O residente

Francesco Fremault espiou pelo olho mágico da porta do apartamento e viu o homem de terno que estava parado no corredor, aguardando que abrisse. O porteiro havia avisado que ele estava chegando, e que mostrara uma identificação governamental. Não havia nada que pudesse fazer para impedi-lo de subir, avisou.

- Não estou devendo nada ao governo - retrucou Fremault, antes de desligar o interfone e correr para jogar um roupão sobre o pijama. O agente esperara que o dia raiasse para ir atrás dele, o que dava a entender que ainda não tinha um caso concreto, deveria estar só checando uma denúncia. Portanto, que mal havia em abrir a porta?

- Senhor Francesco Fremault? - Indagou o recém-chegado.

- Sim, sou eu... a que devo a visita, senhor...?

- Joris D'Hoe, investigador do Birô de Assuntos Parapsíquicos - declarou o homem, exibindo uma identidade funcional plastificada.

Fremault franziu a testa.

- Sou um cidadão comum, não me meto com assuntos de parapsiquismo, investigador.

- Portanto, não irá se opor a que eu entre e dê uma olhada? - Questionou D'Hoe, guardando a identificação num bolso do paletó.

- Por favor - Fremault afastou-se, para dar passagem ao agente. Este entrou olhando tudo de cima a baixo, expressão atenta. Depois, dirigiu-se aos demais cômodos do apartamento, sempre seguido de perto pelo residente.

- O senhor mora sozinho, senhor Fremault? - Indagou o investigador ao retornar à sala, e sacar bloco de anotações e caneta de outro bolso do terno.

- Sim, desde que me divorciei de minha esposa - afirmou o interpelado. - Há seis meses.

- Certo. E o senhor mesmo faz a limpeza do apartamento ou contratou uma diarista?

Fremault hesitou. Se não soasse convincente, poderia pôr tudo a perder.

- Bem, eu... eu mesmo limpo e arrumo tudo.

O investigador ergueu os sobrolhos.

- E faz isso normalmente a que horas, senhor Fremault?

- Bom... eu sofro de insônia, então às vezes faço a limpeza de madrugada mesmo.

D'Hoe o encarou com uma expressão impenetrável.

- E o senhor usa aspirador de pó?

- Não! De modo algum; iria acordar o prédio inteiro!

- Então, o senhor limpa esse apartamento de dois quartos com esfregão e espanador?

Um sorriso de incredulidade se abrira no rosto do investigador.

- Há alguma proibição quanto a usar esfregão e espanador, agente D'Hoe?

D'Hoe deu de ombros.

- De modo algum, senhor Fremault. É muito correto da sua parte evitar fazer barulhos que incomodem os demais moradores.

Fez uma ligeira pausa e acrescentou:

- Tirando o fato de que alguns dos seus vizinhos, tanto acima quanto abaixo, declararam ter ouvido ruído de choro e de correntes sendo arrastadas tarde da noite. Algo a declarar?

Fremault respirou fundo.

- Bem... posso ter deixado o som da TV alto demais, enquanto limpo a casa. Como lhe disse... sofro de insônia.

D'Hoe fez mais algumas anotações no bloco, antes de guardá-lo.

- Está bem, senhor Fremault. Isso encerra a minha visita.

- Estou liberado pelo Birô de Assuntos Parapsíquicos? - Indagou Fremault, tentando soar jovial.

- Por ora - redarguiu o investigador. - Mas se tivermos mais alguma reclamação de gemidos e arrastar de correntes pela madrugada, pode ter certeza de que voltarei, com uma equipe de busca e um mandado.

Estreitou os olhos ao encarar Fremault e dizer, em tom áspero:

- Manter entidades do plano astral escravizadas para realizar serviços domésticos, é crime, senhor Fremault. Espero que o senhor não se esqueça disso.

Fremault apenas balançou a cabeça, sem dizer palavra.

Depois que o investigador se retirou, permaneceu ainda alguns minutos de pé, no meio da sala. Era bom poder contar com o espírito da velha Steffie para cuidar da casa, ponderou, mas teria que ter uma conversa séria sobre ruídos proibidos ao limpar a residência. Se ela não obedecesse, sempre poderia ameaçá-la com a devolução às profundezas do inferno, de onde a havia resgatado para servi-lo na morte como fizera em vida...

- [19-09-2022]