Ressurgi (Parte Final)

Acordei eufórica! O esperado dia. Estava começando a achar que minha felicidade não era apenas pelo anseio da descoberta, mas pelo evento. Eu nunca tinha ido à uma festa daquela categoria e agora havia sido convidada pelo próprio anfitrião. Queria vestir algo bonito, porém nada de cores chamativas e “divertidas”, queria algo que me representasse. Queria um vestido gótico. Só não tinha esse vestido. Assim que Scarllet foi para o trabalho comecei a procurar algo em meio às minhas roupas que se aproximasse, ao menos um pouco, de meu traje ideal. Nada. Tirei todas as roupas do guarda-roupas e revirei. Nada. Sentei em cima da pilha, foi então que vi, fixado em minha janela, um papel amarelado, nele estava escrito: “Seu vestido estará pronto para uso às 21h”. Arfei, só me restava esperar então.

As horas simplesmente voaram. Num piscar de olhos já eram 18h e minha irmã voltava do trabalho, trazia uma pilha de papéis que deveria organizar em planilhas no notebook e levar para o trabalho no dia seguinte. Iria trabalhar até tarde. Aquilo não era nada bom. Eu não havia contado para Scarllet sobre o baile, ela era superprotetora e jamais permitiria que eu saísse com um estranho a noite.

- Nossa! que sono..- bocejei me dirigindo ao quarto, tentando motivar Scarllet para que fizesse o mesmo. – Acho que vou dormir cedo hoje. A noite está tão chata. O que acha de deitarmos e assistirmos uma série ou filme juntas? – aquilo era infalível, Scarllet acordava cedo e sempre que se deitava, em minutos, pegava no sono.

- Também estou com muito sono, Vi. Mas preciso mesmo terminar essas planilhas. Amanhã não terei tempo para isso.- olhou com um olhar cansado.

Passava um pouco mais das 20h. Os minutos corriam e eu andava de um lado para o outro, da cozinha para a sala, da sala para o quarto, preocupada com meu plano de sair de casa que começava a fracassar. Scarllet bocejava de tempo em tempo, lutando para permanecer com os olhos abertos e terminar sua tarefa. Resolvi olhar pela janela, esta estava estranhamente embaçada, pois aquela noite não fazia frio, abri a vidraça e um vento álgido soprou por ela, foi quando percebi que uma neblina recaia sobre as casas e a rua. Fechei a janela e ia comentar o fato, quando deparei-me com minha irmã debruçada sobre os papéis, envolvida por um sono pesado, pois mesmo que a balançasse, não acordava. Com muito esforço levantei Scarllet apoiada em meu ombro e conduzi-a sonâmbula até o quarto, onde a confortei e deixei-a descansando. Tranquei a porta e fui ligeira até a sala, no relógio faltava exatamente um minuto para as nove horas. Quando a hora se completou, ouvi alguém bater à porta dos fundos, abri. Em uma caixa preta com fita vermelha no chão encontrava-se anexado um bilhete, nele estava escrito “Esteja pronta ás 22h”. Eu nem precisaria de todo esse tempo. Peguei a caixa, entrei e abri-a, que vestido deslumbrante. Preto com decote coração, longo e rodado, com mangas de renda negra e rosas vermelhas, um corselet de um material tipo couro. Era o vestido perfeito, era lindo. Aprontei-me depressa, às 22h abri a porta. A escuridão era total, a lua escondera-se, o vento álgido e eu não via uma sombra que julgasse ser Black. Será que ele estava atrasado? Havia sido tão categórico com o horário. Meus olhos corriam pela escuridão tentando perceber algo qualquer que fosse, então a nuvem que encobrira a lua despiu-a e eu pude ver. Ali parado encostado a uma árvore em meu quintal, Black Vitae. Estava elegantemente trajado e me observava, com o mesmo olhar incógnito de sempre.

- Você está linda, Viollet. – disse, aproximando-se de mim e estendendo a mão para me ajudar a descer a escadinha da porta.

- Você está muito elegante. – disse tentando ofuscar um pouco meus sentimentos em vê-lo. Droga de sentimentalismo adolescente.

- Vamos. O baile já começou. Lembrando que você não deve ficar longe de mim.- alertou-me tomando-me pela mão.

