Ressurgi (Parte I)
Espelho lunar resplandecente. Redondo enamorado da noite fria, reflete-se nas águas negras misteriosas do lago que, ao tocar de um estranho inseto, configuram agora um bailar de pequenas ondulações ébrias. Ao longe, no horizonte, grandes montanhas, como pintadas a pincel e tinta fresca, embelezam a obra majestosa da natureza. Árvores frondosas, cheias de viço e silenciosas ao meu redor e pequenos pontos luminosos que brilham ora aqui, ora ali ressaltam o efeito de encantamento em minha contemplação.
A madrugada sempre fora excitante para mim, mas agora tornou-se completamente extasiante, viciante. Minha aprimorada percepção aos detalhes da noite começam a embriagar-me. Quero mais! Preciso de mais! Quero descobrir toda beleza etérea abrigada pela escuridão.
Na verdade, este é um dos motivos mais pertinentes para minha imediata aceitação à minha nova condição. Faz parte da minha nova vida, se é que assim posso classificar minha existência. Tudo belo, lúgubre, mas ainda assim belo.
De súbito, um farfalhar de asas, aves de rapina. Um olhar concentrado e penetrante de uma coruja captura-me a atenção, retirando-me de meu transe e fazendo-a recair sobre um despreocupado rato silvestre que vaga por ali, certamente atrás de alimento. Sorrateira, a coruja aguarda o melhor momento para seu bote fatal. Até que, sem perder um segundo mais, avança inquisidora sobre a presa, levando-a imobilizada, indefesa, para longe dali.
Este ato de puro instinto de sobrevivência, fez arrepiar-me e envolveu-me o estômago em ânsias. Afinal, até a mais bela noite de luar prateado esconde perigos iminentes. Seres noturnos carregados de instinto, prontos a atacar no primeiro descuido da presa. Sorver-lhe a vida até a última gota de esperança. E ali, um ser é apagado da face da Terra.
Eu podia entender agora o que Black me disse assim que abri os olhos: Não importa o quanto você corre, o quanto corre para se distanciar, quando parar para puxar o fôlego, quando olhar para trás e não notar mais nem um sinal, uma sombra sequer daquele que te persegue, é nesse momento que teu algoz te capturará.
Toda essa filosofia cria-me um espírito barroco. Se de um lado a bondade insiste gritante em meu inerte coração, por outro o ódio e o desejo de vingança envolvem-me prevalecentes. Assim, vou embora dali, daquele lugar fantástico, lugar que poderia muito bem ser o seu favorito, deixo-a adormecida em seu leito sepulcral. Vingar-me-ei! Eles pagarão com suas vidas, com todo seu sangue, até a última gota viscosa do puro néctar vital, o preço de tirarem de mim meu maior tesouro. Minha Scarllet Sunt.
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Tudo mudou quando, há exatamente seis meses, trocamos Belém do Pará (cidade quente, porém cheia de vida e cores) por um singelo vilarejo em Canela, no Rio Grande do Sul, (cidade fria, linda, e muito fria). Scarllet recebeu uma proposta de emprego, iria trabalhar das 07h às 18h como recepcionista em um hotel local. Proposta perfeita para mudarmos de vida, era tudo que Scarllet queria: frio, influência europeia, frio, belas paisagens, frio, lindas flores e mais frio. Eu, é claro, contentava-me em vê-la sorrir. A vida não andava nada fácil desde o falecimento precoce de nossos pais.
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Naufrágio. Seria a primeira vez que eles iriam ao Marajó, estavam tão empolgados que mal podiam esconder os sorrisos largos e amáveis. Seria a tão sonhada viagem de férias. Planejávamos há meses. Mas…
- Vamos Viollet?! Você vai adorar as praias, as paisagens lindas e ver os búfalos de perto. Vai morrer de medo dos búfalos. Ha ha ha!
- Não, pai. Tenho alguns trabalhos para fazer nas férias. Exercícios de matemática, resenhas de livros, pesquisas para a aula de história…
A verdade é que eu não estava muito empolgada com a viagem, barcos não eram o meu forte e, só de imaginar que ondas iam e vinham para lá e para cá, já sentia vontade de desmaiar.
