[ vovó ]

DEPOIS que meus pais morreram num acidente de carro , fui morar com vovó. A casa de vovó era grande e antiga , e ficava perto da floresta. Não havia vizinhos e nem nada. Era um lugar isolado do mundo. Vovó era velha e fedida , e às vezes quando sorria , seus dentes pareciam quererem sair pra fora. Vovó me mostrava algumas fotos perturbadoras , numa foto havia mamãe com os seus olhos saltados das órbitas , e noutra havia papai com metade do rosto esmagado. Vovó era um demônio , disso tenho certeza. Vovó sorria um sorriso fétido e dizia que iria fazer da minha vida um inferno. Dizia que eu estava fodida com ela. Às vezes eu chorava escondida de vovó , pois se ela me pegasse chorando , ela me faria engolir o choro. Ah vovó , a senhora não podia ser bondosa comigo ?

Meu quarto ficava no sótão , e era um tanto quanto escuro. Um lugar soturno dos diabos , como era toda a casa. Ali deitada , me pegava pensando em como vovó era diferente quando meus pais ainda eram vivos. Uma ou duas vezes ao ano , íamos visitar vovó. Ela era sorridente , mas não de um modo macabro como é hoje , e sempre fazia carinho em minha cabeça e me dava presentes , a maioria livros , pois ela sabia que eu adorava ler. Como vai minha netinha preferida , ela dizia e me beijava o rosto , e eu ficava pensando como eu poderia ser sua neta preferida já que eu era sua única neta. Mas logo deixava essa ideia pra lá e abria o meu presente. Oba , um livro de Alice no país das maravilhas ! E subia para o sótão pra modo de mergulhar na leitura de meu novo livro. Ali passava as tardes lendo o livro enquanto mamãe e vovó conversavam lá embaixo na cozinha assando um bolo ou preparando o jantar. Mas isso foi antes , agora meus pais estavam mortos e vovó havia transformado-se no demônio.

As noites eram ainda mais tenebrosas. O quarto de vovó ficava no corredor de baixo e mesmo assim dava pra ouvir o seu roncar horrendo , e eu rezava pra ela morrer dormindo , e assim me livrar do inferno de vez. A janela do meu quarto-sotão era bem pequena , e ali eu ficava viajando enquanto olhava pra floresta , as árvores dançavam como velhas bruxas num ritual satânico , às vezes eu ouvia vozes lá fora , ou seria apenas o soprar do vento ? Algo fruto de minha imaginação ? Numa dessas noites eu jurava ter visto alguém lá fora perto da floresta , parecia ser um homem ou talvez uma entidade. Será que eu estava enlouquecendo , ou tudo não passava de mórbida imaginação ?

Não obstante , numa tarde enquanto limpava o chão da cozinha , percebi uma leve saliência no assoalho de madeira , e durante a noite , depois de acender uma vela , levantei-me de minha cama e desci até o tal cômodo no intuito de investigar o que havia abaixo da casa. Passei pela porta do quarto de vovó , ela roncava como se houvessem almas agonizantes querendo sair de sua maldita boca , e desci nas pontas dos pés a escada rangente , lá em baixo na cozinha estava escuro e úmido , o vento adentrava a casa através de buracos nas paredes , dava pra ouvir , além do vento, asquerosos ratos passeando pelos antigos encanamentos da casa, de certo senti um rato passando pelas minhas pernas em meio ao breu daquele inicio de madrugada. Eu estava descalça , pois não queria acordar o demônio lá em cima, e por isso estava receosa de pisar em algum rato. Caminhava lentamente em meio a escuridão. Havia um cheiro pútrido de enxofre ali na cozinha , algo que me enjoou o estômago. Então senti a tal saliência no chão , ali abaixo de mim , agachei-me e com a ponta dos dedos fui buscando um local de apoio , bingo , porém não conseguia abrir só com as mãos , tendo que tatear na pia uma gaveta , bingo de novo , abri a gaveta , peguei uma faca e com o auxilio da mesma consegui abrir a tampa no chão , logo sentindo um cheiro ainda mais forte de enxofre , lá embaixo tudo estava ainda mais escuro , tentei iluminar o local com o auxilio da vela , percebi uma escada , hesitei um pouco , mas tomada de coragem fui descendo até dar-me de fronte com uma porta. Forcei a maçaneta e logo a porta cedeu , dando para um corredor escuro e sinistro que só uma porra. Caminhei nesse corredor até chegar em outra porta , que quando abri deparei-me com outro corredor e outra porta e outro corredor e outra porta e outro corredor e outra porta e outro corredor e outra porta. Continuei ali , pois para vovó jamais voltaria. Cada porta aberta pra mim era uma esperança de liberdade. Mas a cada porta aberta , outra porta havia. Eu só conseguia imaginar a velha desdentada rindo de mim , em meio a escuridão , em algum lugar da casa. Lá fora , em algum lugar da floresta , alguém ou algo , me esperava.