Sopa negra
Vernon Liddiard acordou no quarto de uma cabana de troncos, numa cama cujo colchão parecia ter sido recheado com palha dura; apoiou-se num cotovelo e olhou ao redor. Pela janela, pôde ver que a noite estava caindo e as primeiras estrelas surgiam num céu arroxeado. Sentiu-se confuso, fraco, e faminto.
- Hersten! - Gritou o mais alto que pôde, supondo que o parceiro estava por perto. Mas este demorou ainda alguns minutos para aparecer na porta do quarto.
- Que bom que acordou! - Disse o rapaz com ar satisfeito. - Estava na cozinha, preparando algo para o jantar. Como se sente?
Liddiard levou a mão à cabeça e gemeu, olhos fechados.
- Como se tivesse sido atingido com um porrete... espere.
Arregalou os olhos e encarou Hersten.
- Não foi um porrete... aquele desgraçado atirou em mim, à queima-roupa!
Apalpou o peito, sob o roupão de banho que vestia, e sentiu bandagens enroladas no tórax.
- Com mil diabos... ele me acertou mesmo!
E erguendo os olhos para Hersten, que o observava em tranquila expectativa:
- Como foi que escapei dessa?
- Eu cheguei a tempo - Hersten parecia encabulado. - Mais um pouco, e nada poderia ser feito; encontrei você caído na mata, e o trouxe para essa cabana de caçadores.
- Não me lembro de nada depois dos tiros - murmurou Liddiard. - E o Morgan, o que foi feito dele?
- Deve ter aproveitado que parei para te socorrer e fugiu - informou Hersten. - Quando voltei ao local onde encontrei você, a trilha dele já estava quase imperceptível.
- Precisamos voltar para a cidade e pedir reforços - ponderou Liddiard. - Talvez Morgan tenha algum esconderijo na floresta.
E sentindo um cheiro delicioso invadir-lhe as narinas:
- O que está cozinhando? Estou morrendo de fome.
- Você ficou apagado um dia inteiro - replicou Hersten. - A sopa deve estar quase pronta.
Acendeu um lampião de querosene preso na parede e saiu do quarto.
Liddiard sentou-se na cama. Apesar da fome, agora que estava completamente desperto sentia que suas forças voltavam rapidamente. Parecia um milagre, visto que Morgan atirara para matar e dificilmente erraria daquela distância. Talvez uma das balas houvesse atingido o distintivo que carregava no bolso e assim tivesse errado o coração. Era a única explicação que tinha para não estar agora num caixão.
Hersten voltou, com um prato fundo e uma colher. Dentro do recipiente, um líquido escuro e fumegante.
- Cuidado, está quente - alertou, colocando o prato numa cadeira ao lado da cama.
- O que é isso? - Indagou Liddiard curioso.
- Svartsoppa - replicou Hersten. - "Sopa negra", uma antiga receita de família.
Liddiard não esperou esfriar; pegou o prato e começou a comer como se não o fizesse há dias.
- Delicioso... mas o que tem nisso? - Indagou, após raspar o prato.
- Basicamente, sangue de ganso - informou Hersten.
Liddiard arrotou.
- Nunca pensei que fosse achar sangue tão gostoso - admitiu.
- Oh, é sim - redarguiu Hersten, os olhos brilhando na obscuridade do quarto.
- Tem mais? - Indagou Liddiard, estendendo o prato vazio.
- Tem sim; você perdeu muito sangue, precisa se fortalecer - disse Hersten, pegando o prato e saindo do quarto.
Liddiard comeu mais dois pratos antes de se dar por satisfeito. E depois, ergueu-se animado da cama.
- Essa sua sopa deve ter algo de mágico; sinto-me como se pudesse escalar uma montanha!
- Provavelmente, poderia - avaliou Hersten. - E já que está tão bem, que tal pegarmos a estrada de volta à cidade? Só temos um cavalo, mas acho que se sairmos agora, poderemos chegar lá antes do amanhecer.
- Boa ideia - replicou. - Me dê minhas roupas.
- A camisa ficou imprestável, tive que jogar fora - explicou Hersten. - Mas o sobretudo ainda pode ser usado.
Liddiard vestiu-se, lamentando não haver ali um espelho para ver como estava.
- Devo estar parecendo um cadáver - lamentou.
- Para um cadáver, você está muito bem - avaliou Hersten.
- [22-04-2021]