Conto de fadas

Ela viajava por uma floresta encantada de árvores generosas. Ali havia frutas para a colheita, água fresca nos riachos, abrigos de pedra para os dias chuvosos e as noites frias. Ela seguia com um leve vestido branco, passos descalços saltitantes, consumindo gostosamente o que a natureza lhe ofertava. Sabia reconhecer com sinceridade a regalia e o conforto, fazendo questão de agradecer e retribuir com um pouco do seu sorriso e alguns cuidados a alguma flor que caía já murcha ou a algum filhote aprendendo a sair do ninho. Alguns desses pássaros a acompanhavam pelo caminho, com visitas fugazes e divertidas, ao ganho de algumas migalhas. Eles eram a sua companhia pelas estradas.

 

Tudo parecia fácil, tranquilo e feliz como um dia de sol ameno e brisa fresca. No entanto, havia a incômoda sensação de lacuna insistindo em atrapalhar a harmonia da viagem. Faltava alguma coisa que ela não sabia se era de dentro ou de fora, já que habituada a contemplar as belezas do caminho, não se empenhou em buscar a origem da sua necessidade.

 

Certo dia, passava por ela uma mulher de meia idade. Tinha cabelos vermelhos como o fogo, abdome encolhido sob um espartilho apertado, sobrancelhas bem desenhadas, adornos nas orelhas e no pescoço e um olhar azul ansioso e inquisitivo. Sem que nada lhe perguntasse, a jovem senhora lhe falou em tom de censura que faltava um matrimônio em sua jornada. Que assim, a harmonia seria verdadeira e as lacunas não mais perturbariam o seu sono. Precisava encontrar um amor. Certamente a senhora tinha razão. Não seria por isso que as pessoas se casam?

 

A viagem já não parecia tão tranquila agora que precisava se concentrar em encontrar o par para compartilhar as belezas da floresta encantada. Não demorou e lá estava ele, sorriso aberto, deitado preguiçosamente à sombra de uma árvore majestosa, de frutos grandes e fartos. Ele a convidou a se deitar e ali falaram de amor e passaram muito tempo planejando o futuro cheio de risos e frutas frescas. Soava perfeito, embora ela ainda sentisse vontade de caminhar com os pés descalços, dar bom dia ao sol e carinho aos pássaros. Mas precisava se esforçar, preencher aquela lacuna insistente. Aquilo devia ser amor, só precisava se doar mais.

 

Chegou enfim o grande dia. Iria finalmente adentrar o castelo encantado do seu par eleito. Visto de longe, era uma construção belíssima, com cores do amarelo ao rosa cintilante, rodeado por um bosque de altos pinheiros e entrada adornada das mais coloridas flores da floresta. Não tinha erro, a vida lhe apontava o caminho mais certo e agradável. E ela entrou, ultrapassando a abertura exageradamente alta da porta da frente.

 

Atrás dela, a porta se fechou em um som ruidoso que fez seu coração palpitar. De certo fora o vento. Após alguns segundos suas pupilas se habituaram à luminosidade reduzida. Estranhou o silêncio e os poucos móveis simplórios dentro de um lugar tão grande. Não havia quadros nas paredes ou flores sobre as mesas. O ar era úmido, fazia frio, apesar do sol lá fora e era possível ouvir a própria voz ecoar nas altas paredes de pedra. Seu novo par lhe apresentou o interior do castelo sem o entusiasmo habitual que usava para demonstrar o entorno da propriedade. Sua voz era distante e opaca.

 

Na aridez dos grandes cômodos, chamou-lhe atenção uma saleta conjugada à sala principal. Em uma cadeira de couro arranhado, dormia folgadamente um gato cinza. Ao seu lado havia uma pequena mesa redonda sob um prato com restos de pão e um copo sujo de leite. Ouvindo seus passos, o gato mexeu as orelhas, abriu os olhos amarelos, encarou-a fixamente por alguns segundos, suspirou profundamente e voltou a dormir.

 

Sobre uma mesa quadrada à frente da cadeira, estava uma grande caixa de madeira, envernizada e reluzente, com fechadura e borboletas de ouro polido. Sem dúvida o objeto mais bonito do castelo. Vendo o seu fascínio pela caixa, com um êxtase incomum, seu par pusera-se a lhe informar que aquela era uma caixa mágica. Era o único exemplar de todo o reino e fora-lhe deixada em herança pela avó paterna. Não podia falar dela a quem não depositasse absoluta confiança, já que poderia ser traiçoeiramente cobiçada. Ela sentiu o prazer e o entusiasmo de ter conquistado a confiança do seu par.

 

Ao ser aberta, a caixa tinha o poder do transporte imediato para qualquer mundo, a qualquer distância, em qualquer tempo, pelo período e experiência desejados. A viagem era como real, mas não havia custo financeiro, não causava danos à integridade física e era uma fonte direta de prazer ilimitado. Ela se animou com toda aquela magia e experimentou a caixa algumas vezes. Era mesmo uma experiência sem precedentes, com fortes emoções a um preço aparentemente baixo.