Como boa e atenciosa irmã, Scarllet se ofereceu para cuidar de mim. O que fazia eu me sentir uma droga, sempre estragando a alegria das pessoas.
-Não se preocupe, Vi. Podemos ir à Estação das Docas à noite ou ao cinema. Será muito divertido.- disse ela, tentando me animar.
-Bom, precisamos ir. – disse mamãe. – A balsa partirá em poucas horas.
- Tchau, mamãe, papai. Amo vocês. - Dissemos Scarllet e eu.
Aquela era a última vez que nós os víamos com vida. É horrível lembrar. Se ao menos por um instante eu pudesse imaginar o que aconteceria, não hesitaria em ir, jamais os deixaria partir sem mim. Os abraçaria com força e os beijaria com todo amor que eu carregava em meu peito. Jamais os deixaria sós.
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Ao receber a proposta, Scarllet deu pulos de alegria. Era tudo o que precisávamos, esquecer a dor de outrora, deixar para trás todas as lembranças sofridas, recomeçar a vida. Nossa mudança foi rápida, o hotel tinha pressa para o início dos serviços. Mudaríamos e depois mandaríamos buscar nossos pertences. Ao chegarmos em Canela, o impacto foi grande. Um lugar lindo, é claro, mas bem diferente. Meus primeiros dias ali não seriam fáceis, imaginei.
Na primeira semana em Canela, procuramos conhecer a cidade, os pontos turísticos, as lojas tradicionais de chocolate. Foi divertido. Mas na semana seguinte me senti só, Scarllet passava o dia todo no hotel, o que me obrigava a ficar sozinha a maior parte do tempo, fazendo nada. Era a metade do ano letivo (Agosto), eu teria de esperar toda a burocracia escolar para dar entrada nas papeladas e voltar a estudar, enquanto isso: monotonia. Aliás, a monotonia e a vontade de morrer eram sentimentos frequentes agora. Várias vezes eu me encontrei a um passo de abandonar a vida, Scarllet era a única razão de eu continuar nesse Mundo. Ela me protegia, cuidava de mim, me incentivava a viver.
Nossa casa, um chalé ao estilo germânico com vista para morros cobertos de relva, com um singelo jardim de flores coradas e viçosas, um cercado não muito alto de madeiras pintadas em cor verde-oliva, era uma das poucas casas da redondeza, próxima o suficiente para Scarllet não se atrasar para o trabalho.
Os dias se arrastavam como os pés fracos de velhos com mais de oitenta. A solidão era enfadonha. Até que certo dia, embaçado como sempre, decidi caminhar um pouco pela rua de nossa casa, observei cada casinha com seus telhados cobertos de grãos de neve soltos e suas chaminézinhas fumaçando. Nada anormal até aqui. Então, foi aí que me deparei com a casa dos Vitae, família tradicional que morava há anos naquelas redondezas, inclinados à farras noturnas, sempre recheadas de muita música, danças e belas moças e rapazes como convidados, as festas tinham época marcada, a cada duas sextas - feiras. Eu, logicamente, não sabia de nada disso naquele instante. Uma casa luxuosa, com uma arquitetura barroca impecável. Parecia mais um castelo assombrado do que uma residência familiar comum. Encantei-me. Posso parecer louca, mas sempre apreciei um bom conto de horror e, onde há castelos tenebrosos, sempre há boas histórias macabras.
Passei, então, a observar a casa Vitae. Todo movimento, se uma folha sequer caísse das árvores no jardim, eram bem percebidas por mim. O que me intrigava muito era a ausência desses movimentos, a casa parecia abandonada, mergulhada em profundo sono. Nada se movia nela, por dias a fio a observei. Até que, numa manhã de sexta, para meu regozijo, a porta se abriu. Meu olhar atento, um rapaz, aproximadamente dezoito à vinte anos, trajando roupas estranhamente estilosas, coturno, calça e sobretudo negros, um guarda-sol, o que era esquisito. Ele saiu e seguiu em minha direção, ao perceber que se aproximava, escondi-me atrás da fileira de arbustos que ficavam à beira da rua. Ele não me viu, pensei.
