202 - João
Vi a rede presa com um grampo a um prego da parede. Era estranha no contexto da profunda arrumação do espaço, dos livros aos quadros, das telas vazias aos trabalhos quase prontos, do material em perfeito estado de limpeza. Sentei-me onde me indicou e ele, o Pintor, levantou os estores para deixar entrar a luz de um sol forte de Maio. E todo o ambiente se alterou revelando a intensidade das cores e o passeio das sombras mutantes da rede que se mexia com a aragem da janela. Projectava beleza e intimidade, gerava alongados desenhos na parede branca que, assim riscada de luz e cinza, imediatamente me recordou Ana Hatherly e a ousadia de pintar com sombras que lhe exigiam fitas de papel, ventiladores ocultos e muitos focos. Ser artista plástico admite destas estranhezas e, ao longo da vida, vi muitas, herméticas para profanos, tão naturais para os que, igualmente diferentes, se irmanam marginais a crenças, origens e línguas. Somos da mesma família por nos ser fácil entender, sem explicações forçadas ou complexas, este mundo de mínimos, de pequenos nadas, de frágeis coisas importantes, de impensáveis afectos. Quase sempre que lanço um livro recebo de presente uma pedra. O Poeta que a traz, embrulhada para travar interrogações, sabe, sem que lhe tivesse dito, do meu amor pelas pedras. A última era um naco de granito nada dócil e foi com carinho que a recebi.