- Por que? Por que não devo ficar longe de você? Qual problema? Os convidados vão me devorar viva… – sorri de minha piada esperando a mesma reação. Porém, Black olhou com um olhar severo e fez-me engolir seco.

- Se você não vai levar a sério minha recomendação é melhor que se tranque em casa e durma.

- Desculpa. – suspirei. - Não vou sair de perto de você. - Ele agora parecia irritado.

Caminhamos em silêncio em meio à neblina que pairava no ar. Meu coração agitado deixava-me ofegante. Eu estava tão ansiosa. À frente da casa, carros negros de modelos variados estacionados, a casa iluminada exalava harmonia. No fim, parecia uma festa comum e deslumbrante de membros da alta sociedade.

- Venha por aqui, Viollet. – disse-me Black, abrindo a monumental porta de duas folhas e me permitindo ver a sala de estar que transformara-se, agora, em salão de festa.

- Que lindo! – era tudo o que conseguia dizer, deslumbrada diante de tanto glamour.

No salão, pessoas alegres dançavam, conversavam e sorriam. Todos muito bem trajados, com esmoquins e vestidos pomposos, cobertos por toda sorte de jóias e adereços finos. Todos curiosamente vestidos de preto. Era inacreditável eu estar ali, com aquelas pessoas, com Black, que somente a pouco mais de uma semana deixara de temer. Estava observando tudo nos seus mínimos detalhes quando percebi, vindo em nossa direção, a senhora Minerva Vitae.

- Olá, Black. Aguardava sua chegada. Precisamos que toque divinamente seu piano e encante nossos convidados. – disse ela sorrindo e dirigindo-se a Black, mas sem tirar os olhos de mim.

- É claro, Minerva. Farei isso.

- Então vejo que trouxe uma acompanhante esta noite. –observou ela encarando-me.

- Sim. Essa é minha convidada especial, Viollet Sunt. Ela deverá ser tratada como uma de nós. – disse Black secamente, fitando Minerva nos olhos.

- Ow! Não se preocupe. Comunicarei os outros. Ela não será tratada como um dos de fora.- sorriu fitando-me ameaçadora nos olhos. – Não vá andar sozinha por aí. Pode acabar se perdendo. – deu-nos as costas e saiu.

Aquela família era muito enigmática. Pareciam gentis, mas seus olhares eram carregados de malícia e até raiva, como se quisessem despertar o medo em quem os ousasse fitar. Eu sentia-me ameaçada com aquele alerta, não sairia do lado de Black nem que me pagassem uma boa quantia.

Ele seguiu até o centro do salão onde estava seu piano, assentou-se e começou a tocar. Era realmente divino, ele tocava com tanta paixão, todos ficaram parados ouvindo e apreciando aquelas belas notas que saltavam do instrumento. Eu, igualmente os demais, também apreciava o talento de Black. Era apaixonante, ele era apaixonante. Embora, fosse muito esquisito, era difícil vê-lo sorrir de uma maneira descontraída ao invés de maliciosa ou sarcástica. Envolvia-me com a música quando notei que pares de olhos de muitas direções recaiam sobre mim, analisando-me curiosos, alguns dos que me olhavam cochichavam entre si. Lembrei-me da advertência de Black e fui para perto.

Após sua apresentação impecável, Black levantou-se ignorando os elogios de admiração dos convidados ao seu redor.

- Venha. Vamos sair daqui. – disse-me, tomando-me pela mão e levando-me ao outro lado do salão.

- Por que não podemos nos misturar com as outras pessoas? – perguntei ao lembrar do que Minerva dissera.

- O que você quer? Quer dançar?

- Não sei dançar. Só queria conhecer as outras pessoas.

-Não é uma boa ideia. Eles não encararão as coisas da maneira que estou encarando. Trouxe você com um propósito, Viollet, mas de nada vai adiantar se você for teimosa.

- Não entendo o motivo de todo esse mistério. São pessoas como nós, não me importo se são cheias de grana. Você me disse que me mostraria quem é, tudo o que vi até agora foi você tocar piano e isso eu já conhecia de você. Pensei que iria se abrir a mim, me apresentar pessoas e falar o quê fazem, o quê são... – falei já começando a me aborrecer com toda aquela enrolação.