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Aproximavam-se das 18h30, observava pela janela lateral da sala que dava para o início da rua, o garoto não voltara, pelo menos não o havia visto. Mas, ao longe, de suéter colorido de lã, saia pregueada preta, meia-calça preta, sapatos de boneca cor de vinho e um gorrinho vermelho, minha irmã Scarllet. Ri ao perceber o quão patricinha ela era e quão diferentes éramos. Eu amava cores neutras, cores frias. Scarllet amava o arco-íris.
Ela entrou pela porta da frente. Se dirigiu a cozinha. Lá, eu tomava uma xícara de chocolate quente com a mesma cara desanimada de sempre.
- E então como foi seu dia hoje? Está cansada de estar sozinha? – inquiriu ela – Quer fazer o quê hoje à noite? Podemos ir ao centro da cidade, quem sabe ir a uma cafeteria ou um lugar mais animado. Ouvi dizer que eles têm ótimos Pubs por aqui. Você vai adorar ouvir aqueles rocks estrambólicos que você ama, não vai? Ha ha ha!
- Só tenho 17, Ca. Não posso entrar em Pubs… - comentei.
- Bah! É mesmo! Mas vamos?! tira essa cara de morte e vai tomar um banho. Vamos ao centro.
- Bah? Que história é essa de bah? Ha ha ha!
- Ha ha ha! Os clientes falam muito isso. Tô começando a pegar deles.
- Bah… prefiro o bom e velho Égua! Ha ha ha!
- Pois é. Pelo menos serviu pra você rir. – ela sorriu docemente.
Às 20h estávamos no centro. Era uma bela cidade à noite. Parecia mesmo uma cidade europeia, com chaminés para todos os lados, vidraças embaçadas com o frio e muita alegria aconchegante no interior das lojas. Voltamos depois das 22h. Perdemos o horário conversando e rindo, em uma chocolateria, de histórias hilárias que a mamãe contava quando faltava luz e nos reuníamos na sala. Estávamos preocupadas com os perigos, éramos novatas ainda pelas redondezas. Caminhamos apressadas pela rua deserta de nossa casa, porém, mais afrente uma fileira grande de carros estacionados chamava atenção.
- O que está acontecendo? – perguntou Scarllet admirada.
- Não faço ideia. – respondi.
A curiosidade foi tamanha que passamos direto de nossa casa e chegamos à frente do castelo gótico dos Vitae. Uma festa animada acontecia em seu interior, silhuetas se movendo para lá e para cá. Dançavam, bebiam e gargalhavam ao som de música instrumental.
- Que esquisita essa festa! Que música chata. – disse Scarllet, me olhando de soslaio com um risinho no canto dos lábios.
- eu gosto. – respondi debochada, correspondendo ao olhar e ao risinho.
Gargalhamos.
- Vamos para casa. Se os vizinhos nos virem xeretando podem se incomodar.
Mal sabia Scarllet que eu vinha xeretando há dias a vida esquisita dos vizinhos. Dos quais, até o momento, só conhecia de vista o garoto mal humorado.
Naquela noite quase não dormi. Fiquei ligada no barulho do som que tocava distante, mas ainda dava para ouvir. Adormeci por umas horas e tive um sonho esquisito. No sonho o garoto Vitae, passava por mim como se não me notasse, de súbito eu sentia uma dor intensa no pulso como se algo me perfurasse, ao virar-me, via cravado em meu braço ensanguentado os dentes do garoto. Acordei-me aturdida, de repente um vento frio invadiu meu quarto e eriçou-me os cabelos da nuca. Olhei no relógio de cabeceira da cama, 4h45 da madrugada. Deitei-me e tentei voltar ao sono, Scarllet dormia como que pegada a um transe extraordinário. Já voltava ao sono, quando ouvi algo perturbador. Sons de gritos desesperados, choros e vozes apavoradas. Levantei-me de um salto e abandonei o quarto me dirigindo à sala. A luz do luar invadia o ambiente, olhei por uma fresta da porta, a rua permanecia calma e os gritos não mais ecoavam.
