A MULHER DA ESTRADA
Ele deu “boa noite” para uma senhora na rua, mas as palavras saíram todas embaralhadas, a voz embargada, ele atropelou o “boa” e saiu meio que tudo junto.
Não era a primeira vez que ele estava tão bêbado que não tinha certeza se estava no caminho de casa ou voltando para o bar.
Eram umas quatro horas da manhã, ou podia ser antes, ele não tinha certeza.
Pela altura da lua...? Ele não sabia dizer esse tipo de coisa.
Ele só sabia que estava tentando voltar para casa.
Encontrar sua esposa irritada na porta do barraco, com a menina dormindo nos braços.
Esse pensamento o deixava contente, ele gostava da família.
Apesar de tudo.
Hoje mais cedo ele teve uma grande briga com a esposa, uma comoção danada, coisas foram arremessadas, palavras foram ditas.
Coisas ruins.
Mas ele não lembra muito bem o que foi direito.
Deve ter sido o de sempre, mas por algum motivo, ele sentia lá no fundo de sua alma que não foi aquela mesma discussão por causa bebida, ou por chegar tarde.
Por feder a perfume...
Ele se lembrava vagamente de uma pontada intensa no peito.
Aquele bêbado caminhava pela estrada, parecia que o caminho não terminava nunca, será que estava perdido? Entrou na rua errada?
Ele por acaso passava na beira da estrada?
Agora já não tinha certeza.
Que lugar é esse? Ele pensava incessantemente.
Caminhou mais um pouco e avistou alguma coisa no meio do mato, acreditou ser uma casinha branca. Pensou em pedir ajuda.
O homem apertou o passo, estava ficando ansioso.
Sua bebedeira já queria passar.
Isso ele não suportaria, precisava chegar em casa logo para agarrar uma branquinha.
Ao se aproximar, seu ânimo se esvaiu rapidamente, ele notou ser uma pequena capela, com uma santa dentro.
Um pouco mais a frente havia uma cruz de pedra, parecia bem antiga, mas ainda estava inteira.
No pé da cruz havia um buque de rosas vermelhas.
O homem se sentou no pé da capela. Estava cansado e, francamente, estava desanimado de seguir naquele caminho.
Sua percepção estava voltando ao normal e ele foi capaz de notar do outro lado da pista uma pequena luz.
Uma chama, ele concluiu.
Tratava-se de uma velinha acesa.
Ele não fazia ideia de como aquela vela permanecia acesa no tempo, estava bem frio, o sereno estava pesado.
Então, subitamente, veio o silêncio.
Antes ele ouvia o som dos animais noturnos, o barulho das folhas se balançando na brisa gélida, ele ouviu ao longe o som dos carros, embora nenhum veículo tenha passado por ali desde que chegou naquela estrada.
O homem suspirou e fechou os olhos.
Mas então uma voz feminina veio despertá-lo.
“Boa noite, moço”
Ele olhou para o lado e havia uma mulher alta e de longos cabelos negros parada lá, ele não conseguia ver seu rosto já que ela estava olhando para outro lugar, será que ele dormiu mesmo? Pensou apenas ter descansado os olhos, mas não era possível aquela mulher se aproximar tanto dele sem que notasse.
Não era?
Ela estava parada de costas para a estrada, em frente à cruz de pedra, ele ainda sentado no pé da capela.
“É uma noite muito bonita, não é?” Ela perguntou sem olhar para ele.
O homem já não tão bêbado olhou para cima, mas não via nada. O céu era nublado, cinzento, sem vida.
Parecia olhar o mundo pelos olhos do cadáver de um animal apodrecendo ao lado da estrada.
O homem achou por bem não responder a estranha mulher.
Para estar perambulando sozinha uma hora dessas, coisa boa essa mulher não era.
“Isso é verdade mesmo, para caminhar por essas bandas uma hora dessas, bom sujeito não é.” Ela respondeu.
O homem deu um pulo e ficou de pé, estava gelado.
Ela havia lido seus pensamentos, mesmo que tivesse bebido, não era possível confundir o que se fala do que se pensa.
A mulher virou o rosto lentamente na direção do homem, mas a sua expressão...
O rosto era completamente distorcido, como se alguém houvesse tentado criar um novo rosto e quando não conseguiu, passou a costurar tudo junto.
“Eu não gosto especialmente de gente igual a você...” Ela falou em um tom sepulcral, a voz parecia saída debaixo da terra.
O único som que ele passou a ouvir foi seu coração, mas estranhamente as batidas que começaram rápidas, passaram a diminuir, batida a batida o coração ficava mais lento.
Parecia estar parando.
Será que morreria assim? De medo?
A mulher da beira da estrada continuou parada ali, ele também permaneceu imóvel, como um animal preso na aura assassina de seu algoz.
Uma fera que a qualquer segundo daria o bote.
“Mas por mais que eu odeie o seu tipo... Para um homem como você... Só mesmo uma mulher como eu...”
A mulher então abriu um sorriso macabro, que pareceu arrebentar as linhas que seguravam o seu rosto junto, seu sorriso cresceu pela face, chegando quase até as orelhas.