- À meia-noite começará o desfile, você entenderá tudo quando este acabar. Prestarei as devidas explicações aos questionamentos que surgirão em sua mente. Mas agora só precisamos observar.

- Oi, Black. Você foi fantástico, como sempre.- disse Julien que acabara de se aproximar, junto com Brown, para cumprimentar o primo.

- Obrigado. – respondeu Black indiferente ao elogio.

- Então você já escolheu uma das beldades, não é seu esperto?!

- Essa é Viollet. Minha convidada e ela não é o que vocês pensam.

- Ah, entendi. Então a Viollet é uma garota comum da cidade, não é mesmo?! Deve ter algo de especial para tê-la convidado. – disse Johan, pegando minha mão e olhando penetrante em meus olhos. Tive a impressão de que, ao me olhar, seus olhos cintilaram um brilho vermelho, um arrepio varreu meu corpo.

Black enraiveceu-se, sua feição tornou-se dura. Ele tomou Johan pelo braço e fitou-o nos olhos, ao fazer isso notei que sua esclerótica tornou-se completamente negra e sua íris vermelha como sangue.

-Tire suas mãos imundas dela e não ouse tocá-la mais. Vai se arrepender se tentar contra a vida da Viollet.

- Parece que você encontrou sua perdição, Black. Ou você a torna um de nós ou ela será devorada em um segundo nesse meio. – provocou Johan que também modificara seu olho assumindo o aspecto macabro.

Horrorizei-me com o fenômeno e recuei esbarrando em pessoas que passavam atrás de mim. Aquilo era sobrenatural, aqueles dois não eram humanos. Eram demônios.

- O quê vocês são? Que espécie de monstro são vocês? – perguntei aterrorizada me afastando.

Os holofotes acenderam-se direcionados para um palco no salão atraindo nossas atenções. A música parou, a senhora Vitae pegou o microfone e fez a introdução. O desfile começaria, era meia-noite. Ao sinal os modelos começaram desfilar, 61 belas moças e rapazes que usavam lindas roupas assinadas por grandes nomes do mundo da moda, entretanto, as roupas não eram o ponto principal e sim a beleza dos modelos, um deles seria o premiado da noite, o escolhido, por um júri especial. Os demais seriam escolhidos e patrocinados, cada um, por uma das 30 famílias presentes.

O desfile era realmente interessante, não era um desfile de moda, estava mais para um miss universo dos Vitae. Os modelos passaram horas indo e vindo com roupas para diferentes ocasiões e até lingeries. Eu estava curiosa para saber quem o júri escolheria.

Finalmente, chegou o momento, a senhora Vitae sumiu e em poucos minutos voltou com o resultado. A escolhida ou escolhido ficaria no centro do palco para receber o prêmio, enquanto que os outros que fossem escolhidos pelas famílias deveriam descer e ficar ao lado de seus patrocinadores. Black me pegou pela mão e levou-me para perto de sua família eles também patrocinariam modelos e precisavam cumprir o protocolo. A senhora Vitae andava de lá para cá olhando fixamente para os modelos, então ela parou, encarou uma moça negra, linda, de cabelos encaracolados, olhos graúdos e brilhantes e uma pele aparentemente aveludada.

- Você. – disse com um tom entusiasmado. -Você é a escolhida. A garota mais linda da festa, a garota perfeita. Você encantou o júri especial.

A garota parecia não acreditar, começou a chorar abraçando as companheiras. Ela seria internacionalmente famosa e teria todo o luxo que essa vida a proporcionaria. As outras garotas e os rapazes aplaudiam a vencedora. Logo após o anúncio, as famílias começaram a escolher seus modelos, até não restar nenhum sem patrocínio, a família de Black patrocinaria dois.

Todos desceram, deixando somente a escolhida no palco. Era a hora da premiação. A senhora Vitae, com a ajuda de outra senhora, trouxe um buquê de flores, um estojo com um colar de pedras preciosas que era a premiação, uma bacia reluzente, um jarro e um castiçal. Novamente: Que merda era aquela?!

