechada. Porém, assim estava. A sensação era de que encontrou uma paz antes perdida, até mesmo para uma simples noite de sono.
O amanhecer de segunda-feira é como o anterior: estranho, porém, não menos prazeroso. Nunca tive a companhia da minha mãe no café da manhã, mas dessa vez lá estava ela. Cabelo amarrado com um rabo de cavalo e um semblante sereno e altivo. “Nossa, como minha mãe é linda”, logo pensei ao vê-la daquele jeito.
- Bom dia, mãe. Tô indo. Beijo!
Já eram 13 horas e 15 minutos. Indo para a aula de inglês com meus inseparáveis fones de ouvido, vejo passar aquele garoto maravilhoso!
Ai, como eu queria aquele nerd, de óculos e tudo. Como pode um garoto tão lindo ficar mais lindo de óculos? Ah, como eu o queria para mim. Mas, como sempre, ele passará por mim e sequer notará minha existência. Definitivamente, não é para ser meu. Talvez “eu” não seja para esse mundo.
Mas, hoje não!
Stefano não passou por mim, senão vindo diretamente até mim. Pensei, por um momento, que seria por algum motivo bobo, talvez pedir uma informação ou um simples favor, mas não. Eu já havia ouvido sua voz, mas daquela forma, me deixou completamente surpresa, para não dizer embasbacada:
- Oi!
E, eu respondi:
- O...Oi!
- Ah, desculpa,... É que.... Bom, não sou muito bom nisso sabe, mas...
- Tá tudo bem, Stefano?
- Tá sim, é que... Bom... Fazia tempo que queria conversar contigo e...
Agora sim. A cereja do bolo. Não me faltava mais nada. Nunca na minha vida, imaginaria isso acontecer. Quando iria eu imaginar o quanto ele poderia ser introvertido e encabulado? Então, percebi que deveria agir de forma que ele ficasse o menos possível sem jeito.
Ai, fala duma vez guri...
- Sim, pode falar...
- Ah, seguinte: quer ir no cinema comigo amanhã?!
- Eu? Eu?
- É.., sim. Por favor, não dá risada. Nossa, eu tô todo errado!
- Calma, não! Quer dizer, sim. Claro que sim. Gostaria muito!
- Sério mesmo?
- Sim, sério, sério!
- Tá, então... posso passar na tua casa? Eu te busco as 16 horas.
- Você sabe onde moro?
- Sim, sei.
- Como você sabe?
- Não vai pensar bobagem. Mas eu já te segui.
Não! Isso não podia estar acontecendo comigo! Eu só posso estar sonhando! Aliás, o que está acontecendo afinal?
O dia amanhece e mais uma vez tenho a agradável companhia da mãe, no café da manhã.
- Bom dia, filha!
- Bom dia, mãe!
- Viu, eu estava pensando: poderíamos ir ao cinema hoje. Acho que nunca fizemos nada disso e faz anos que não vou a um cinema...
- Ai mãe, puxa eu quero muito, mas pode ser outro dia? Hoje não vai dar, já marquei um cinema com o Stefano.
- Quem?
- Stefano, meu colega de cursinho.
Do nada, minha mãe começa a encher os olhos d’água, sobrepondo sua mão em seu peito fazendo-se emocionar.
- Ai filha!
São 16 horas, toca a campainha. Vou na sacada e lá está ele, abanando suavemente para mim. Ao atendê-lo, sou presenteada com um “oi” seguido daquele sorriso lindo. Mas, ele me traria uma surpresa maior: Stefano estava sem óculos e, por conta disso, somente agora pude reparar em seus olhos. Não eram azuis, nem verdes ou castanhos: eram cor de âmbar.
Tentei disfarçar a surpresa, ao mesmo tempo em que flashes de um sonho maluco são relembrados aos poucos.
- Vamos?
- Sim, vamos! Peraí, deixa eu pegar minha bolsa e retocar o batom. Não te importa com batom roxo, né?
- Não, não (risos). Aliás, é seu charme, sabia? Mas antes, posso te dar um presente?
- Sim, claro.
Não havia reparado, mas Stefano estava com sua mão esquerda para trás desde que chegou. Então a estende:
- Para você!
- Nossa!
Eram duas rosas brancas.
Fiquei sem ação, e não menos encantada. O garoto dos meus sonhos me presenteando com flores. Gente, achei que iria desmaiar! Meu coração quase saiu pela boca.
- Nossa Stefano, são lindas! Mas por quê brancas?
- Não gostou?
- Não, não. Adorei! Amei, amei, amei. É diferente, sabe... e todo o mundo dá rosas vermelhas.
- Sempre gostei de rosas brancas. Não sei por quê. Bem, vamos?
- Sim, vamos. Peraí que vou guardar as flores.
Ele sequer me tocou, sequer conversamos mais do que uma dezena de palavras, e eu já estava em êxtase. Subi aquelas escadas, como se fosse uma criança de sete anos, correndo atrás da mãe. Queria mostrar para ela aquele presente e pegar uma dica de como mantê-las.
- Mãe, mãe, olha o que ganhei!...
Então, vejo minha mãe na sacada, soluçando de tanto chorar. Mas, não era um choro de tristeza e sim de felicidade e satisfação. Sim, era pura emoção e não havia como ela pudesse disfarçar. Notoriamente foi por minha causa. Minha mãe, a bela Izabel, de cabelos cor de fogo e cacheados, que um dia penderam até a cintura, estava emotiva ao ver sua filha finalmente cortejada e agraciada com o mais singelo e emblemático dos presentes.
Nesse momento, comecei a entender as coisas.
- Mãe, o Stefano está lá embaixo me esperando. Pode guardá-las para mim?
- Sim filha, colocarei num vaso com água. Elas são lindas!
- Elas te lembram alguma coisa?
- Sim filha. Como sabe?
- Mãe, você nunca me disse isso antes. Agora preciso saber. Qual era o nome do meu pai?
- Quando vocês voltarem do cinema, eu te conto, Priscilla*.
*Diminutivo do sobrenome romano Prisco, derivado do latim Priscus.