A filha da noite
Já fazia um bom tempo que ela sentia aquele mal-estar e a fraqueza se espalhando pelo seu corpo. Ela desejava se ver num espelho e poder ver seu rosto mas isso não era possível. Então, contemplou suas mãos, assustando-se com a palidez de sua pele em contraste com a noite tão negra. Suas mãos eram longas, brancas como marfim, acetinadas e tinham longas unhas pintadas de vermelho-sangue, uma das suas cores favoritas. Observou o céu. Estava negro. Não havia nuvens e também não era possível ver a lua, além do fato de que não havia estrelas naquela noite tão melancólica e solitária como sempre tinham sido as suas noites desde que fora condenada àquela existência monótona que se resumia a sobreviver.
Encostou-se na parede do prédio. Vez ou outra, ela ouvia alguém falando ou via pessoas que passavam por ela. Iria, como das outras vezes, ceder à tentação? Ou seria novamente dominada pelos instintos? A verdade era que ela se sentia cansada, não queria mais viver aquela maldita vida. Tudo tinha começado malditos séculos atrás. Ela tinha então apenas dezenove anos, era uma bela moça de longos e lindos cabelos escuros que lhe desciam pelas costas e possuía olhos verdes muito claros. Mas sua vida mudara radicalmente em uma noite. Naquela noite, ela começara a perder tudo. Tornara-se uma vampira e fora amaldiçoada com a imortalidade. Despertara na cripta da família, acordara em uma noite com sede de sangue, passara a matar para viver e vira, com muito desgosto, seu noivo levar a vida adiante casando com outra moça, seus pais envelhecerem e morrerem, seus irmãos formando famílias.
Cansada de ver os descendentes de seus irmãos envelhecendo e morrendo, mudou-se e foi para outro país, passando a se alimentar do sangue quente de outras pessoas, usando a sua beleza para seduzir suas vítimas. Fazia apenas para sobreviver, pois não sentia prazer nenhum naquilo. E achava horrível o fato de não morrer. Ser imortal significava não ter sonhos, não ter nenhum propósito. Os mortais não sabiam o quanto eram abençoados. Como eles não eram imortais eles tinham que aproveitar os momentos únicos e irrepetíveis da vida. Mas e ela? Ela tinha apenas uma estrada a mais, tendo que ser uma predadora, vivendo das mortes de outros seres humanos.
A fraqueza a fez deslizar pela parede e ela ficou pensando em como desejava a morte e tentara ficar sem se alimentar mais de um milhão de vezes. Também achava engraçado que o cinema e a literatura glamourizassem a figura do vampiro. Não havia graça nenhuma em viver para sempre e precisar de sangue quente e fresco para viver. A vida de um vampiro era totalmente sem sentido e sem prazer. Ela sentia saudade da moça inocente que fora um dia, cheia de sonhos e louca para casar com o homem que amava. Como ela chorara ao vê-lo casar com uma moça de beleza angelical. Ainda lembrava das lágrimas de sangue que derramara.
Sentia uma dor lancinante no estômago. Precisava ser forte, resistir. Com a morte, viria a paz, ela estaria livre daquela vida maldita. Não queria mais viver sem poder formar laços com ninguém, sozinha, perguntando-se como estariam os descendentes de sua família. Vampiros tinham a imortalidade, porém não tinham amor nem liberdade.
-Vou morrer! Preciso morrer!
As lágrimas de sangue desciam por seu rosto pálido como marfim e ela pensava, com um prazer insano, que a morte enfim viria e ela estaria livre daquela maldição que a condenara a ser como uma besta louca por sangue.
Fechou os olhos, inebriada de um prazer estranho, entretanto a sua respiração foi quebrada por uma voz bondosa:
-Moça, que faz aqui a esta hora da noite? É perigoso. Está se sentindo mal?
Era um rapaz de uns dezenove anos, a mesma idade que ela tivera quando fora amaldiçoada. Olhou para ele, o rosto simpático e o jeito generoso. Na verdade, ela simpatizara com ele, todavia o instinto foi mais forte. Ela estava com fome, precisava se alimentar e, embora não quisesse ceder, foi sentindo o instinto feral a dominá-la, as presas crescendo e o seu olfato apurado farejando o cheiro de sangue jovem e quente.
Só percebeu o que fizera ao vê-lo morto aos seus pés. Ela tinha se alimentado bem aquela noite e poderia passar um tempo sem se alimentar. Ao contemplar o jovem morto, chorou e chorou. Acontecera de novo.
-Não consigo, é mais forte do que eu! Por mais que eu tente, o instinto de sobrevivência é muito mais forte.
Lembrou das vezes em que ouvira falar que vampiros morriam se se expusessem ou se alguém lhes cravasse uma estaca no coração. Pura bobagem. Ela sabia que vampiros só morriam se fossem expostos ao sol ou se alguém lhes cortasse a cabeça ou se ficassem impedidos de se alimentar. Ainda havia as bobagens de que vampiros não suportavam alho, água benta, não podiam ver crucifixos e não refletiam no espelho, pois recordava perfeitamente de quando se vira num espelho e se assustara ao ver seus olhos, antes tão verdes, vermelhos como sangue. A raiva fora tanta que quase quebrara o espelho.
Limpou os lábios. Na noite seguinte, tudo seria novamente igual.