A bacia foi posta ao chão em frente a moça, a senhora desconhecida segurava o jarro e o castiçal. A moça aguardava ansiosa pela premiação, todos assistiam silenciosos à cerimônia. A senhora Vitae entregou o buquê a moça que sorria encantada, deu a volta por trás da modelo e colocou-lhe o colar ao pescoço. Todos a aplaudiram, a moça agradecia alegremente à plateia. Nesse momento, um badalar no relógio do salão, todos do salão, exceto os modelos, pararam de aplaudir e olharam fixamente para a moça que parecia não entender nada. Por trás dela, a senhora Vitae estendeu a mão, um objeto cintilou, e em fração de segundos a mulher cortou-lhe a garganta, fazendo um fluxo intenso de sangue escorrer para dentro da bacia.

Gritaria, os modelos alvoraçavam-se tentando correr, eu estava paralisada não acreditando no que meus olhos viam. As famílias transformaram-se em monstros de olhos enegrecidos e íris vermelhas com dentes pontiagudos que surgiam em suas bocas, eles capturam seus modelos escolhidos mordendo uns e desacordando outros, no palco a senhora Vitae também transformara-se e agora finalizava seu ritual macabro derramando na bacia o líquido do jarro e ateando o fogo do castiçal sobre esta, imediatamente uma fumaça vermelha surgiu exalando um aroma de rosas. O ritual estava completo. Um ritual ao Diabo.

Olhei aturdida ao meu redor, pessoas mortas ensanguentadas no chão, três, quatro, cinco vampiros debruçados sobre elas sugando-lhes o líquido viscoso. Eu senti ânsias de vômito, estava prestes a desmaiar.

-Blaaaaaaaaack! - gritei. Ao virar-me, lá estava ele debruçado sobre o corpo de uma moça que se debatia freneticamente quase chegando ao seu suspiro final.

Ele levantou a cabeça e olhou-me com os olhos satânicos, levantou-se devagar, a boca destilava líquido carmesim, dentes à mostra. Começou a se mover lentamente em minha direção. Então eu corri, corri desviando dos monstros que surgiam em meu caminho, corri embrenhando-me ainda mais no casarão. Queria achar um cômodo seguro, onde eu pudesse me esconder e fugir dali assim que possível. Agora tudo fazia sentido, como um quebra cabeça em minha mente. O comportamento dos Vitae, tudo fazia sentido. As exigências no formulário eram para garantir uma oferenda genuína ao Diabo. Tudo fazia um maldito sentido.

Corri desnorteada pelos inúmeros cômodos da casa, entrei de um em um e acabei encontrando uma espécie de depósito de quadros velhos. Olhei procurando fuga por uma janela. Nada. Sentei atrás de um quadro coberto por um pano, abracei meus joelhos e comecei a chorar. Aquilo era muito mais do que eu imaginara, era muito mais do que poderia aguentar. Eu estava perdida ali, trancafiada com seres cruéis que, até pouco tempo, eu pensei que nem existissem. Eu iria morrer, tinha assinado minha própria sentença de morte.

- Viollet?!

Eu sabia que ele me encontraria. Eu tinha sangue fresco, ele sentiria meu cheiro a quilômetros, como um cão farejador atrás de pistas. Seria meu fim.

- Você me trouxe aqui para me matar como fez com aquelas pessoas inocentes? Por que? Por que eu? Eu não te fiz nada.. – solucei. - Me deixa viver, por favor. Eu prometo que não contarei nada do que vi. – chorava desesperadamente. Eu só queria sair viva daquele lugar.

- Eu não quero matar você, Viollet. Você queria saber quem eu sou e eu me mostrei a você. É isso que eu sou, Viollet. Sou uma criatura das trevas que suga a vida das pessoas até a última gota. Eu mato para existir, eu sinto prazer ao tomar do líquido vital. Eu sou um vampiro, Viollet Sunt.- falou com bastante tranquilidade.

A imagem de Black parado à minha frente, encharcado de sangue, era surreal. Eu me sentia em um filme de terror.

- O que você quer de mim, Black? – perguntei ainda nervosa.

- Eu te trouxe aqui porque quero te fazer uma proposta. Disse aproximando-se devagar. - Quero que seja minha, Viollet.

- O quê?! – levantei-me de um salto. Eu não acreditava no que acabara de ouvir.

- Desculpe. Tentarei dizer isso de maneira menos obscura.- sorriu. – Case-se comigo, Viollet. – disse fitando-me nos olhos e chegando mais perto.

