1152-A BIBLIA DO DIABO -

A BÍBLIA DO DIABO

As lendas e a história da Idade média se confundem de tal forma que se torna difícil aos cientistas e pesquisadores separar o real do irreal, principalmente quando se trata de narrativas ligadas às religiões.

Por outro lado, inspira aos escritores ficcionistas as mais interessantes narrativas nas quais a fantasia se sobrepõe à realidade.

Convido, pois, os leitores a viajar no tempo e no espaço para conhecer uma das mais estranhas histórias do catolicismo.

* * *

— Por esse pecado inominável, inconcebível até mesmo para um possuído pelo demônio, que violou todos os votos monásticos a que havia jurado fidelidade e obediência, condeno o Frei François, cujo nome civil é Pierre Manfred Courvin, a seguinte pena.

O juiz, interrompendo a fala, olhou para o minúsculo homem á sua frente, despido de seus trajes religiosos e usando apenas uma camisola alva,curta, que mal lhe cobria as partes pudendas, descalço e tiritando de frio naquela manhã de outubro do ano 1.202. O juiz do pequeno tribunal era o próprio o Prior do mosteiro beneditino de Podlazice, localizado em Chrudin, na antiga Boêmia (hoje Republica Tcheca), voltou os olhos para o papel que tinha a sua frente e continuou:

— Condeno, pois, a ser emparedado vivo, em local já determinado dentro dos muros do mosteiro, para que todos os irmãos tenham lembranças do castigo infligido a esse infiel homem, hoje destituído de todas as prerrogativas, graças e dons obtidos pela sagração ao serviço de Deus.

O homem se prostrou na posição mais abjeta e indigna de um ser humano: de joelhos, a face entre as mãos, abaixou a cabeça, exibindo para a assembleia de irmãos (e algumas irmãs, monjas que assistiam ao julgamento) uma bunda branca como a neve.

— Misericórdia, meu pai. Não mereço tal castigo! Tende piedade de mim!

Ante ao espetáculo de tamanha indignidade, a que os monges e monjas viraram os rostos, o prior e juiz determinou:

— Levem essa alma penada daqui. E podem começar o emparedamento.

Ao mesmo tempo em que o réu era arrastado do tribunal o juiz e prior também deixou o recinto, e os assistentes, entre exclamações e palavras de piedade deixaram a sala vazia.

O prior caminhou lépido em direção ao local onde o frei seria emparedado. Pedras já estavam amontoadas e a argamassa feita com óleo de baleia já estava preparada num recipiente raso. O ex-monge já estava vestido com uma camisola sumária, o suficiente para não despertar olhares de reprovação à nudez, esperando a hora de ser emparedado.

À vista do prior, o condenado novamente se prostrou, mas com outras palavras:

— Meu pai, tende piedade, Não quero sofrer este suplicio. Mande-me fazer qualquer coisa, por impossível que seja, que eu, prometo, o farei.

O prior não era destituído de compaixão nem de um certo bom humor... de convento.

— Qualquer coisa? Mesmo que impossível? Vejamos...

Fingiu pensar alguns minutos, e saiu-se com esta:

— Perdoar não posso. Mas se copiar dentro de vinte e quatro horas a Biblia Sagrada, ficará livre e poderá abandonar o convento sem nenhum pena.

Frei François, que agora não era mais frei, concorda em fazer a troca: sua vida por escrever numa noite e um dia, a Biblia Sagrada.

Pelo menos, ganho mais um dia de vida. — pensou o astuto Frei François, que, aliás, já sabia como realizar a impossível tarefa.

Arranjos foram feitos para que ele começasse a tarefa: uma mesa rústica, penas em suportes, tinta e um banco para o escritor sentar-se. Sobre a mesa foram colocadas enormes folhas de um papel grosso, rústico e resistente. Sobre a mesa, uma vela para escrever à noite.

Trancou-se em sua cela. Sabia de antemão a que entidade pedir ajuda.

Sentado no rustico leito, fez a sua invocação:

— Anjo de luz e de rebeldia! Sei que estás sempre ao lado dos condenados à fogueira eterna, vos imploro um milagre que, em outras circunstâncias, jamais me atreveria a pedir. Faça com que esta noite se estenda o suficiente para que eu escreva a Bíblia e possa viver minha vida em paz. Sei do alto preço que terei de pagar, e se continuar vivo, tudo farei para elevar seu nome bem alto, proclamando em todos os lugares em que chegar.

Não houve cheiro de enxofre nem manifestações do poder diabólico de Lúcifer.

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Todavia, vencido pelas intensas emoções do julgamento e pela tentativa de escrever a Bíblia Sagrada dentro de um prazo curtíssimo, Pierre adormeceu. Sentado á mesa onde escrevia pendeu a cabeça sobre os braços cruzados entrou num sono profundo do qual foi acordado ao ouvir batidas á porta da cela.

Assustado, abriu a porta. Era o prior, que ao ver que o condenado estivera dormindo, abriu a boca num riso de escárnio ou deboche.

— Há! Há! Há! Então passou a noite dormindo. É assim que pretende cumprir o combinado para livrá-lo do emparedamento¿

François, estremunhado, não tem o que responder. O prior solta uma gargalhada e deixa o condenado.

Ao voltar-se para se sentar à mesa, olha, surpreso, que a pilha de folhas nas quais deveria escrever a Bíblia tinha desaparecido. E no chão, entre a cadeira e a cama, no lado oposto á porta, e portanto, não percebida pelo prior, havia outra pilha de papel, muito maior do que a que lhe fora fornecido na tarde anterior.

