Luto
Uma garoa fina caía sobre as sombrinhas abertas. Uma chuva fria, que misturava as suas lágrimas e que dilacerava sua pele, porque de sua alma já não havia sobrado nada.
O grupo seguia o cortejo como uma passeata de corvos, todos de preto, acompanhando o caixão vazio. Ernesto olhava sem ver, almas que, assim como a sua, vagavam sem sentido sobre a terra. O pastor dizia palavras de conforto, que sua alma generosa estaria num belo lugar. — Que lugar seria esse? Ela estaria melhor sem ele? Provavelmente sim, porém Ernesto nunca estará melhor sem Adelaide.
Na mente, as lembranças vinham e iam com maior e menor intensidade de emoções. Banalidades, momentos marcantes, tantas ocasiões vividas com Adelaide caindo como ondas sobre a sua alma torturada. Correntes prendiam seu coração àquele caixão.
Lembrou do primeiro encontro, das noites quentes, do sorvete de menta com chocolate. Do show de rock que só ele gostava, mas que Adelaide jurou que se divertiu; das tatuagens que fizeram juntos, símbolo de um amor eterno. Planos para o futuro, família, filhos, cachorro, uma casa grande com quintal. “Enterro simbólico”, foi o que disseram. Nada havia sobrado no acidente.
Para Ernesto, ficou o passado, e mais ainda, o futuro agora anulado, sendo enterrado junto com aquele caixão vazio, oco assim como seu coração.
Passou na porta de casa, guardou o carro na garagem e desceu a rua caminhando. Em todos os detalhes da cidade, havia alguma coisa dela: o local onde se conheceram, o mercadinho das verduras, a livraria, o café, a praça onde compravam flores. O parque onde as crianças brincavam e onde eles sonhavam em trazer os filhos— que não nasceriam mais.
Parou ali. O ar lavado pela chuva recente tornava a respiração mais fresca e limpa. Ficou um tempo absorto, envolto pelos sons e cores ao seu redor, pensamentos de uma outra vida, deixando o vento novo acariciar sua face.
O rapaz do carrinho de algodão doce passou por ele.
—Adelaide não veio?
Baixou a cabeça, sem saber como responder, as lágrimas que insistiam em fugir dos olhos.
Lembrou do trabalho para concluir e voltou para casa, parou em frente à caixa dos Correios. Apenas um envelope. Abriu com descuido e rasgou uma ponta do papel. No centro do laudo, uma palavra em negrito se destacava de tudo:
“Positivo.”
Ernesto saiu correndo sem destino e, quando percebeu, estava lá novamente. O caixão ainda está exposto. Com o exame na mão, relevava para Adelaide o conteúdo do envelope. Adelaide não foi embora sozinha. Planos interrompidos por uma fatalidade do destino.
A chuva recomeçou com intensidade, Ernesto gritou, brigou com Adelaide, colocou nela a culpa por sua ausência.
— Por que você me deixou? Você levou uma parte minha que “nunca será minha”. Você prometeu que gastaria todo seu tempo comigo. “Essa noite será a mais solitária”, “você ainda é o meu oxigênio” . “Vejo seu rosto quando fecho meus olhos”, sinto seu cheiro, como não ficar triste quando chegar em casa e você não estiver lá? — Sem esperar, como num filme, o caixão se abriu e Adelaide o puxou para um abraço e ele ouviu sua voz metálica.
— Sim, querido, “essa noite será a mais solitária”, porque será a primeira sem você. “Há algumas frases que escrevi em caso de morte.” Quero que saiba: “eu te amei e amei muito.”
Uma chuva torrencial começou a cair sobre os dois, Adelaide abraçou Ernesto e ambos se jogaram dentro do caixão, e a tampa foi lacrada com os dois na eternidade.
Conto baseado na música da banda Maneskin–The Loneliest
Participação da construção desse conto: Iolanda Pinheiro
Conto publicado na Revista Histórias de Lugar Nenhum
Disponível na Amazon