-Você está louco. – afastei-me dele. - Eu nunca casaria com um demônio como você. Isso é um absurdo. Eu prefiro morrer à cometer essas atrocidades. – exclamei perplexa e enxugando as lágrimas. - Você é um monstro, Black. Um assassino insano e cruel. Eu nunca compactuarei com isso.

- Eu sei. Sei que é difícil para você tudo o que vivenciou nesta noite. Sei que você nunca aceitará ser uma de nós neste momento. Só fiz o que você queria desde que colocou os olhos em nós pela primeira vez, eu me mostrei a você, Viollet. – dirigiu-se até a janela embaçada adjacente à mim. – Pode parecer loucura, minha querida, essa proposta indecente. Mas acontece que em todos esses anos de minha existência eu imaginei que jamais encontraria alguém com quem me ligasse instintivamente, alguém que me atraísse e me impelisse a proteger. Isso parecia improvável. Até conhecer você. Por um tempo tentei ignorar meu desejo de estar perto, até consegui nos primeiros dias, mas não adianta. Quando se está ligado, não importa aonde vá, mais cedo ou mais tarde, precisará voltar para juntar-se a quem está preso na outra ponta do cordão. – virou-se para mim e pegou-me a mão. – Eu não posso fazer com que você escolha ficar ao meu lado, Viollet. Não posso fazer com que me aceite ou goste de mim, embora eu ache que não seja necessário convencê-la desse sentimento, essa é uma decisão sua e eu posso esperar.

Desvencilhei-me de Black e sentei em uma cadeira, antiga e empoeirada, no canto do quarto. Eu estava completamente envolta em pensamentos. Era óbvio que eu gostava dele, apesar da personalidade instável e toda aquela loucura que presenciara. Mas minha consciência, minha humanidade, jamais permitiria que eu me tornasse aquilo. Eu não poderia ceder àquela insanidade. Foi nesse momento que um questionamento passou por minha mente.

- Como? Como, todos esses anos de práticas atrozes, vocês jamais foram descobertos? Como ninguém nunca buscou por essas pessoas que acabam aqui? O que vocês fazem com a mente das famílias desses jovens? – indaguei realmente curiosa. Era cada vez mais difícil digerir toda aquela informação.

- Eu sabia que esse seria um dos seus primeiros questionamentos. A resposta é simples. As pessoas não descobrem, elas não buscam, porquê simplesmente não têm nada a descobrir ou buscar. Elas não sabem e não lembram. É um transe infinito.

- Então vocês fazem uma espécie de lavagem cerebral para que as famílias nunca mais lembrem de seus entes queridos? – era inacreditável.

- O sacrifício, Viollet. Ele não é uma pequena parte de todo o ritual, ele é a parte mais importante do ritual. Sem ele nós já haveríamos deixado de existir há décadas. Enquanto o pacto for mantido nós jamais seremos descobertos, as famílias nunca lembrarão dessas pessoas, logo, nunca virão atrás de respostas. Nossa existência estará garantida.

- E Quais as condições desse pacto?

- O mais formoso e puro dos escolhidos deve ser sempre sacrificado ao cobrador da dívida. Isso garantirá que permaneçamos no anonimato, que o transe recaia sobre as famílias e os moradores do bairro sejam tomados pelo sono enfeitiçado. Dessa maneira, nossas práticas jamais virão à tona e nossos perseguidores nunca nos encontrarão. Foi a única maneira que encontramos para que não fôssemos extintos um a um.

- Extintos? Isso não é impossível? Os vampiros não deveriam ser eternos?

- A ideia é romântica, mas não condiz com a realidade na maioria das vezes. – sorriu com canto dos lábios, olhando para o teto como que divagasse em pensamentos. – Pode não ser de difícil compreensão para você, Viollet. Há quem queira nos matar. Nossos inimigos mortais. Por gerações eles perseguiram, torturaram e liquidaram nossa raça. Minha família foi uma das poucas que conseguiram sobreviver, conseguimos fugir e, com ajuda do pacto, nos escondermos. Estivemos protegidos por décadas, eles não faziam ideia de onde estávamos ou como chegar até nós. Foram anos de completa paz. Mas parece que enfim coloquei tudo a perder. – falou esboçando uma expressão de desapontamento.

- Como pôs a perder? Você não fez tudo certo? – parecia idiota continuar com aquela conversa ao invés de tentar fugir, mas eu estava realmente interessada na história que Black começara a me contar.

