Espelhos Góticos
O cio da noite abarrota o céu de estrelas e aquela figura tisica e mambembe percorre as ruas do faroeste sertanejo, numa cidade fincada no mapa abstrato de um estado nordestino, menino trôpego pelos assaques dos estados do outro lado do mapa. Ali tudo se confunde, ali tudo se funde, os pelos dos dias são secos, eriçados pelo intenso caudal das chamas de um sol que invade as entranhas do dia e tosta um resquício de serenidade, quase torresmo. Ele, o tísico, percorre as ruas prenhas de assombração e figuras medievais, que num parto à forceps, assomem e vagueiam pelas esquinas e casas abandonadas daquela caverna de Platão. Apesar de fraco e quase desossado, amava aquela aldeia e a defendia com uma força de músculos mentais. Não sabia o que era dormir. De dia a luta pelo pão diário, de casa em casa, um pedaço disso e daquilo outro; à noite a vigilância atenta contra os seres góticos. Chamavam-no de Indormido. Gostava. Conheceu aquele menino de uma perna só, um gorro esquisito na cabeça, um cachimbo fedorento e ficou amigo dele. Sarará. Um tísico e um sarará perneta a vigiar a cidade. Vareavam as ameaças, os perigos invisíveis. Chuva, frio, calor. O dragão. O maior perigo. Quando o cheiro de madeira queimada invadia a cidade, era tempo de recolhimento e pedir a ajuda deles, o tísico e o sarará. O bicho devorador vinha a toda, sedento de sangue e carne; deixava as virgens pra depois, levava-as para a floresta e elas seriam suas amantes pro resto da vida. Tinha cabeça de javali, corpo humano e asas de dragão. Corria à boca miúda que aquilo fora uma maldição dada por um feiticeiro ao amante da sua mulher, uma virgem pura que morava num castelo de tijolo e barro naquelas bandas. O amante conseguira chegar até ela nas asas de um grande pássaro e passara a noite fazendo amor, raptando-a e a levando para morar com ele nas brenhas daquele matagal. Feiticeiro amaldiçoou os dois: ele virou aquela aberração e ela morreu no parto de um filho todo deformado, que também morreu. Quebrou todos os espelhos da caverna em que vivia. Odiava-se e odiava o mundo. Destruíra várias aldeias e vilas que havia naquele feudo, mas aquele povoado abarrotado de labregos insistia em resistir. E aqueles dois capiaus se arvorando heróis.
Tísico não temia nada nem ninguém. Desprovido de qualquer atrativo físico, era o rei dos cabarés. As donas da noite afirmavam e reconheciam em cartório o portentoso desempenho sexual do cabra. Causava rebordosa, sua chegada. Todas queriam ele. De se brigar, de se rasgar por ele. De graça. Um boêmio compositor amigo dele compôs um tango: Tango Para Tísico. Sucesso. Ele chegando, elas cantando. Sarará era muito tímido. Calado. Sisudo. Achava aquilo tudo sujeira. Quero não. A varar as noites na única perna, beliscando riachos, sorrindo pros arco-íris, afagando leões e panteras e viados, tomando café na cabana do Pai Tomás. Adorava Pai Tomás, um preto retinto de barba branca e cabelos tuins brancos. Ninguém fazia um café que nem ele. E como amava trocar uma dúzia de prosa com ele. Pai Tomás dizia que fez muito café pra Abraão Lincoln, que ajudou a evitar uma guerra civil, que viu George Washington ser eleito presidente do Brasil e que estava na Dealey Plaza na hora em que o serviço secreto matou Kennedy. “ Tempos bons, menino, tempos fartos.” Às vezes ele tinha inveja de Tísico. Nunca conhecera mulher. Enfurnou-se em si mesmo, trancou a porta das tentações e jogou a chave fora, lá no lago de Loch Ness. Precisava cuidar da defesa da aldeia. Sempre que Tísico saía dos fuzuês da cama, era com gás propano, disposto a cortar a cabeça de uma medusa ou furar o único olho do galalau que lutara com Ulysses. Dizia vou encarar aquela aberração na mão, no tapa. Dou-lhe um rabo de arraia que o bicho vai parar na Ilha de Santa Helena. Vai fazer parelha com Napoleão. Que se devorem. E deu uma gaitada de feiticeiro ferido com a flecha de Robin Hood. Sarará tremeu-se todo. Benzeu-se três vezes.
Saíram à cata dos espelhos mágicos que havia na casa de Merlin, o ferreiro. Merlin passara a vida toda criando aqueles espelhos, sabia-se lá por quê. Eram espelhos enormes, que Merlin usava para ver refletida sua imagem. Gostava-se. Naquela aldeia corriam boatos de todo jaez e um deles era que a besta fumeguenta não podia se mirar. Se assim o fizesse, derreter-se-ia. Pó. A princípio e por princípio Merlin negou-se a emprestar os espelhos. Sua maior invenção não iria parar nas mãos de dois fedelhos quartaus. De jeito nenhum, ora faça-me o favor! Era um sujeito interessante, Merlin. Alto que nem uma escada Magirus, magro, uma barba rala na cara, olhos azuis e sobrancelhas brancas e cabelos marrons, achava-se um homem atraente. Nunca se casara, “por opção”. Rejeitara todas as bruxas de Salém: vazias, pobres, desprovidas de inteligência. Teve sorte, pois todas elas viraram torresmo. De jeito nenhum!, berrou pros meninos. Apelaram para o humanismo de Merlin se não nos emprestares os espelhos, virarás carvão e esta aldeia também. Queres isso? Carregarás para a eternidade esta culpa? Crianças, idosos, mulheres, jovens… Merlin baqueou. Tendes razão! Levai-os. Mas, quero-os inteiros. Trazei-os de volta intactos. Problema: como levar aqueles espelhos enormes até a entrada da vila? Um perneta e um esquálido. Tísico, sempre safo, achou a solução. A gente pega as renas do Papai Noel. Ele não vai fazer questão alguma. Será o presente antecipado pra vila. Sarará não deixava de se admirar com a velocidade com que os miolos dele ferviam e estrurgiam soluções. Meu ídolo! Noel até se ofereceu para levá-las. Colocaram os espelhos nos carros, Noel e seus ajudantes amarraram-nos firmes. Puseram-nos na entrada da vila, espera tensa e angustiosa. Meia-noite. O céu abarrotado de estrelas mas sem lua. As cordas da orquestra regida por John Williams batendo o ritmo do silêncio, um urro amedrontador. O bicho desfigurado lançou a primeira rajada de fogo, árvores viraram brasas. De repente, um relâmpago assustador e inesperado iluminou a vila e os espelhos refletiram a imagem da aberração. Bicho estrebuchou, tentou virar a cara de javali, foi-se desmilinguindo e se ouviu um gemido de paz vindo da garganta vulcânica dele. A orquestra começou a tocar o Allegretto da sexta sinfonia de Beethoven, Hino das Graças dos Pastores. E tudo se fez novo, no semblante gótico daquela vila, graças a Tísico e Sarará. Dois amigos improváveis.