A BELA DA NOITE (uma história de sedução)

 

Tenho por hábito sentar-me todas as noites em minha poltrona giratória reclinável e com apoio para os pés. Coloco-me em posição favorável, defronte à janela ampla do segundo andar do meu velho edifício, já gasto pelo tempo e necessitando urgentemente de manutenção. Mas não penso nisso agora. Meu objetivo real é aguardar a saída daquela que tem intrigado minhas noites solitárias.

Sim, desde que a vi pela primeira vez, cerca de meses atrás, fui impactado. Passei a observar suas excursões noturnas, saindo sempre por volta das 23:30 e iluminando as horas geladas daqui do sul. Magra, alta, esguia, quadris largos, longas pernas bem torneadas, seios insinuantes sob o decote generoso; cabelos escuros descendo até o pescoço, lábios carnudos na cor carmim, profundos olhos negros e amendoados; mãos de longos dedos adornados por unhas bem feitas em tom black piano. Nada escapa aos meus binóculos de longo alcance.

Botas de cano alto, calça justa em couro, blusa cetim escondendo mamilos eriçados pelo frio. Um longo sobretudo cinzento e esvoaçante, solto à frente e desenhando uma silhueta contundente ao observador em posição oposta. Uma deusa, vestida em ébano dos pés à cabeça, me conduzindo inebriado até desaparecer à primeira esquina à esquerda.

Deixo-me recostar à poltrona e coloco de lado os binóculos. Tomo uma decisão. Da próxima noite não passaria. Haveria de segui-la e descobrir seus segredos, ainda que estes me parecessem mórbidos. Sim, boa coisa não seria. Uma bela mulher, vestida de maneira tão insinuante; horários rígidos. A decepção ao deparar-me com seu provável amante noturno certamente me assaltaria. Minhas ilusões se desvaneceriam. Não importa. Antes resolver este mistério e voltar à minha tediosa rotina. Ou será que não?

Tento pensar: o que uma criatura tão bela veria em mim? Acorde, Vladimir… Sim, este é meu nome. Também chamado Vlad pelos mais próximos, ainda que bem poucos. Solteiro, meia idade, sem filhos. Vivendo com meu pássaro de estimação, uma gralha negra a qual um dia desses chocou-se com minha janela e fraturou a asa direita. Penalizado, cuidei da criatura e surpreendi-me ao receber de volta sua presença constante, sempre a fitar-me com seus olhos pequenos e reflexivos.

Então, leitores: este sou eu, e esta é minha história. Ou melhor, a história dela, a bela da noite.

 

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Minha decisão estava tomada, caro leitor. Preparei-me com esmero, vesti um casaco de couro e, munido de meus binóculos, assegurei-me que minha gralha estivesse confortável em sua gaiola. Desci as escadas do meu velho prédio pronto para seguir os passos da misteriosa mulher, mas não sem antes recorrer ao meu velho perfume Dark Blood. Sabe-se lá o que poderia ocorrer? Melhor estar prevenido…

A noite estava fria e silenciosa; posicionei-me em lugar tão discreto quanto escuro e esperei pacientemente a dama de corpo esguio e curvas perfeitas, vestida com seu sobretudo cinza. Como esperado, ela surgiu em meio às sombras da noite, caminhando com ritmo determinado, passos ecoando suavemente na calçada deserta.

Mantive uma distância segura, seguindo-a pelas ruas iluminadas apenas pelo luar. A cada esquina virada sentia meu coração acelerar, misturando-se à frieza da noite.

Finalmente, após uma longa incursão às ruelas da cidade, ela parou diante de um cemitério antigo e o adentrou furtivamente, sem olhar para trás. Fiquei do lado de fora, sentindo uma mistura de medo e frustração. Havia seguido meu objetivo até o fim, mas… e agora? O que ele realmente me revelaria?