- Eu fiz uma tolice, chamei atenção. Posso ter cruelmente matado um deles, deixei rastros de minha existência e paradeiro, não demorará muito até eles chegarem a nós. Foi um ato de extremo impulso, quando voltei a mim, era tarde. Eu não poderia deixá-lo vivo, se houvesse dificilmente você estaria aqui, Viollet.

- Do que você está falando? Por que eu não estaria?

- Ele estava em seu encalço. Deveria desconfiar de você, que tivesse alguma ligação ou até fosse uma de nós, uma vampira. Há anos que eles não chegam a lugar nenhum com suas caçadas, devem estar desesperados para encontrar rastros. Eles são sagazes e impiedosos, não perguntam data e nem as horas. Simplesmente perseguem, torturam e matam aqueles que eles acreditam ter uma espécie, do que eles chamam, de aura negra. Você seria inutilmente morta, caso eu não tivesse intervindo.

- O que você está dizendo é que aquele homem que me perseguiu era, na verdade, um caçador de vampiros e não estuprador como você disse? – aquilo já era demais para mim. Como minha realidade chegara àquele ponto?!

- Sim. Ele era um deles. Era um Sanctus. Eu tive ódio quando finalmente entendi as intenções dele, fiquei fora de mim. Eu não permitiria que ele tocasse em um fio sequer de cabelo seu, que ele te machucasse sem motivo algum. Ele mereceu aquilo. – Black parecia completamente possuído pelo ódio.

Era isso então, os Sanctus, uma das famílias mais antigas do bairro, eram caçadores de vampiros. Minha situação ia de mal à pior, não bastasse uma família de vampiros à qual me sentia completamente ligada, agora havia caçadores na minha cola achando que eu era um deles. Como eu me livraria disto agora?! Eu estava perdida. Mas cedo ou mais tarde eles chegariam até mim e cobrariam o sangue derramado do irmão, ou melhor, o sangue sugado.

- Eles estão no nosso rastro agora, Viollet. Não demorará muito até chegarem até nós. Como humana, você é vulnerável. Eles podem nos torturar por dias, meses, mas só morremos definitivamente quando completamente expostos à luz solar, viramos pó em segundos, também morremos quando decapitados por prata pura ou incendiados, mas esses métodos são mais demorados. Não há uma maneira mais eficaz que o sol.

- mas já vi você caminhar durante o dia.

- Completamente coberto.

- Entendi. – suspiro. - O que eu faço? Se eles chegarem até mim, podem me matar ou até mesmo a Ca! Eu não quero isso. Você precisa me ajudar. Eu só tenho a Ca. – comecei a chorar desesperadamente. Isso era demais pra mim.

- Junte-se a mim, Viollet. Prometo que a protegerei com toda força que há em mim.

Nesse momento. Um barulho ensurdecedor no terraço, uma bomba. Black saiu tão veloz do quarto que era quase como se houvesse se transformado em um fantasma na minha frente, também saí do quarto e fui até as escadas, no salão, três homens vestidos com sobretudos negros usavam lâminas afiadas que, quando atingiam os adversários, decepavam-lhes os membros. Os homens tinham em seus pescoços os crucifixos reluzentes do mesmo material das lâminas, “prata", imaginei. Eram os Sanctus que haviam descoberto o covil dos vampiros e agora vingavam bravamente o sangue do irmão, Black lutava, feroz, contra um deles que tentava de todas as maneiras atingi-lo, Black era bom, mas os homens eram muito melhores com suas espadas e lanças, pouco a pouco eles iam derrotando os vampiros. Eu estava boquiaberta com a luta, tão distraída que não percebi que um dos Sanctus acabara de livrar-se de seus adversário e se aproximava da escada.

- É agora que acabo com você sua prostituta, amante de Satanás.