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Na manhã que se seguiu, tudo ocorreu como de costume. Scarllet foi trabalhar e fiquei sozinha em casa. Foi então que tive a ideia de investigar pelo bairro resquícios de algo que explicasse o que havia ouvido. Na casa da frente, regando suas belíssimas hortênsias, uma garota de tranças loiras cantarolava. Aparentava ter minha idade. Resolvi puxar assunto. Atravessei a rua e fui até ela.
- Olá. Como vai? Me chamo Viollet Sunt. Moro na casa à frente.
- Olá, bom dia. Vou bem. Já a vi várias vezes por aqui. – sorriu. – me chamo Elka de Laetitia.
Conversamos por horas. Elka era uma garota sorridente e engraçada. Contou-me sobre sua família, sua escola, seus amigos e o quanto amava morar ali. Nos identificamos, nos tornamos amigas. Marcamos de encontrar-nos novamente à noite e conversar mais. Ela iria me contar as histórias do bairro. Coisas que ela achava esquisitas.
- acho que você gosta de coisas assim, né?! coisas diferentes.
Eu sorri. Realmente. Eu era esquisita, me vestia esquisita. Papai comentava sempre o quanto me parecia com ele quando era mais jovem. Roupas pretas, roxas ou cinzas, piercing no nariz, argolas grandes, uma tatuagem de corvo que fiz no ombro escondida da mamãe. Papai dizia que eu era a pura rebeldia juvenil. Aquilo me animava. Talvez por isso ficasse tão claro meus gostos.
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Passei a tarde ansiosa pelo anoitecer, quando Elka me contaria as coisas esquisitas do bairro…
- Aposto que ela vai falar da família do castelo grotesco. - falei em voz alta.
- Falando sozinha, Vi? Começou cedo com as maluquices. – Scarllet sorriu.
- Só estou ansiosa. Fiz uma amiga nova no bairro, o nome dela é Elka.
- Elka, a garota loira aí da frente? – ela perguntou
- Exato. Você a conhece?
- Sim. A mãe dela vende flores na feira. Uma ótima senhora!- Scarllet se dirigiu à porta do quarto.- Bom. Por que não leva esses cookies que comprei para comerem lá na frente? Vou me deitar. Tive um dia cansativo hoje e estou com dor de cabeça.
- Problemas?
- Um cliente quis fazer confusão na recepção hoje. – explicou.- fez check-in fora de hora e quis engrossar quando cobrei o valor. Maior confusão.
- tá bem.- respondi pegando a caixa de cookies.- até mais tarde.
Saí pela porta da frente da casa e avistei Elka que também saía da dela. Atravessamos a rua e caminhamos juntas até a frente de uma árvore que tinha uma lâmpada apoiada em um dos galhos, debaixo da qual nos sentamos, de lá também dava para ver o castelo dos vizinhos.
- Então… – disse Elka dando início à conversa enquanto pegava um cookie da caixa.- Nosso bairro é um dos mais antigos da cidade e, por isso, algumas casas aqui são mais antigas que meus avós. – ela riu.- Existe a casa dos Silva, eles quase não ficam lá, aparecem mais na primavera ou férias de verão. Tem a casa dos Castro, o senhor Castro trabalha no necrotério, horrível né?! Ele também tem cara de alucinado, mas não é nada demais, ele na verdade até é bem normalzinho. Compra flores da mamãe nos aniversários de casamento. Tem a casa abandonada dos Sanctus e eu digo abandonada por eu mesma nunca vi um Sanctus por aqui, mas todo fim de semana tem uma faxineira que vai lá e limpa tudo. Enfim, essas são as casas e famílias mais antigas que temos por aqui. – Elka parou de falar e me olhou indagadora e risonha.
Aquilo era tudo que ela tinha a dizer? Que perda de tempo. Olhei para ela perplexa e as palavras quase não saem de minha garganta.
