O Balseiro Da Morte

E lá longe eu via o balseiro.

Não havia nada ao meu redor. Nada além de dor e sofrimento.

Enquanto eu me afogava profundamente na psicopatia da vida, o balseiro vem se aproximando. Remando e remando.

Confesso que me sinto apreensivo, pois quanto mais o tempo passa, mais eu vejo que ele está mais perto.

Observo-o dirigindo aquele barco pelas águas. Silencioso. Parece que não gosta de interagir com nada que não lhe faça sentir ódio, repulsa, ou lhe desafie a vida. Parece eu. Fumo meu cigarro olhando ao horizonte quando então percebo sua presença na minha frente. Olhos em seus olhos e vejo nada além de escuridão. Sua face era óbvia. E não existe algo mais óbvio do que o nada. Estendo a mão e então o balseiro diz:

- Posso sentar ao seu lado? Meu nobre confrade desalmado.

Seu cheiro de morte preencheu o meu pulmão. Estava tão confuso naquele momento, que a sua companhia seria a única coisa que me ajudaria a desvendar o verdadeiro motivo de estarmos tendo essa conversa tão cedo. Acenei à favor de sua companhia e resolvi dividir cigarros com o meu novo amigo.

Prazer, Caronte. Sou aquele que leva as almas para o outro lado do mundo. Temido por muitos, respeitado por todos. Já conheci todos os homens desse mundo. Carreguei embarcações pesadas na primeira e segunda guerra, mas nunca dividi um pouco do meu tempo com uma alma viva. Por que estou aqui sentado ao lado de um pobre mortal?

Imagino que eu esteja um pouco morto. Incrédulo com esse mundo hipócrita, mas triste comigo por nunca conseguir demonstrar os meus sentimentos com aquela desculpa de sempre: "ah, ninguém liga.." Hipócrita somos nós. Malditos guarda-pra-sí.

Vejo muito de vocês. Vejo todos. Há aqueles que tentam trapacear minha ama. Mas eles sempre estarão aqui. A senhorita Morte sempre os acha e me traz. E o que você fala, já ouvi muito.

Vejo que seus olhos são quase tão vazios quanto os meus. Você não passa de uma alma em estado terminal em uma embalagem de pele e pêlos. Por isso parei pra te ouvir. Faz algumas décadas desde que vi olhos assim e não parei pra confabular. Os outros assim me disseram qual é sua doença.

Você se acha meio morto. Porque se mata todo dia. Toda vez que senta na sua cadeira no trabalho. Toda vez que diz "o lucro esse semestre foi dez por cento maior", você sonhou muito. Seus sonhos eram maiores que você. Hoje nem dormir consegue. Essas pílulas e garrafas de vodka não devolverão seus sonhos.

As palavras deles pareceram descrever minha alma. Aquela faceta da minha vida. Era minha morte. Meu convite pra milenar embarcação de Caronte. Senti pena de ter nascido. O que eu fiz com minha vida? Já podia ver algumas almas se acumularem podres e vazias em frente a sua embarcação.

- Eu sempre sonhei muito. Imaginei todo um universo. Mas o dinheiro me tragou. E me vomitou naquele escritório. Hoje tenho tudo o que não quis. Casas, empresas, carros. Mas do que me servem? Na sua embarcarão não cabem cartões de créditos e nem Ferraris.

Creio que enfim chegou a minha hora,

Leve-me Caronte, não quero sentir mais nada.

Leve-me ao outro mundo, tome a gorjeta, poís não quero vagar nas margens por cem anos, já vaguei demais na terra.

Leve minha alma, poís ela já não me serve mais, talvez nunca serviu.

Vamos partir, não quero mais tardar

Nesse mundo infeliz.

Fabiana Alves
Enviado por Fabiana Alves em 11/06/2022
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