Eu levei um susto. O homem levantava a espada, minha única reação foi sair correndo. Ao virar as costas levei um golpe no ombro, um corte profundo que fez meu sangue jorrar abundante pelas escadas. Gritei, coloquei a mão no ombro e continuei correndo. O homem corria atrás de mim, entrei novamente no quarto em que me escondera outrora, peguei um busto velho que estava em uma estante e arremessei contra a vidraça que se espatifou, o caçador apareceu na porta, tomei coragem e sem pensar nem um segundo mais, saltei pela janela. Alguns arbustos que embelezavam o jardim amenizaram-me a queda, meu ombro, muito machucado, pingava sangue por toda parte, sentia-me fraca, como se fosse desmaiar. Não! eu precisava sair dali, tinha que ir pra casa, acordar Scarllet e sair daquele lugar imediatamente, aquele lugar era o Inferno. Tomei o caminho de volta pra casa, já me aproximava quando notei o homem vindo atrás de mim, ele trazia consigo uma espécie de garrafa ou galão.

- Ah, mas que inferno! Me deixe em paz, seu desgraçado! Eu não sou o que você pensa! - gritei enquanto corria.

- Você é uma deles! Associada aos demônios! Por sua causa eles mataram Jeremias. Porém, foi também por sua causa que encontramos o covil de belzebu.

Cheguei a minha casa, fui até os fundos e abri a porta. Já estava trancando, quando ele, com um único baque, arrombou a porta. Com a porrada fui lançada longe e minha vista começou a escurecer.

- Morra Vadia, morra!

Desmaiei. O homem pegou o galão e espalhou um líquido por toda a casa, isso feito, ateou fogo.

******

Sinto uma dor terrível no corpo, um gosto repugnante de ferro na boca. Me sinto estranha, como se não estivesse no meu corpo. Abro os olhos, estou em uma cama, olho para o lado e vejo Black, seu primo Johan, seus pais. todos estavam me observando, esperavam um despertar.

- O que houve? Onde estou? – perguntei ainda confusa.

- Bem vinda de volta, Viollet, você está na nossa casa. – disse Minerva Vitae sorrindo.

- O que aconteceu? Eu quero saber o que aconteceu agora? Por que estou aqui e não na minha casa? – estava preocupada, preocupada com Scarllet.

- Durante a luta, um Sanctus perseguiu você. Ele a atingiu com uma espada afiada, você sangrou muito por toda casa. Infelizmente, eu estava encurralado e não pude atender logo o chamado da sua alma em perigo. – disse Black, passando a mão no cabelo e se acomodando na poltrona ao lado da cama. – Quando finalmente me desvencilhei do caçador, fui até você. Ao chegar na sua casa, percebi que estava em chamas, entrei velozmente e a encontrei caída na cozinha, seu pulso era fraco mas existente, seu vestido queimara uma parte e com ele uma parte de sua perna, estava tão inconsciente que nem sentira, imagino. A casa estava completamente tomada.

- E minha irmã? Você a salvou não é, Black? diz que a salvou!- as lágrimas brotam no canto dos meus olhos, mas ardem como pimenta.

Black suspirou:

- Eu fui até o quarto. O desgraçado jogou gasolina na cama dela. Ela já havia queimado quase completamente. Eu acho que ele queria que você queimasse lentamente, pois não fez o mesmo com você. Eu as tirei de lá.

- O que?! Não não não! Minha irmã não! Minha Scarllet Não! – as lágrimas derramam-se em abundância manchando de vermelho os lençóis brancos. – O que é isso? Por que minhas lágrimas são de sangue? O que você fez comigo, seu maldito? Maldito!

- Viollet, entenda, essa foi a única maneira de te salvar. Você iria morrer naquele momento. Se eu demorasse mais um minuto estaria tudo perdido.

- Que se ferrasse! Eu queria morrer! Por que não me deixou morrer? Por que, Black, Por quê?

- E como você vingaria a morte da Scarllet se estivesse com ela no mundo dos mortos?

Respiro fundo. Não consigo pensar em nada, somente nesta dor despedaçadora que arrebenta em meu peito, a dor de ter perdido a única razão para eu continuar, meu bem mais valioso, minha única família.

- Se você salvou a mim, Black, por que não salvou Scarllet também? Por que não a tornou uma vampira?

- Não é assim que funciona, Viollet. Não ressuscitamos os mortos. Só a salvei porque ainda estava viva. Só você pôde ressurgir.

- Desgraçado! E achei que o havia despistado, que ele havia desistido. Foi tudo tão rápido.

