A Carta e a Vela
O silêncio amedrontador de uma madrugada fria, no fim de uma noite solitária que devorou e matou com frios beijos imaculados. A apatia do vento mudo, a crueldade dos tímidos pingos de chuva contra o vidro. A ponta de uma pena cortou o papel, manchando-o com sua tinta negra. Uma vela queimou sem som, e isto bastou para iluminar o pequeno cômodo. Todos os seres vivos dormiam. Todos além do garoto que, de modo hipnótico, feria o papel com letras corridas e de pouca atenção. Não havia diferença entre uma faca cortando a vida para fora e a pena arranhando sentimentos para dentro do papel. Ao elevar o olhar para a janela, fora recepcionado por uma deslumbrante lua cheia. Naquela época do ano, apenas uma lua era vista. A outra se escondia nas coxias de sua irmã. Respirou fundo uma vez. E então outra. Parou para afogar a pena no nanquim, depois voltou a matar sua dor com palavras mal pensadas, que amaldiçoavam todo o mundo, incluindo o Céu e os Deuses. Aquilo poderia ser uma madrugada comum, contudo, havia aquelas palavras… Aquela carta era sua sina. Quando por fim terminou, usou sua última vela para derreter a cera, deixando que pingasse sobre o pergaminho, queimando-o. E com o beijo do sinete, estava feito. Como o doce sibilar de uma caixa de música, ela surgiu em sua frente. O vestido branco bailando no ar, de modo espectral. Ela caminhou até ele. E, pela primeira vez, suas mãos se tocaram. Este ato vulgar atraiu a ira dos deuses, e não houve santo que pudesse defendê-lo. Aquela pele da cor da chuva, tão suave. Cada segundo juntos era um crime contra a natureza. Cada passo de sua valsa era um prego para sua cruz. O pêndulo do relógio era a faca que cortava o seu destino. Não mais que um breve momento, e seu espectro cinzento se desfez, deixando apenas uma carta, uma vela e um corpo sobre o piso de madeira.