 

Dedicou mais alguns dias à experiência da caixa mágica e enquanto gozava o êxtase das viagens, sentia a lacuna se formando novamente, ou talvez havia sido apenas temporariamente esquecida. Fazia falta um ambiente colorido, iluminado e o ar leve. Ela passou a se dedicar a adornar o interior do castelo. Abriu as janelas, limpou a poeira, teceu almofadas e lençóis macios, trouxe vida verde para dentro, comprou frutas e vegetais frescos de um viajante que passava e achou que poderia ser feliz ali.

 

Percebeu seu ventre arredondado e ouviu que um novo coração batia confiantemente ali dentro. Sentiu o peso aumentando e, embora venturosa, estava assustada. Em uma noite de céu escuro e nuvens densas, nasceu o rebento, tão pequeno e frágil a lhe sugar as entranhas até reduzi-la a um ser esquálido e sedento. Seu coração sangrou e a lacuna fora finalmente preenchida. Mas ela já não tinha forças para manter sozinha o castelo iluminado e alegre. Agoniada buscou confiante o amparo do seu par. A passos apressados ia de um cômodo a outro do castelo, gritava alto, mas somente ouvia o choro infeliz do filho e sua própria voz ecoando nas paredes de pedra. Não havia mais ninguém ali, tudo era silêncio e escuridão.

 

Com o pequeno ser a lhe arrebatar os seios, avistou a caixa mágica caída ao chão da saleta. Se aproximou com passos cuidadosos, notou que pela primeira vez o gato não estava na cadeira. Um vento frio e úmido lhe soprou os cabelos desarrumados. Colocou novamente a caixa sobre a mesa, tentou abri-la, mas estava trancada. Buscou o escapulário, mas a chave não estava lá. Foi quando entendeu que seu par não voltaria daquela última viagem. Estava sozinha.

 

Chorou lágrimas transparentes e cheias de dor que caíram sobre a fechadura de ouro. Naquele instante, uma luz prateada rompeu estrondosamente vinda do ouro da caixa, destruindo a madeira por completo. Ela deu um salto para trás, segurando com firmeza o rebento nos braços. Percebeu que a treva no restante do castelo se adensava e que a luz prateada revelava sombras que voavam rapidamente sob o teto dos cômodos. O medo e o desamparo apertaram fortemente seu peito e sua garganta. Mas precisava correr, era preciso deixar o castelo o quanto antes. Aquelas sombras sinistras seriam seus proprietários que vinham reclamar sua posse a qualquer preço. Sentiu muito perto o hálito da morte e temeu pela vida delicada que mantinha nos braços, sabendo que aquela estaria sempre acima da sua própria vida.

 

Buscou a porta da frente que se fechou em um estalo agudo, buscou as janelas que eram altas demais para que alcançasse com os braços ocupados. Sentia as sombras se aproximando cada vez mais rápido, subia e descia as escadas buscando se esquivar, ia de um canto a outro, mas elas pareciam se multiplicar alimentadas pela luz que emergia da fechadura dourada. A criança chorava forte, enchendo o castelo de um eco lúgubre. Ela já não tinha forças para continuar.

 

Subiu mais uma vez ao quarto, sentou-se ao chão em frente à janela aberta e chorou sobre a pele clara do pequenino que a lua cheia banhava com indiferença. Em meio à torrente de lágrimas, avistou o céu de um azul escuro profundo e as estrelas brilhando em seu ofício habitual. Sentiu paz. Havia feito o seu melhor, havia lutado com todas as armas que possuía naquele momento, havia se doado ao castelo e ao filho. Tudo agora lhe escapava das virtudes. Não havia mais nada a fazer. Sentada no chão com os joelhos dobrados, encostada à cama, abraçou o filho e esperou que as sombras os levassem.

 

Esse seria um fim nobre para um conto de drama. Mas eu ainda quero um conto de fadas.

 

 

Ela ouviu um grasnar agudo a se repetir acima das torres do castelo. Percebeu a luz forte, vermelha e dourada de labaredas próximo à janela e sentiu o calor do fogo queimando o telhado. Imediatamente as sombras que chegavam ao quarto fugiram abaixo pela escadaria de pedra. Ela se levantou, os olhos vidrados, enquanto toda a parede à sua frente era caprichosamente consumida por chamas bem controladas. Não temia o fogo. Havia esperança enfim.

 

Uma grande e majestosa ave de penas vermelhas lhe estendeu as asas e ela subiu com facilidade, agarrando o filho junto ao peito. Ela reconhecia aqueles olhos de fogo, a vira deixar o ninho meses atrás e voltar algumas vezes para lhe cumprimentar ao longo do caminho da floresta, como um pequeno e feminino pássaro de vôo alegre e canto suave. Talvez até lhe tenha negado migalhas em algum momento do percurso. Mas ali estava aquela ave agigantada para lhes salvar da morte iminente. Agora estavam livres, a lacuna estava preenchida e uma nova história podia começar.

 

Fim.

 

Mary Haskell
Enviado por Mary Haskell em 01/01/2023
Reeditado em 01/01/2023
Código do texto: T7684705
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