- Você baixou a guarda, Viollet, eu não te culpo. Mas agora você sabe, não importa o quanto você corre, o quanto corre para se distanciar. Quando parar para puxar o fôlego, quando olhar para trás e não notar mais nem um sinal, uma sombra sequer daquele que te persegue. É nesse momento que teu algoz te capturará.

Eu continuo chorando, tudo é minha culpa.

- Eu quero vê-la. Você a trouxe para cá?

- Sim. Ela está lá embaixo.

Ao desembrulhar minhas pernas percebo o quão queimadas estão. Aquilo me assusta, sinto uma dor mas é suportável. O que é estranho , se eu ainda fosse a mesma deveria estar gemendo de dor.

- Não se preocupe com os ferimentos. Eles sararão em breve. – disse Johan ao me oferecer ajuda para levantar.

Nos dirigimos neste momento até a sala. Ao descer os degraus noto que no meio da sala, que no dia anterior era o salão de baile, encontrasse um leito de madeira ornado de flores coloridas e delicadas, entre elas, Scarllet Sunt. O rosto desfigurado não escondeu sua beleza. Não consigo conter minhas incômodas lágrimas. Eu jamais veria outra vez seu sorriso, ouviria sua voz, veria seu rosto corado e harmônico. Scarllet estava morta.

- Obrigada, por isso. Por cuidarem para que ela repousasse em um leito tão mimoso. – falei enxugando os olhos.

- Não fizemos mais do que nossa obrigação, querida. Afinal, agora você é parte dessa família. – disse Minerva.

- O que eu faço agora? Estou desnorteada. Perdida.

- Acalme-se, Vi. – é a primeira vez que ele me chama assim.- Tudo se encaminhará para o propósito final. Como deve imaginar, os Sanctus levaram muitos de nós. Nós, do contrário, fora o que eu mesmo matei, por ele estar despreparado, levamos apenas mais um deles. Eles são fortes, experientes, munidos de armas poderosas e possuem livros antigos que os ensinam a nos caçar. Eles sabem onde estamos agora, precisamos ir embora, fazê-los acreditar que fugimos e então, quando eles menos esperarem, retornaremos e acabaremos com a raça dos Sanctus. Nunca mais eles nos perseguirão. Estou farto de me esconder deles, quero exterminá-los.

Estou submersa em pensamentos e ao olhar para Black percebo que seus olhos se tornaram sombrios. Ele não está blefando. É estranho a maneira como o ódio de Black Vitae começa a inundar meu agora gelado coração. Eu quero aquelas mortes, posso sentir meu peito queimar de ódio. Os Sanctus irão pagar, eles irão pagar bem caro por tudo que roubaram de mim.

- Eu prometo!

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Fazem dois dias desde que tudo aconteceu. Estamos de partida, vamos para outro lugar do Brasil, talvez até para fora dele, ainda não sei para onde. Fiz minhas primeiras refeições e sinto-me forte como nunca, sinto que sou capaz de derrubar um touro. Nas primeiras horas da minha descoberta tive nojo, quando tive que tomar sangue repugnou-me o estômago, mas no primeiro gole vi que era delicioso, não consegui parar. Pobre moça! Vi aflorar em mim sentidos e habilidades aguçadíssimos tão rápido como num passe de mágica. Sinto-me perfeita. Sinto-me mais inteligente que nunca. Em meu peito o desejo de vingança é quem dita as regras e sinto que por mais que acabe com a raça dos Sanctus, ele é insaciável. Eu acho que isso faz parte, faz parte de quem eu sou agora, um ser das trevas. Black me ensina aos poucos como controlar todas essas sensações, é tudo novo para mim, mas ele sabe que juntos seremos imbatíveis e eu sei também. Somos imbatíveis. Nossa união é perfeita e ele é tudo o que tenho agora, eu o amo e o protegerei com toda força que há em mim, assim como ele me protege. Nós venceremos aqueles caçadores malditos e extinguiremos um a um dos filhos e netos deles até não haver mais nenhum verme descendente sobre a face da Terra e então viveremos livres e felizes eternamente.

São 22h agora, é mais seguro viajar a noite para nós, lidamos bem com as surpresas da escuridão, partiremos em breve. Porém, antes de ir, ainda preciso visitar um lugar...

Vampire Poet
Enviado por Vampire Poet em 11/04/2022
Reeditado em 11/04/2022
Código do texto: T7492457
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