 

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Natasha

 

Eu sabia que estava sendo observada, caro leitor, e, para resolver esse probleminha, enviei minha tão querida gralha de estimação, pois precisava certificar-me do que esse homem realmente descobrira. Circe, a gralha, seria meus olhos e ouvidos. Desde a primeira noite em que senti o peso de seu olhar sobre mim, algo mudou. Passei a ajustar meus passos, cuidando para não revelar mais do que necessário, e para não alertar meu observador desconfiado de que eu sabia que me seguia. A cidade, com suas sombras e luzes tênues, tornou-se o palco perfeito para nosso jogo silencioso.

Naquela noite, como tantas outras, vesti-me com cuidado. O couro, o cetim, o casaco longo – cada peça escolhida não apenas para aquecer contra o frio cortante, mas também para criar uma voluptuosa armadura, e, por que não, uma pista de minhas verdadeiras intenções para com meu admirador nada secreto. Queria passar uma imagem poderosa e intrigante, com uma pitada de mistério. Algo que pudesse despertar curiosidade, porém, mantê-lo à distância.

Enquanto descia as escadas do meu prédio, senti novamente aquele odor, aquele arrepio familiar. A sensação de ser desejada, medida. Meu perseguidor estava lá, como sempre, fiel ao seu ritual. Sorri para mim mesma, sabendo que naquela noite o jogo mudaria.

À medida que caminhava para meu destino, ficava cada vez mais consciente da presença que me seguia. Ele estava lá, mantendo uma distância segura, mas não tão longe que não pudesse sentir sua presença, seu cheiro característico. A curiosidade dele era palpável e minha excitação visível.

Finalmente, cheguei ao palco de meus objetivos. Não olhei para trás enquanto adentrava ao antigo cemitério, sabendo que ele pararia ali, hesitante, indeciso. Eu não precisaria vê-lo para saber disso.

Tinha conhecimento de que voltaria para casa, frustrado e intrigado. E assim o fez. Senti quando retornou. Eu também tinha meus segredos, e estava próxima a hora de revelá-los, um a um. O mistério que ele tanto desejava desvendar estava prestes a ficar ainda mais claro. Eu não era apenas uma mulher vestida em ébano. Havia muito mais, e ele logo descobriria.

Espere para ver, caro leitor…

 

***

 

Mudei-me para um velho prédio ao lado do apartamento de Vlad. A cada noite, enquanto ele me observava de sua janela, eu desempenhava um papel com perfeição, sabendo que precisava atraí-lo sem levantar suspeitas. Circe, a gralha negra, minha espiã fiel, me ajudava a monitorar cada movimento de meu alvo.

Finalmente, após anos de observação mútua, decidi que era hora de agir. Naquela noite decisiva, segui minha rota usual até o cemitério, sabendo que Vlad me seguiria mais uma vez. Parei em frente a um mausoléu antigo e esperei. Não demorou muito para que ele aparecesse, hesitante e curioso.

 

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Vladimir (Vlad)

 

Estou raivoso comigo mesmo. Ontem estaquei, não sei bem o motivo. Não tive coragem suficiente para acompanhar minha musa. Senti arrepios e receio do que estaria para ver. Aqui estou novamente, porém. Adiantei-me a ela. Consulto meu relógio de bolso: 23:50. Já estou aqui, cercado por túmulos e lápides; uma sensação de frio no estômago…

Ouço um estalar de galhos secos. Volto-me de repente. A visão é estarrecedora: a bela mulher surge, ameaçadora. Não traja mais o sobretudo. Ostenta um corpo musculoso, atraente, convidativo. Horrorizado, percebo traços sanguíneos em seus lábios, os quais estão preenchidos por presas pontiagudas, de um marfim intenso. O luar revela-me uma imagem nauseante: um corpo inerte de um rapaz moçoilo, por volta de seus vinte anos, extremamente pálido e sem vida, carregado como uma pluma pela mão direita da criatura, a qual dirige-me um olhar frio e penetrante, antes de sussurrar em meus ouvidos, dona de uma voz estridente e inumana.

— Vlad, não se lembra de mim? Sou Natasha, sua antiga noiva dos Cárpatos…

— Você me vigia há muitos anos daquela janela, querido! Deve estar com saudades de nossas aventuras noturnas.

