Blasfêmia
Meu quarto está escuro, mas a lua ainda insiste em clarear a tragédia.
Estou deitada na minha cama olhando para aquela macha no tapete. Eu deveria levantar e limpar, mas ele não deixa. Ele quer me ver sofrer com a culpa.
Pela sentença, cortei-me a língua e a expus em uma bandeja de prata para eles provarem de meu veneno. A mesma língua, que horas antes, pronuncio palavras de baixa modéstia. Mas eu não sinto dor, não consigo sentir absolutamente nada mesmo sabendo que o corpo frio dela está jogado em uma cova rasa demais para se chamar túmulo, melhor chamar de esconderijo.
Ela, que é tão linda, tão jovem, morta pelo pecado e soberba de achar justa em enfrentar a ira daquele que deixou matarem o próprio filho crucificado para torná-lo mártir.
Oh homem bastardo que se esconde no ébano de meu quarto, nutrindo minhas lágrimas com mentiras insignificantes, ilusões irreais e promessas sem futuro.
Manejando os fieis com a dogmatização que só existe nesse seu falso coração. Eu tenho medo, medo dele e de suas ideologias imorais.
Tenho medo que ele me tire tudo, menos a vida para brincar de xadrez com minha frágil marionete. Talvez Deus seja o Demônio, ou vice e versa.
Se ele é onipresente, por que só existe em lugares que lhe agrada?
Se ele é onipotente, por que tanta tragédia?
Se ele é onisciente, por que tantos pedidos de socorro silenciados?
Talvez seja sua diversão ver o rebanho entrar em ruína ao queimar suas almas para conseguir uma vaga em seu céu particular, o purgatório disfarçado de paraíso.