O homem finalmente conseguiu quebrar o encanto da morte e começou a correr, correr, ele corria na beira da estrada, mas a estrada nunca terminava, o sereno se tornou tão denso que uma neblina pareceu cobrir toda a região, mas estranhamente ele não sentia frio.
Em algum momento ele parou de correr. Estava de volta!
Estava de volta no bar.
Olhou para os lados e viu uma aglomeração, as pessoas estavam paradas no meio da rua, alguém estava caído no chão.
Como um impulso ele se aproximou para olhar, mas não havia nada ali.
As pessoas cochichavam e apontavam como se houvesse algo ali, mas não havia nada.
O homem se afastou lentamente da multidão. Sua atenção foi atraída rapidamente para a esquina, no pequeno encruzo que ficava em frente ao bar havia uma vela preta firmada e um buque de rosas vermelhas no chão, parecia haver uma bebida junto, algum tipo de bebida fina de mulher.
Aquilo não era normal ali naquela região... Era muito movimentado.
Assustado, o homem resolveu ir para casa.
Agora estava sóbrio, conseguiria chegar sem dúvida.
O homem caminhou firme, rápido, iria para casa.
Agora definitivamente iria para casa.
Pediria desculpas a sua esposa por causa daquela briga.
Aquela briga...
Como que foi aquela briga?
O homem seguia caminhando, entrou nas quadras, queria ter certeza que passaria bem longe da estrada.
Mas muito estranhamente as quadras se multiplicavam toda vez que ele seguia, o homem então resolveu parar e seguiu em um beco diferente do caminho de sua casa.
Finalmente ele se viu em um caminho diferente.
Ele apertou o passo, mas assim que saiu do beco estava de volta na estrada.
Um arrepio percorreu por todo seu corpo.
“Já está de volta?” A familiar voz feminina perguntou.
Ele se virou para a mulher, que agora estava do outro lado da estrada, muito diferente.
Seu rosto era lindo, seus olhos cinzentos pareciam tão convidativos...
Não era possível ser a mesma pessoa.
Um instinto diferente surgiu no homem.
A mulher deu uma gargalhada.
“Vocês homens... São todos iguais...”
A mulher então passou a atravessar a rua, na medida em que se aproximava da cruz de pedra, seu rosto se distorcia.
Ele viu a carne girar pelo contorno de suas bochechas.
O homem caiu de joelhos, as lágrimas escorreram de seus olhos. O que estava acontecendo? Era um pesadelo? Devia ser.
Só podia ser!
Tudo que ele precisava fazer era enfrentar essa criatura macabra e acordaria, certamente.
O homem então se levantou e correu na direção da mulher, com raiva, a violência se expandiu dentro dele, mas assim que tocou o corpo da mulher e segurou seu vestido vermelho, se deparou com sua esposa.
Ela estava com o rosto coberto de ferimentos.
O homem soltou a esposa, num impulso.
Ela caiu chorando, o som da criança gritando, explodindo em choro. Toda aquela confusão gerou uma grande irritação no homem, que se dirigiu até o pequeno bebê.
Ele balançou a criança até que se calasse.
A esposa tentou impedi-lo, agarrou o braço, mas ele era muito mais forte e a jogou longe.
Então subitamente uma pontada.
Um ferimento tão profundo que ele conseguiu ver sair em seu peito a ponta da faca.
De canto de olho ele olhou nos olhos de sua esposa.
Os olhos dela eram cinzentos e sem vida, mas cheios de fúria.
Dentro deles havia alguém mais.
Alguém que ele conhecia bem.
Ainda com a faca atravessando seu corpo, em um último golpe de fúria o homem arremessou a criança que estava em suas mãos no chão violentamente e agarrou o pescoço da mulher.
Acabaria ali, ele morreria, mas ela morreria também, morreria até o filho nascido daquele engano chamado de casamento.
Morreriam todos.
Sim, todos deveriam morrer.
Só assim acabaria o sofrimento dele.
Só assim ele não precisaria mais beber.
Só assim ele não precisaria mais sair com outras para se esquecer.
Todos aqueles que causavam a dor dele deveriam sofrer, assim como ele sofre.
O homem viu a luz deixar os olhos da esposa antes de dar seu último suspiro, estava satisfeito, agora acabaria o seu sofrimento, sim.
Ela era a causadora de tudo, ela e aquela menina.
O homem caiu de lado, estava morrendo.
Muito lentamente, estava morrendo.
Ele olhou e viu sua esposa morta, sua filha morta.
Ele morreria em breve também e aí quem sabe se juntariam no além para viver uma vida sem sofrimento.
Juntos.
Como era antes.
Antes dele se perder na bebida.
Antes de ele chegar tarde sempre alterado, antes das mulheres...
Mesmo com a morte delas o sofrimento não havia acabado...
Uma lágrima escorreu pelo rosto do homem antes de seu suspiro final.
Os olhos arregalados de sua esposa refletiam a figura da mulher da estrada.
Ele percebeu então que seu sofrimento jamais terminaria.
Ela o aguardava na cruz de pedra, para vagar infinitamente na estrada sem fim. Incapaz de voltar aos dias felizes, incapaz de chegar em casa para ficar com sua família...
Sua conta seria cobrada.