- Ma… mas.. e aquele castelo enorme que está bem ali? Ele não pode ser de agora! Parece que foi construído há anos! Que saiu de dentro de um conto de terror! - exclamei insatisfeita.
Elka explodiu em gargalhadas ao ver minha indignação.
- Eu sabia que era dele que você queria ouvir. – disse ela. – Bom, aquele é o castelo dos Vitae. Krai, Minerva e Black Vitae vivem lá. Também têm dois primos que passam os fins de semana com eles, são o Johan e o Julien Vitae. Desses eu nunca vi pai nem mãe, só os vejo raramente nas festas tradicionais dos Vitae.
- Festas Tradicionais? Como a de ontem?- perguntei.
- Exato! A cada duas sextas-feiras do mês os Vitae oferecem uma festa beneficente, na qual arrecadam dinheiro para projetos sociais na África e Ásia e em outros países desfavorecidos. É uma festa enorme, cheia de pessoas chiques e músicas chatas. Eles também promovem modelos, moças e rapazes jovens que gostariam de entrar nessa vida de passarela. Sempre tem concursos na festa. É que eu ouvi falar. Eles colocam anúncios na escola, em hotéis, em centros esportivos e em todos os lugares onde possam haver jovens com esse interesse. Eu mesma já quis participar, mas a mamãe nunca permitiu, ela diz que isso é coisa para meninas ricas que não têm compromisso com a família. –disse Elka demonstrando desapontamento.
- Talvez sua mãe só não queira ficar longe de você. Esses modelos viajam muito e quase não têm tempo para ficar com a família. – disse sorrindo para ela.
- É, deve ser isso. –Elka respondeu já mais animada.
- Que horas terminam essas festas? Eu não vi acabar ontem.
- Bom, eu nunca vi o término das festas. Sempre começa lá pras nove horas, mas quando bate meia noite eu tô caindo de sono e não vejo acabar. É incrível! Eu posso ter dormido o dia inteiro, mas nos dias de festa eu fico tão cansada que mal consigo abrir os olhos. Uma vez fiquei até tarde, tentando ouvir o término da festa, mas acabei dormindo na cadeira. – relatou.
- Nossa, que estranho. – comentei absorta. – eu nunca vejo nenhum Vitae. O único que vi acho que foi o garoto. Ele tem cara de mal humorado, mas um ótimo gosto para roupas. – falei.
- Ah, é! O Black. Ele é tão lindo, né?!
- Bom, aquela cara de gente doente não me chamou muita atenção. – ri.
- Tá Louca?! Ele é perfeito! Cabelos longos, negros e sedosos, olhar confiante e persuasivo, abdômen sarado… ui me arrepiei. Ha ha ha.
Elka era engraçada. Na verdade eu não tive tempo de observar todos esses detalhes, desde o dia da festa ainda não o havia visto.
- Mas assim.. eles não saem nunca de casa? Ficam trancafiados?
- É mais comum vê-los à noite. Durante o dia é quase improvável, a não ser que precisem ir até o centro.
- Entendi.- disse pensativa. - E o garoto não estuda?
- Estudava. Já terminou. Ele tem 23.
23 anos. Passei perto no chute de idade, nada mau. A vida intrigante dos Vitae ainda era interessante. Talvez eu descobrisse mais coisas se eu tentasse me infiltrar no castelo deles. Quem sabe esse tal concurso. Eu poderia me inscrever e ver o que acontecia, seria uma ótima oportunidade para saber mais sobre eles. Faltavam exatas duas semanas para a próxima festa. Eu tinha que me preparar.
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O domingo era dia de compras. Após o almoço iríamos ao mercado. Terminei com pressa a refeição, arrumei-me rápido, peguei a lista de compras e às 15h estávamos no centro. Enquanto Scarllet perambulava de um lado para o outro escolhendo verduras, informei-me onde ficava a biblioteca municipal, precisava fazer algumas pesquisas se quisesse mesmo mergulhar de cabeça nesse meu passatempo.
- Ca, posso ir até a biblioteca municipal? Gostaria de fazer algumas pesquisas. Fica bem perto daqui e antes das 17h estarei em casa.