— Eu sabia! Você tem uma atmosfera maligna…

— Ambos temos, Vlad.

— Meu nome é Vladimir. Não sei do que está falando!

— Você é a reencarnação de Vlad Drakul, da Valáquia, o príncipe empalador, nascido em 1476. Tua história macabra foi contada por Bram Stoker, em 1897.

— Jamais. Eu nunca seria capaz de cometer aquelas atrocidades!

— Vlad, Vlad. Rejeitar sua natureza é o que te deixa infeliz. Estou aqui para te resgatar.

— Então, então, eu sou um vampiro?

— Sim, querido!

— Impossível. Se sou este ser hediondo, como eu não ataquei ninguém até hoje? Vampiros sugam sangue humano. E eu não sou um assassino!

— Vlad, lembre-se: suas caçadas noturnas; os animais desaparecidos da vizinhança. Cães, gatos, aves. Até os maiores, como cavalos, porcos, ovelhas e bois das regiões rurais próximas. Eles o mantiveram vivo. Sempre. Mas seu passado distante vem reivindicar o seu retorno, como predador de humanos, as melhores presas. Venha, querido…

Flashs dos pesadelos que sempre tive voltaram-me à mente. Sangue, horror, caçadas. Horrorizado, tentei correr de volta à saída. De nada adiantou. A mulher vil surgiu inexplicavelmente à minha frente, os olhos incrivelmente negros. Hipnotizado, não consegui resistir ao beijo quente de seus lábios banhados em sangue inocente. A dor foi excruciante. As presas de marfim devolveram-me a memória perdida.

— Natasha… Natasha… É você mesmo? Por onde andou, mulher? Tenho fome, uma fome cruel…

— Olá, Vlad. Temos muito que caçar, a fim de matar essa fome secular.

— Mas, mas, o que aconteceu? Como você me encontrou?

— Isso não importa. Estou aqui. E inoculei em tua bela jugular a fleuma de nossa linhagem milenar, o que te resgatou.

— Obrigado, querida. Agora lembro-me de tudo, Natasha…

Caro leitor, as cenas seguintes revelaram um tórrido envolvimento, quase inenarrável aos ouvidos humanos. Porém, uma fração desse momento Natasha pode contar.

 

****

 

Natasha

 

Ele olhou para mim, os olhos cheios de reconhecimento e confusão. Aos poucos, as memórias começaram a retornar, fragmentos de um passado que havia esquecido. "Natasha," ele murmurou, a compreensão finalmente surgiu em sua mente.

Com aqueles olhos negros como uma noite sem lua, de uma intensidade tal que fez meu coração acelerar, revelando um turbilhão de emoções – desejo, paixão, uma sede insaciável - fitou-me até as entranhas de meu corpo imortal. Sentia o mesmo fervor dentro de mim. Com um movimento lento, acariciou meu rosto, os dedos traçando suavemente a linha da minha mandíbula. O toque era elétrico, enviando ondas de prazer por todo o meu corpo. Ele se aproximou, seus lábios apenas a um suspiro de distância dos meus.

E, quando finalmente nossos lábios se encontraram, foi como se o tempo não tivesse passado. Nossos corpos se reconheceram, o beijo começou suave, mas rapidamente se transformou em algo mais profundo e voraz. Nossas línguas dançavam juntas, explorando, se redescobrindo. O gosto dele era intoxicante, uma mistura de força e doçura que me deixava ainda mais ávida. Sentia meu corpo responder a cada toque, a cada carícia nos aproximávamos mais do limite, do ponto onde o desejo se transformaria em algo incontrolável. Quando finalmente nos separamos estávamos ofegantes. Trocamos olhares de cumplicidade silenciosa. Sabíamos que seria apenas o começo, promessas do que ainda estaria por vir.

Um novo e terrível milênio acabara de começar…

 

 

Esse conto foi escrito em parceria com meu amigo Fantasma.

Max Rocha
Enviado por Juliana Duarte Honorato em 08/08/2024
Reeditado em 08/08/2024
Código do texto: T8124705
Classificação de conteúdo: seguro
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