A pedra ônix
A Sra. M. entrou no meu consultório acompanhando um garotinho sardento de cerca de seis anos de idade, cabelo cor de palha, grandes olhos de um azul profundo. O menino olhou ao redor, curioso com os objetos pouco usuais que eu mantinha ali dentro, e que provavelmente ele não esperava ver num consultório médico. Como o queimador tibetano de incenso, ou o espelho de corpo inteiro emoldurado em mogno...
- Esse é o Tio do Segredo, J. - disse a Sra. M. para o menino, piscando um olho para mim.
- Tio do Segredo, hein? - Repliquei, estendendo a mão para J., que a apertou muito sério.
- O senhor é bom em guardar segredos? - Inquiriu J. em expectativa.
- Guardar segredo faz parte do meu trabalho, J. - assegurei. - O que quer que vá me contar, vai ficar entre você, eu e sua mãe.
Mãe e filho sentaram-se nas cadeiras estofadas diante da minha escrivaninha, J. me encarando em expectativa.
- Como eu disse pelo telefone, doutor, - principiou a Sra. M. - meu filho vem se queixando de pesadelos há alguns meses, desde que nos mudamos para a casa nova. Ele conversou com a psicóloga da escola... a Tia do Segredo... mas ela achou que seria melhor que J. fosse entrevistado por um especialista.
- E aqui estão vocês - concluí, voltando-me para J.
- Mas quando você disse para a tia da escola que não eram só pesadelos, o que ela respondeu, J.?
O menino animou-se.
- Viu, mãe? O tio me entende! - Exclamou triunfante.
A mãe me lançou um olhar decepcionado.
- Mas doutor, pensei que fosse convencer meu filho de que o que ele tem, são apenas pesadelos.
- Se fosse apenas isso, a psicóloga escolar não a teria encaminhado para mim - repliquei. - Conte mais sobre os seus "pesadelos", J.
J. olhou apreensivo para os lados, como que esperando que algo surgisse e pulasse sobre ele. Depois, ganhou confiança e começou a falar:
- Às vezes eu acordo no meio da noite... no escuro... e quando olho para os pés da minha cama, vejo um outro garoto olhando para mim. Ele veste um pijama parecido com o meu, e até se parece comigo.
- E essa sua cópia fala alguma coisa? - Questionei, fazendo apontamentos numa caderneta.
- Das primeiras vezes, ele só ficava parado e depois dava dois passos para trás e sumia... como se fosse feito de fumaça - J. encolheu-se de medo, e creio que eu também reagiria da mesma forma, depois de ver essa visagem dentro do meu quarto. - Mas teve um dia em que falou... que eu estava ocupando o lugar dele.
- Na cama? - Ergui os sobrolhos, lápis erguido.
- Na casa inteira - J. estava legitimamente assustado, e a mãe passou o braço sobre os ombros dele num gesto protetor.
Era o suficiente. Pedi à Sra. M. que deixasse J. na recepção, com minha secretária, e pude finalmente perguntar à ela:
- Ele nunca soube que teve um irmão gêmeo, não é?
A Sra. M. me lançou um olhar desconsolado e apenas balançou negativamente a cabeça, apertando os lábios.
- Isso nem é tão incomum assim, da alma de um gêmeo continuar a viver no corpo do sobrevivente, e se manifestar quando este não tem o controle consciente... durante o sono, por exemplo. Provavelmente, há algo nesta casa onde estão morando agora que permite que essa interação ocorra com maior frequência.
- Será que teremos que nos mudar de novo, doutor? - Indagou a Sra. M., consternada.
- Não. Vocês não - sentenciei. - Mas creio que chegou a hora do irmão de J. arranjar uma nova família e seguir seu caminho.
J. ganhou um presente antes de deixar o meu escritório: uma bela pedra ônix negra.
- Você vai dormir com esta pedra debaixo do travesseiro - expliquei. - Aposto que o outro menino nunca mais vai lhe incomodar.
Dois meses depois, a Sra. M. ligou feliz para o meu consultório, e disse que o tratamento surtira efeito. Quanto a mim, só esperava que a nova família do irmão de J. fosse tão simpática quanto haviam sido seus pais biológicos.
- [10-04-2024]