Ela me lançou um olhar de desconfiança, mas permitiu mesmo assim.
- Contanto que esteja em casa antes das 17h…
Agarrei um computador assim que alguém o desocupou. Pesquisei sobre as festas beneficentes dos Vitae, rapidamente várias fotos e reportagens apareceram. Coisa de gente da alta, lindos vestidos e esmoquins, belos modelos desfilando e altos valores arrecadados. Os Vitae, obviamente, não eram apenas uma família de três pessoas, eles eram numerosos, os Vitae da minha rua eram os mais importantes, mas não os únicos. Todos os meses pessoas ricas, empresários de todo o Brasil, eram convidados para a festa.
O concurso de aspirantes a modelos era o ponto alto da noite. A melhor distração. Pesquisei pelo formulário de inscrição ao observar que uma nova seleção se aproximava. Ele era um formulário comum, solicitando dados pessoais como sexo, idade, nome dos pais… também solicitava dados econômicos e sociais como renda e quais as aptidões para arte. Achei tudo simples e prático, até ler uma cláusula anexada ao formulário, todos os candidatos deveriam assinar esta cláusula. Esta informava que, para os devidos fins e reconhecida diante um juiz de confiança da família Vitae que decreta que a quebra desse requisito pode acarretar ao infrator sérios problemas judiciais, o candidato só deveria inscrever-se na condição legítima de… Virgindade.
- MAS… Q-U-E M-E-R-D-A É E-S-S-A?
Fiquei boquiaberta. Era notório que os Vitae eram muito esquisitos, mas aquela cláusula era inconcebível. Quer dizer que todos os candidatos deveriam ser virgens ou poderiam se lascar?! Que sentido isso fazia? E qual a diferença? Perdi tanto tempo pesquisando e lendo reportagens que não observei que passavam das 19h. como o tempo voou rápido. Coletei imediatamente todas as informações relevantes e, juntamente com o formulário e cláusula, imprimi. Corri para casa, Scarllet deveria estar furiosa.
Ao me aproximar de casa notei Scarllet parada ao portão. Estava chateada.
- Onde é que você estava, garota?! – perguntou gritando. – tá ficando maluca?! Quer me matar?! É o que você quer?!
Scarllet desatou em prantos. Desde a morte de nossos pais ela prometera que me protegeria, que jamais algo de ruim aconteceria a mim. Eu só conseguia pedir desculpas e tentar me explicar. Ela me abraçou.
- Eu não sei o que faria se algo tivesse te acontecido. Nunca mais suma assim, entendeu?!
- Desculpe-me, Ca. Eu prometo. Perdi o horário pesquisando e quando vi já estava muito tarde.
- Será que nem a droga do celular você poderia ter levado? Para que serve isso então?
- Eu esqueci.
- Ok! Da próxima vez, avise. Fiz sopa para nós. Vamos jantar.
Após a refeição Scarllet foi assistir um filme e resolvi tomar um ar. Peguei um caderninho e uma lapiseira que estavam por cima da estante e saí. Dirigi-me até a árvore incandescente, era assim que Elka chamava a árvore com o bico de energia, sentei-me e um lado onde havia apenas penumbra e olhei para a casa dos Vitae. Naquela noite as densas cortinas estavam abertas permitindo que as grandes janelas de vidro revelassem seu interior, pude ver a sala do luxuoso castelo, belos móveis vitorianos e um lindo lustre, ao canto um piano. Black tocava o instrumento, enquanto Krai e Minerva Vitae conversavam alegremente em um sofá mais próximo à janela. Os dois bebiam em uma taça um líquido vermelho que deduzi ser vinho e, ao julgar, pela linguagem corporal dos dois, pareciam estar tomando a bebida alcoólica havia algum tempo. Pareciam uma família alegre e comum nesse momento. Se não fossem suas excentricidades, teria perdido o interesse.
Fiquei por uma hora ali, observando a alegria dos Vitae. Questionei-me. Eu parecia uma psicopata obcecada por uma família. Mas no fundo eu sentia que tinha algo de errado e eu queria muito descobrir.
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