Ajoelhou-se e começou a examinar as folhas. Todas completamente tomadas pela escrita gótica de sua autoria, em letras pequenas e palavras diminutas, era o texto bíblico!

Mais do que surpreso, examina mais e mais folhas. Lindas miniaturas abriam os Livros e os capítulos, a começar pelo Livro do Gênesis. Tudo de sua autoria, tudo realizado por ele: texto e luminárias, feitos de memória e extremamente fiel á Biblia que ele conhecia tão bem.

Sentou-se na cama e ficou quieto, por alguns minutos.

Uma coisa extraordinária havia acontecido e na sua alegria por escapar à morte e adquirir a liberdade com a qual vinha sonhando há tempos (e que fora causa de sua prevaricação como monge), quase se esquecia do preço que haveria de pagar.

Abriu a porta da cela e rumou, célere, para o aposento onde o Prior dirigia o convento. Entrou sem bater e fazendo barulho, quebrando o silencio sepulcral que envolvia todo e todos. Gritou, sem nenhum respeito, para seu ex-superior:

— Mande alguém buscar o trabalho que prometí fazer em troca de minha liberdade!

O Prior levanta os olhos, assustado com as maneiras de François.

— Silêncio! Queira manter os modos que aprendeu no convento.

— Não sou mais seu escravo e falo como quero. Exijo minha liberdade, pois já cumpri com o prometido. Está na minha cela.

O prior sorri.

— Não tente me enganar. Há pouco estive na sua cela e nada vi que você tivesse escrito nesta noite. Aliás, notei que o irmão passou a noite dormindo...

—A Biblia que prometi escrever está lá, na cela onde pernoitei. Mande mais de um monge para trazê-la, é pesada.

— Vamos ver.

Levantando-se, o Prior se dirige ao corredor extenso em cujo final está a cela de François, que o segue de perto.

A porta está aberta, O Prior entra e com dois passos está no extremo da cela.

Então vê a pilha de papel.

— Que é isto¿ — indaga, talvez temeroso em descobrir o que realmente é: a Biblia escrita por François em uma noite.

Vamos, verifique com seus próprios olhos. — Convida François, de maneira insolente. — Não tenha medo, não é nenhuma obra de Satanás.

Ao ouvir o maldito nome, o Prior cai de joelhos e se persigna diversas vezes. Depois, dizendo palavras que inspiram a purificação das folhas, ele inicia o manuseio das folhas. Examina atento as primeiras e as últimas folhas.

Está ciente de que algo extraordinário ocorreu. Não sabe, com certeza, se é obra de Deus ou de...nem se atreve pensar.

Pede a François que chame dois freis, afim de que testemunhem o que está vendo,

Chegam os Irmãos Wilhelm e Giordano.

— Vejam isto, irmãos, me digam o que é.

Os dois colocam a pilha de papel sobre a mesa e ambos folheiam o material. Enfim, são unânimes:

— É uma cópia da Bíblia, com certeza. E foi escrita recentemente, pois notamos lugares em que a tinta ainda não está totalmente seca.

Fançois rí da surpresa dos três. Diz em voz alta e de maneira categórica.

— Cumpri o que prometi. Escrevi esta Bíblia em menos de um dia e uma noite, Agora quero ser absolvido da culpa pela qual fui condenado e exijo minha liberdade.

— Mas temos que ... — iniciou o Prior.

— Nada de protelações. Exijo isto agora.

— ...reunir o tribunal. Não posso absolvê-lo sozinho. Tenho que deliberar em conjunto, como é de praxe num tribunal.

— Pouco me importa a sua absolvição, ela nada vale para mim. Quero apenas a liberdade.

O Prior, agora certo de que François estava sob a égide de alguma entidade estranha e maligna, diz aos três:

— Venham comigo até o portão.

Pelos longos corredores caminharam, encontrando outros irmãos, que, a um sinal sub-reptício do Prior, se juntaram, formando uma procissão.

O sol quente do meio-dia queimava as flores e folhas do extenso jardim e as cabeças dos religiosos. Apressaram o passo.

No portão, Frei Abelardo, o guardião das chaves, como que advinhando, já estava esperando o Prior e a estranha procissão do meio dia.

— Abra! — ordenou o Prior.

O frei das chaves escolheu uma grande chave no aro de metal em que estavam quase cinquenta delas. Coloca na fechadura, dá duas voltas e escancara as duas pesadas portas de entrada.

— Pronto, Monsieur Pierre Manfred Couvin. Pode ir, está livre como deseja. Seus pecados estão perdoados. — Disse o Prior, abençoando-o com o sinal da cruz.

E em tom baixo, audível só para os que estão bem próximos:

— Vade retro Satanás.

Sem se despedir de ninguém, olhando altaneiramente em frente para o áspero caminho que descia colina abaixo, Pierre iniciou sua caminhada gozando a liberdade conquistada do mundo dos homens em troca da sua servidão para sempre a Lucifer, Anjo de Luz e de Soberba, que também pretendeu ser livre e está subjugado á escravidão eterna.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Sitio Estrela, ao sopé da Serra da Moeda, Brumadinho- 29.03.2020.

Conto # 1152 da série INFINITAS HISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 20/12/2020
Código do texto: T7140265
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