Bom dia!

– Odeio as pessoas da manhã.

Abriu Fernando Eduardo quase sussurrando. Ele possuía um sorriso falso na cara e pose confiante enquanto aguardava aparecer algum cliente na loja de eletrônicos.

– Aquelas que acordam com os primeiros raios de sol felizes por existirem...

– Não precisa explicar. É só uma tradução merda de morning people.

Interrompeu Carlinhos ao seu lado com a mesma cara alegre olhando para a porta aberta por onde nenhum cliente tinha entrado ainda.

Passou alguém no corredor do shopping que mirou dentro da loja, mas seguiu em frente sem nenhuma consideração. Fernando e Carlinhos retomaram o papo.

– Que seja. O fato é que não sei como alguém pode ser feliz pela manhã. Hoje eu acordei meia hora atrasado e tinha que escolher entre o banho e o café.

– E o que foi?

– Não sou bom para escolher. Então fiz as duas com 15 minutos a menos em cada.

– E funcionou?

– Sim e não.

– Como assim?

– Comi pão molhado e manchei o punho de manteiga.

– Então deu certo. Cumpriu o prometido sem cobertura de nada adicional. Não é isso que fazemos?

– É...

– Só não deixa o Rafael ver. Sabe como ele é paranoico com limpeza. Capaz de te dar balão por isso.

– Não posso perder um dia de salário.

– Então é melhor não deixar ele ver isso aí. Porque ele vai surtar.

Através do vidro dava para ver pouco além do fim do corredor. Lá, próximo da loja de chocolates, despontava um rapaz. Ele vestia uma blusa azul clara e um sorriso genuíno. Tinha o cabelo curto, castanho, na moda e um olhar petulante. Vinha como uma Miss acenando e cumprimentando todos no caminho.

– O cretino é amigo de todo mundo, Fernando.

– Pior, Carlinhos. Não conheço uma solteira deste piso que não seja louca por ele.

– Ele também me deixa louco.

– Nem me fala.

O terceiro sorriso entrou na loja e apresentou um breve olhar em revista. Fernando com elegância tinha o braço direito para trás do corpo. Carlinhos o acompanhava.

– Bom dia winners!

A felicidade do recém chegado naquela manhã saltava de seus gestos amplos e conquistadores. A fragrância que usava chegou logo em seguida.

– Bom dia Rafael.

Carlinhos e Fernando Eduardo disseram ao mesmo tempo.

– Muito trabalho para fazer. Hoje o dia vai ser especial. Tive um sonho sobre isso. Quanto já vendemos até agora, Carlinhos?

– Nada ainda, Rafael.

– Hoje está meio fraco.

Um poodle acompanhado de uma ruiva ferrugem de óculos de sol marrons e bolsa de custar salários pararam às costas do gerente.

– Dá licença, vocês tem o iPad novo?

Os encontros de olhares entraram de carrinho nos sorrisos. E Rafael cabeceou a oportunidade para Fernando.

– Claro que temos, senhorita. Me acompanha, por favor.

E saíram para uma mesa iluminada que ficava à direita de quem entra.

– Carlinhos, vem comigo. Se não aparecem clientes, podemos reorganizar o estoque.

E se foram para dentro da loja deixando Fernando Eduardo cuidando da cliente.

O cãozinho estava inquieto arranhando os móveis e foi para o colo se acalmar.

– ... a tecnologia Sun rising dá uma imagem magnífica na tela sem requerer muita bateria. E a nova câmera Rise n’ shine! permite fotos de modelo mesmo com baixa luz.

Ferrugem parecia um pouco entediada e Fernando precisava daquela venda.

– Parece muito com o antigo. Segura ele para eu mexer um pouco?

– Claro.

Fernando Eduardo tomou o peludinho no colo. O cãozinho ficou calmo e tranquilo. Fernando gostava de bicho e o animal sentia isso. Iria ajudá-lo a fechar aquela venda. Dois por cento de comissão naquilo pagavam sua conta de luz.

A ruivinha era muito bonita, notou agora que ele podia prestar atenção. Enquanto isso ela usava o iPad e comentava uma coisa ou outra. Era claro que ela sabia mais sobre o gadget que o vendedor.

Fernando percebeu o motivo de tanta cooperação do poodle. Ele estava mastigando o punho da sua camisa, chupando toda mancha de gordura.

“Puta merda!”

Ele tentou tirar o cachorro, mas o animal se prendia de algum jeito. Deu o puxão discreto mais forte que pôde e percebeu que perdeu um botão. Arregalou os olhos e teve vontade de jogar o cachorro longe.

Mas ao invés disso fez um afago.

– Vou levar.

– Quê?

Disse ainda pensando no que faria com a manga solta, borrada e babada.

– O iPad. O que mais seria? Você deveria parar de olhar para as clientes e prestar mais atenção no seu trabalho! Quando alguém começar a gritar “assédio” você não vai gostar. E as mulheres vão fazer a sua loja fechar.

– Jamais faria isso, moça.

– Senhorita.

Disse a moça irritada.

– Senhorita.

– Vou tirar a nota. Me acompanha, por favor.

Fernando trocou o cão pelo iPad e foi finalizar a venda no caixa.

Chegando lá, o sistema estava lento como de costume. Cada comando levava vários minutos. Perdeu-se pensando no que fazer. Se o Rafael visse o estado do seu uniforme nem aquela excelente venda matutina o salvaria de outra pregada. Tinha o olhar fixo à frente vendo o que poderia fazer. Dobrou as mangas logo acima dos cotovelos de uma forma que ocultava os punhos em um estilo descolado, sem mudar o olhar ainda longe dali.

– Você está olhando para o meu decote?

Reparou então que seu olhar baixo e desorientado voltava lhe os olhos para os dois montes por trás de onde se levantava uma indignação ansiosa para se transformar em fúria.

– Claro que não.

– Então deveria parar de olhar.

Parou. Voltou-se para o computador.

– Quer fazer o cadastro?

– O que precisa?

– Só do CPF e do nome.

– Tá bom. Isabela Sunshine.

E mostrou o documento. Em seguida pagou por tudo à vista.

Terminada a venda, Isabela mudou o semblante. Tinha esquecido qualquer sentimento de ofensa e parecia excitada com o brinquedo novo. Saiu da loja radiante.

Carlos já havia voltado e, vendo o final da venda, perguntou:

– Por que não ofereceu o modelo top de linha? Está em promoção. Vem com o dobro de memória e garantida estendida pelo mesmo preço.

– Porque, Carlinhos, cumprimos o prometido sem cobertura de nada adicional. Não é isso que fazemos?

Fernando sorriu.

Carlinhos também sorriu.

Marcas genuínas.

Não passou muito e Fernando estava atrás do balcão com Carlinhos ao seu lado. Foi então que Rafael apareceu. Só Fernando reparou que o gerente tinha uma luz brilhante emergindo acima de seu ombro esquerdo. Reflexo da vitrine, talvez, que tornava incômodo olhar diretamente.

– Que porcaria é essa, Fernando?! Mangas dobradas? Isso aqui é a sua casa? Você descaracterizou o uniforme. Agora não tem mais o que fazer. Devem estar todas amarrotadas. Se repetir isso outra vez vai levar balão!

E Fernando Eduardo ficava lá olhando com sua falsa atenção. Aquela era só mais uma manhã como tantas outras. O vendedor já havia aprendido a lidar com a situação. Só ouvia seus pensamentos:

“Eu odeio pessoas da manhã.”

“E manhãs.”

“E pessoas.”

Renato Nicácio
Enviado por Renato Nicácio em 13/09/2020
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