Quem Dera Eu
A obscuridade roubou o brilho que havia em meu rosto. A doçura e leveza se distanciaram de mim, e em mim ficou um vazio que só ela podia preencher. Não consigo mais esconder o misto de sensações que dilacera minha alma e me invade por completo. O que acontecerá comigo? O que ainda terei que suportar para estar vivo? A incerteza e o medo pairam sobre mim. Esse abstrato fixou-se em minha derme e emanou um pavor de me perder de mim mesmo.
Quem dera eu pudesse voltar no tempo. Se conseguisse tal feito, não provaria o dissabor que acabou com minha vida. Não sentiria o gosto acre que me atormenta, me amargura e eu não estaria sozinho, se não tivesse provado esse 'amor' doentio que me desgasta, me corrói de dentro para fora, eu teria verdadeiramente uma vida.
Meus amigos se foram, e minha família abandonou-me, não os martirizo, muito menos os reprimo. Confesso: Se eu pudesse me abandonaria ainda mais, no entanto, sou covarde. Todavia, com toda a contrariedade e negatividade que me assola, ainda estou meio vivo e anseio viver a vida que tinha antes. Não sei se é possível concretizar esse desejo insano de viver. Entretanto, nos poucos minutos de lucidez que tenho durante o dia, desejo intensamente voltar no tempo em que era 100% vivo.
Seria pai de filhos, teria uma casa barulhenta e cheia de sorrisos, uma mulher terna, cuidadosa e amável me faria desejar ansiosamente chegar em casa para viver de fato a felicidade. Meus filhos, arteiros, brincariam no jardim de nossa casa com os muitos animais de estimação que teríamos. A vida seria simples, mas eu ‘seria feliz’ completamente, eu realmente ‘seria feliz’
Meus pais estariam vivos, não teriam morrido de desgosto por minha causa e poderiam gozar da felicidade de terem um filho vivendo em completa felicidade. Nos finais de semana e feriados, faria questão de passear com eles, meus filhos adorariam sentir a doçura que é ter avós. Essa felicidade ilegítima criada pelo escapismo e condensada nos poucos minutos em que ainda sou eu mesmo é uma representação do que eu podia ter, essa visão mais me condena do que me acalma, pois sei que é impossível tornar-se realidade.
Meu estado de lucidez está quase se esvaindo, minha força dura apenas alguns minutos, pois minhas células e meu incontrolável desejo maldito me fará injetar o sabor acre que me faz perder todo e qualquer desejo de lutar. Não tenho mais forças de persistir, sou totalmente dependente dessa droga que me esfarela aos poucos fazendo-me voltar ao pó de forma degradante. Embora tenha esse desejo incontrolável nos meus poucos minutos, não tenho força para vencer. Meu verdadeiro eu não consegue emergir do lamaçal que eu mesmo criei. Na areia movediça, tento mover-me, ação sem sucesso. Ao passo que tento fugir, fico mais preso.
Minhas mãos não me obedecem e involuntariamente preparam a taça maldita que me mata pouco a pouco. De posse da morte nas mãos, no último lapso de consciência, captei crescente em seu esplendoroso nascer, a lua com tamanha exuberância a perturbar-me com veemente insensatez. Ela estava completa e eu não... Como eu sob a luz da lua estava em tamanha escuridão? “ Em que espelho ficou perdida a minha face”